13 setembro 2013

piropando um pouco mais

 



1. Por causa do debate sobre o piropo, e da reportagem da Fernanda Câncio no DN (caso não saibam ainda, deram-me lá tempo de antena, com fotografia e tudo), um amigo ofereceu-me "A Plea for Eros" da Siri Ustvedt.
Ora bem: se fosse para o Eros, eu até nem me importava. Mas em sendo para o Phobos...
(Esse livro é excelente.)

2. Pergunta para as pessoas que resolveram ridicularizar a proposta de debate do Bloco de Esquerda, só porque não concordaram com os termos em que ela foi lançada: e afinal, agora a sério e só cá entre nós (e esquecendo por uns segundos a troika, os náufragos no Mediterrâneo, a fome, a guerra na Síria e os resultados do futebol) - parece-vos aceitável que nas ruas portuguesas um desconhecido se possa dirigir a uma mulher fazendo comentários sobre partes do corpo dela e as fantasias sexuais que gostaria de pôr em prática com ela? A partir de que idade da "fêmea" é isso aceitável?

3. Tenho andado a pensar numa situação com algumas semelhanças a esta: rapazes ou homens heterossexuais abordados na rua por um homem que não conhecem, para lhes fazer um "elogio" ou uma proposta de consumação da atracção sexual que sente por eles. Conheço de perto três casos desses - e em todos o homem "elogiado" ficou de rastos.
Se alguém viesse propor a proibição destes "piropos", imagino que a reacção da sociedade portuguesa seria diferente: haveria quase unanimidade sobre a urgência de proteger os pobres dos rapazinhos que não podem andar na rua descansados...

4. E se? - O Paulo Pinto faz um desenho para o pessoal que ainda não percebeu como é que esta "poesia da rua" funciona.
(por reflexo de hamster, vou copiá-lo para este post)

***

e se?

por Paulo Pinto, em 13.09.13
Ó filho, dá cá o pau ao caruncho. Foi a primeira vez que ouviu uma destas, teria uns 13 anos e seguia com os amigos para a escola. Não sabia bem o que era o "caruncho", mas o ar desbragado da mulher deu-lhe vontade de rir. Quase parou e ainda esteve para perguntar ao colega, mas este apressou o passo e olhou em frente. A partir daí, e à medida que crescia, passou a entender. Enfunava-te uma vela nessa verga que ta rachava toda. Mesmo que não entendesse o significado exato das palavras, era fácil detetar o tom babado e os olhos gulosos. Esfrega-me aqui esse alho no meu bacalhau. Umas eram mulheres feitas, outras quase garotas; outras ainda, bem mais velhas, pareciam ser quem dava o mote. Algumas metiam um ar falsamente delicado, o que lhe aumentava o incómodo e a sensação, profunda, de desrespeito, de exposição pública, como se fosse um animal ou um boneco. Fugiste da feira? É que és cá um pão com chouriço...
Foi ensinado a não responder, a ignorar, a não "dar trela", senão era pior. Uma velha asquerosa e babada, uma vez, pediu para ele lhe fazer um minete. Quando um amigo lhe explicou o que era isso, andou dias enjoado, só de imaginar... Ó menino copo de leite, anda cá que eu seco-to todo. Era um nó no estômago quotidiano, de manhã, quando saía de casa e sabia que tinha que passar naquela travessa, e ao fim da tarde, no regresso, nas redondezas de um certo estabelecimento. O tom variava, entre a piadinha brejeira - Chamas-te Izidoro Nobre, acertei? - e a interpelação grosseira e obscena - dava-te à bomba até te fazer calos nesses colhões. O que mais o incomodava era o caráter gratuito de tudo aquilo, para quê, qual a utilidade, qual a piada? Havia estúpidas provas de feminilidade com que elas se vangloriavam entre si, com os gajos que já paparam, e tal, agora aquilo, para que servia? A resposta era só uma: para nada. Só para ele saber que estava debaixo de olho, que não riscava nada, que estava à mercê, ali à mão de semear, que era um pitéu pronto a ser devorado, se, quando, como e onde alguma delas quisesse. Não era desejo, nem elogio, nem humor, nem nada. Era poder, apenas isso.
Sabia que as mulheres eram assim, sobretudo em grupo. Cada uma delas era uma pessoa, se calhar boa pessoa, com responsabilidades, família, amizades. Sós, em ambiente maioritariamente masculino, ficavam intimidadas e não piavam. Mas assim, na rua, no meio das amigas, eram umas rainhas, em especial se calhava toparem com uma presa desgarrada, tenra e desprotegida. Umas bestas. Ó bom, tens um irmão gémeo? marchavam com caixa e tudo. O pai dizia-lhe que era mesmo assim, que sempre tinha sido assim, que no tempo dele até era pior, que as mulheres são estúpidas e que não valia a pena usar a razão, muito menos a educação, para persuadi-las do que quer que fosse. A verdade é que toda a gente, elas e eles - sim, havia homens que nem se dignavam falar daquilo e desprezavam quem o fazia -, pareciam minimizar o assunto e reduzi-lo a banalidade; que eram elogios, que eles até deveriam sentir-se apreciados, que eram práticas inofensivas que os faziam sentir mais homens. E que, no fundo, todos gostavam, embora não o reconhecessem. Ó carapau, não tens bigode? anda cá que eu arranjo-te um.
Mas ele pensava de maneira diferente e estava certo que não era assim, que não podia ser assim. Que tinha o direito a andar por onde quisesse e quando quisesse, sem ser importunado com assobios e comentários sobre a sua vida, sobre o seu corpo, sobre a sua roupa ou sobre a sua intimidade. Nunca foi molestado, teve sorte. Os amigos não falavam muito do assunto mas, à boca fechada, um ou outro lá deixava escapar o asco que sentiu com aquela mão, a repugnância daquele encosto, o arrepio daquele contacto não-solicitado, evitado mas suportado em silêncio. E, sobretudo, aprendeu que o que lhe ensinaram não era regra universal, que não tinha que ser assim porque sim, que em muitas regiões do globo o cenário era diferente. Havia até países onde eram os homens que importunavam as mulheres na rua, imagine-se. Alguém acredita?



