20 janeiro 2013

Kuhhandel, ou: um manifesto político para o nosso tempo



A semana de Kurt Weill na Komische Oper abriu com a opereta Kuhhandel (traduzido: negociatas; literalmente: comércio de vacas). Por uma feliz intuição, comprei bilhetes - sem saber bem ao que íamos, e afinal fomos a um concerto histórico: a primeira apresentação desta opereta em Berlim. Assistimos a um notável espectáculo, e saímos da ópera quase a levitar, quase de rastos. Como é possível oferecer em música tão leve e alegre uma crítica social e política tão corrosiva? Excelente Weill.
Enquanto ouvia, trocava "armas" por "créditos bancários" e parecia-me que era uma peça sobre o nosso tempo. E descobria um Weill sarcástico até dizer chega - por exemplo nas melodias que punha na boca do político: um presidente que dava música ao seu povo, que até parecia acreditar no que dizia, aaah, quase se ouviam os violinos na sua voz, oooh, encantador, excelência! (podem ouvir a partir do 5º minuto, cheio de palavras bonitas como "pátria amada" e "para o bem do povo").

Max Hopp fez um excelente Felipe Chao: desde o ar cínico que mantém durante toda a peça, até à elasticidade corporal com que ocupa o palco inteiro, de forma tão burlesca como natural. É o homem dos mil ofícios, consegue combinar facilmente o papel de comerciante de armas com o de narrador, ora dentro ora fora do enredo. A seguir ao intervalo aparece como o professor que pergunta ao público se entendeu bem a lição, e começa a fazer revisões da matéria dada. O público ri, divertidíssimo, o actor rosna "riam riam, que logo choram", e é já Felipe Chao, leva-nos à casa da Madame Odette, onde Juanita canta para o general.
Ina Kringelborn oferece a sua voz cristalina à causa de uma Juanita sempre pura e ingénua, por maior que seja a sua miséria. Vincent Wolfsteiner faz de Juan a figura mais expressiva desta ópera concertante. E os pais da noiva dão um belo dueto de choramingas que fez o público rir até às lágrimas.


Recorro ao programa para contar um pouco mais sobre esta obra:

A história: os Estados Ucqua e Santa Maria coexistiriam em paz numa idílica ilha dos trópicos, não fora a acção do comerciante de armas, Felipe Chao. Oferecendo presentes ao presidente de Santa Maria, convence-o a comprar armas, que serão pagas com um "imposto sobre o bem-estar". Na aldeia, Juanita Sanchez e Juan Santos vêem-se impossibilitados de casar, porque a vaca deste, que seria o sustento do casal, é confiscada para pagar o imposto. Juan vai trabalhar para a cidade, tentando amealhar para comprar outra vaca. Quando estão de novo prestes a casar, a segunda vaca é também confiscada para pagar uma comissão ao Ministro da Guerra, general Conchaz. Apesar de todos estes impostos, o Estado de Santa Maria não consegue pagar as armas. Felipe Chao concede uma moratória, em troca de movimentos militares que assustem Ucqua, de modo a que também esse país lhe compre armas. Juan é chamado para o exército. Juanita é obrigada a ir trabalhar na cidade, para poder comprar uma vaca. Encontra trabalho na casa da Madame Odette, um estabelecimento de duvidosa moral. Depois de cantar para o general Conchaz, nos festejos do seu golpe de Estado que derruba o presidente, aquele dá-lhe o dinheiro suficiente para pagar meia vaca. Por sua vez, a Juan é prometido um prémio no valor de meia vaca se se disponibilizar para ser a voz do povo num referendo simbólico, em que aceitará o general Conchaz como presidente. Juan aceita. No entanto, no momento decisivo em que deverá gritar "sim!", dá uma bofetada ao general. É condenado à morte por fuzilamento. Mas acontece que as armas que Felipe Chao vendeu não funcionam. O general Conchez proclama a paz, e já nada pode impedir o casamento de Juan e Juanita.


Dança sobre o vulcão - a opereta Der Kuhhandel, de Kurt Weill
(um texto de Pavel B. Jiracek, aqui muito abreviado por mim)

A 21 de Março de 1933, Kurt Weill fugia de Berlim em direcção a Paris. Era o "dia de Potsdam", uma pomposa encenação que dava início a uma nova era: o presidente von Hindenburg, representante da velha ordem, dava a mão a Adolf Hitler como sinal de uma nova aliança. Dois dias mais tarde, estava Weill a chegar a Paris, o parlamento alemão votava a Lei de Concessão de Plenos Poderes que suspendia a constituição de Weimar e dava a Hitler plenos poderes. Assim se selava o fim de uma época na qual Berlim tinha sido uma metrópole pulsante e cosmopolita, cuja agitação interior se espelhava de modo inigualável na música de Kurt Weill.