14 comentários:

Zélia Maria Matos disse...

O post do Paulo Pinto era absolutamente necessário. A partir de factos coloca o problema fora da abordagem restrita do género. Porque, ou eu entendi mal, ou o assunto foi colocado (nestas últimas discussões) como se fosse uma questão da prepotência do homem contra a mulher, seja de um modo declarado seja por omissão de um enquadramento diferente.

:)

Helena Araújo disse...

Também me parece que é uma questão de prepotência, de assimetria: mais velho/muito novinha; com mais força física/com menos força.
Para mim, este exercício põe a nu o absurdo da situação em si.

sem-se-ver disse...

excelente, helena. obrigada

D.S. disse...

O piropo ainda é uma questão de género. Parece-me que foi positivo o BE ter posto as coisas nesses termos porque é disso que se trata. A tentativa deste autor foi o de reverter os papéis de género para ver se mesmo assim haveria vozes a dizer que os piropos não têm mal nenhum (se fossem lançados por mulheres contra rapazes adolescentes). O facto de a situação no texto parecer de um universo paralelo é precisamente porque ela não existe na nossa sociedade: um rapaz quando desponta para a puberdade não ouve bocas sexuais de grupos de mulheres maduras, nem se lhe acelera o coração de temor sempre que tem que passar por uma mulher mais velha na rua. Já no caso das raparigas, não conheço nenhuma que nunca tenha levado com nenhuma boca nojenta destas. "Ah, mas há mulheres que também lançam", pois há, mas são casos muito excecionais e não fazem parte das regras do "ser mulher" em grupo, como infelizmente ainda é o caso em muitos grupos de homens. Mandar piropos quando se está entre homens é uma espécie de validação de um tipo de masculinidade que embora muito errado, ainda está muito entranhado na conduta do macho ibérico.

O piropo tem que ser analisado no contexto da sociedade em que está inserido, e essa sociedade ainda é francamente desfavorável para com a mulher. Especialmente no que toca ao seu corpo, que é considerado como coisa pública, espécie de objeto que toda a gente tem permissão para olhar, ver, comentar, etc. E como disse uma vez a São João num post também sobre os piropos e o assédio sexual, sobre as mulheres paira sempre o fantasma da violação, nunca se sabe se e quando o desconhecido que nos lançou um "comia-te toda" entredentes não passa da palavra à ação. É por isso que um piropo é um ato de intimidação e de prepotência, mas que na minha opinião só tem estas características porque é lançado de homens para mulheres (sobre um homem não paira o fantasma da violação nem vivemos numa cultura de objetificação de homens).