Goodbye to Berlin
A Berlim da república de Weimar (1919-1933) era uma espécie de laboratório da modernidade, no qual se negociava e testava a coabitação humana depois da catástrofe da primeira guerra mundial. Nela se libertava uma energia criadora, única em todo o mundo, e que atraía artistas de todas as áreas. Muitos pobres vieram também para esta cidade, na esperança de encontrar trabalho e sustento. Mas as possibilidades económicas de Berlim eram limitadas, pelo que sob a superfície animada da cidade se agitavam graves tensões políticas entre grupos extremistas com um peso cada vez maior. Neste clima febril, o judeu Kurt Weill, proveniente de Dessau e com experiência de teatro musical, procurava o som adequado ao seu tempo. O seu professor Busoni tinha-lhe dado como conselho não temer o "banal" e estender as antenas para o "hoje". As antenas de Weill dirigiram-se à rua, à "estrada lavrada do quotidiano". O meio em que vivia inspirava-lhes não apenas os temas, mas também a diversidade de forma e géneros, a partir dos quais ele criou um estilo próprio de canção, "corais a partir do lodo" - como lhe chamou Hans Heinz Stuckenschmidt -, nos quais dá forma musical a pessoas de carne e osso, aos seus problemas e preocupações. Weill estava no pulso do seu tempo.
O trabalho com Bertolt Brecht revelou-se extremamente proveitoso, e foi muito bem acolhido pelo público. Contudo, diferenças de ordem política, artística e pessoal complicaram a relação de tal modo que se viram obrigados a separar-se. A situação política na Alemanha atingiu Weill duramente: grupos nazis de provocação perturbavam os seus espectáculos com distúrbios e a crítica - cada vez mais comprometida com o poder - começou a ser-lhe desfavorável, pelo que não lhe restou outra alternativa senão encarar a realidade de frente e fugir para França.

A vida parisiense
Mesmo antes de emigrar, Weill já era muito conhecido e apreciado em Paris. Não apenas devido à Ópera dos Três Vinténs, mas também por causa de um célebre concerto com peças da Mahagoni e de Der Jasager que dera na Salle Gaveau em 1932. Entre o público encontravam-se famosos representantes da vida parisiense (Strawinsky, Milhaud, Cocteau, Picasso, Léger, Gide e a mecenas princesa Polignac, que logo encomendou a Weill a sua segunda sinfonia).
Nos primeiros tempos em Paris, Weill trabalhou numa encomenda da companhia de ballett de George Balanchine, e na peça Die Sieben Todsünden, último trabalho em colaboração com Brecht. Apesar desse início auspicioso no novo país, esta foi uma das fases mais amargas da vida de Weill: a perda da pátria, o fim do contrato com a sua editora, o congelamento das suas contas bancárias pelos nazis, e o divórcio de Lotte Lenya. Mas Weill não se deixou abater, e começou a trabalhar na sua primeira opereta, Der Kuhhandel. Vambery, um libretista de origem húngara que já tinha trabalhado em Berlim no famoso teatro do Schiffbauerdamm, apresentou-lhe o projecto de uma opereta que o entusiasmou, chegando a escrever a Lotte Lenya: "Estou muito confiante nesta peça, porque há muito não trabalhava com tanta facilidade".
Em Paris, Weill encontrou-se com o espírito das operetas de Offenbach que, nas suas próprias palavras, "é desde há décadas o modo de diversão mais apetecido e rentável, porque corresponde ao gosto de vários grupos sociais, uma vez que tem tudo o que agrada às massas: humor, dramatismo e sentimentalismo - palavra, dança e música."
O que, para muitos, torna as operetas de Offenbach tão especiais, é o que se pressente em surdina sob toda a alegria do espectáculo, e que nos conduz a outros planos. Segundo Karl Kraus, "a verdadeira música destas operetas é a anarquia como a única constituição mundial moral e digna da humanidade". A ordem social estabelecida é posta em causa, sem que seja derrubada. Para Walter Benjamin, estas operetas chegam a ser atravessadas pela utopia da desobediência civil: "O segredo de Offenbach: como no mais pleno absurdo da ordem pública - seja a da alta sociedade, a de um palco de dança ou a de um estado militar - se ousa um olhar sonhador sobre a ordem plena de desordens privadas".
Também na opereta Der Kuhhandel se sonha um sonho de desordem privada por oposição à ordem de um estado militar - e tal como em Offenbach, sente-se que na peça de Weill fervilha sob a superfície uma música anarquista, "verdadeira", que responde com urgência aos acontecimentos políticos da época.

Como não podia deixar de ser: bananas
Dois Estados que coexistem numa ilha: Hispaniola, ilha partilhada pelo Haiti e a República Dominicana; em 1930, Rafael Trujillo conquistou o poder e começou a gerir o país com mão de ferro - como Conchaz. Um lobby de armamento que empurra os países para guerras: a indústria de armas europeia forneceu os dois lados da guerra de Chaco (Bolívia e Paraguai) entre 1932 e 1935.
Contudo, apesar das referências à América Latina, no centro das preocupações de Weill estava o seu próprio país, no qual era evidente o que um ditador autodenominado "homem forte" podia fazer, fascinando multidões com um programa político tão apelativo como "uma vaca para cada um". Nesse país, foram os lavradores aqueles que mais sofreram com a crise económica durante a república de Weimar, e também os que mais rapidamente aderiram à nova força política.
Weill optou por não diabolizar a figura do demagógico general Conchaz. Em vez disso, desloca o monstruoso para o sistema dos executores, mantendo o estilo opereta. No caso, o funcionário judicial que, ao abrigo do seu cargo, executa a penhora da vaca (a partir de 24:15). É aí que encontramos o verdadeiro horror do sistema: no modo como nós próprios quotidianamente nos adaptamos a determinada Ordem. A coragem civil de Juan, quando se rebela contra o sistema e esbofeteia o ditador, revela o carácter anárquico desta peça. Com muito humor brinca-se com o fogo, e este não chega a ser extinto, nem no final, quando tudo se resolve e Juan e Juanita podem enfim casar. O coro sobrepõe-se às outras vozes cantando "Não temos honra, não temos armas. Não temos segurança, oh, que alegria!"
A descoberta de que não há qualquer segurança nas relações políticas, e que estas se podem alterar rapidamente, revela uma verdade que é escandalosa numa opereta. Mas, no fundo, é a única lição a tirar do "dia de Potsdam".


***

Nota sobre o vídeo no início deste post: esta não é a Kuhhandel que está agora na Komische Oper, mas um conjunto de canções que antecederam a versão mostrada em 1935 na Inglaterra. Para tentar agradar ao público inglês, foram tiradas peças fundamentais como a "canção do Faraó", na cena em que Juan trabalha arduamente na cidade. "A Kingdom for a Cow", uma versão mais mansa e em inglês, mais comédia musical que crítica social, não vingou. Weill acabou por se distanciar dela, sem terminar a versão alemã. Depois da morte do compositor, Vambery fez uma revisão do libreto (o comerciante de armas americano passou a ser Felipe Chao, por exemplo), e Lys Simonette, que trabalhara com Weill, completou as partituras. A versão alemã desta opereta foi apresentada pela primeira vez ao público em Bautzen, em 1994. Sobre a versão inglesa, pode-se ler uma crítica (em inglês) aqui. Sobre a peça, mais informações (em alemão) aqui.

Para quem está em Berlim e fala alemão: a opereta passará de novo na Komische Oper na próxima terça-feira,  às 19:30.


5 comentários:

Unknown disse...

Desta nunca tinha ouvido falar, obrigada pela divulgação, Helena, e pela descrição do espectáculo. Deu para perceber a sua emoção.

Estavam lá câmaras de televisão? Às vezes o 3Sat dá-me uns presentinhos:)

PPR disse...

Olá! Gostava muito que visitasse o meu blog e deixasse a sua opinião. Se gostar partilhe-o pelos seus leitores :)
http://umbrindeafrustracaodacondicaohumana.blogspot.pt/

Helena Araújo disse...

Maria B,
não vi filmagens. É pena, porque esta opereta merecia bem toda a divulgação.

calita disse...

Que belo serviço público faz este bolo. Um bem haja para ti Helena (ainda não se sabe como é que podes ser tu a mandar, pois não?)

Helena Araújo disse...

:)
Como dizia a outra: "cuidado com o que desejas"...