Bom, queria com isto tudo dizer que o piropo é uma questão de género, sim, mas que a resolução do problema não passa por ter mais mulheres a responder na mesma moeda ou incitá-las a fazer o mesmo a rapazes sozinhos quando estas andam em grupo. É uma questão de educação e de deixar bem claro que na nossa sociedade uma mulher tem tanto direito a andar sozinha na rua sem ser importunada por comentários sobre o seu corpo quanto um homem.

sem-se-ver disse...

é uma pena ter (mas tinha que os ter) tantos palavrões e ordinarices, porque eu gostava de debater este assunto com os meus alunos, e este 'exercício' do paulo pinto era (seria) um texto bestial.

enfim, terei de o debater de outra forma...

(continuo a defender que é pela educação que as mentalidades se mudam, tentarei fazer a minha parte)

Helena Araújo disse...

sem-se-ver,
tenho pensado muito nisso das ordinarices. Calha mal escrever num jornal essas coisas com as letras todas, mas são coisas que qualquer miúda começa a ouvir aos 11 ou 12 anos de idade. Quando usamos astriscos e tal, estamos a proteger a sensibilidade de quem? Estamos a querer enganar quem?
Também me parece que a Educação tem aqui um papel essencial. Outro dia uma prima minha queixava-se do fim da disciplina de Ética e Educação Cívica (era assim que se chamava?). Ela diz que notava perfeitamente nos filhos que andavam a falar sobre certos temas na escola. Ficavam muito mais atentos e críticos, notava-se ali uma evolução civilizacional.

Helena Araújo disse...

D.S.
nem mais!

sem-se-ver disse...

sim, helena, mas eu nas aulas, pelas razões óbvias e mesmo que seja na leitura e análise de um texto, não posso usar certas expressões. caía-me tudo em cima e, na minha opinião, com razão.

sim, neste país acaba-se com td o que tenha em vista fazer evoluir os nossos alunos.

td vem ter sp ao mm: a necessidade da, e de, educação.

A. disse...

Obrigada! (queria mesmo ler o artigo, está muito bom)

Helena Araújo disse...

Está bom, sim senhora!
E parece que tem feito muito boa gente mudar de opinião sobre este assunto. Óptimo. :)

A. disse...

Já partilhei no facebook (também tenho andado nessa cruzada por lá).

Helena Araújo disse...

ah, também és uma dessas feministas ressabiadas, que querem impedir os piropos por inveja das bonitonas que os recebem?
Não percebo nada: tenho no facebook dois retratos muito actuais de mim como feminista ressabiada, e o pessoal está a gostar imenso. Até já recebi piropos e tudo!
;-)

A. disse...

Tive recentemente uma discussão com uma grande amiga sobre o assunto, e ultrapassa-me completamente esta cena das "gajas" desvalorizarem a cena e negarem que é um problema...

Helena Araújo disse...

Também não compreendo. Estava tentada a acreditar que hoje em dia isto já não acontece, mas na reportagem da Fernanda Câncio há uma Rita de vinte e poucos anos que já chegou a apanhar forte e feio por ter reagido a um "piropo".
O que me deixa ainda mais surpreendida é que algumas das mulheres que desvalorizam isto têm elas próprias filhas. Tencionam levar as miúdas de carro a todos os sítios até elas fazerem 50 anos?...
Nem sei se é aceitação tácita de um mundo machista, se uma visão humilhante da natureza dos homens ("coitados, são assim, não conseguem mais do que aquilo, temos de ser tolerantes...")
Finalmente, não entendo a teimosia de confundir elogios agradáveis (lá está: plea for eros) com agressões verbais.
No entanto, penso que este debate já nos fez avançar a todos. As miúdas "piropadas" agora sabem que não estão sozinhas sujeitas a algo que a sociedade prefere ignorar, e mesmo para os mais teimosos, o "piropo" deixou de ser olhado como algo normal e inquestionável nas ruas, para nos obrigar a distinguir entre elogio e agressão.