Fiquei tão contente com um programa de rádio que ouvi há dias na Deutschlandradio Kultur, que resolvi traduzi-lo aqui (rapidíssimo, que a minha vida é um bocadinho mais que isto):
KURSIV International: Hasan Cemal: "1915. Ermeni Soykirimi (O Genocídio dos Arménios)"
De Gunnar Köhne
Ao longo dos anos, o genocídio dos arménios tem sido um tema tabu da História na Turquia. Um tabu com o qual também o jornalista Hasan Cemal cresceu. No seu livro "1915. O Genocídio dos Arménios" conta o seu confronto pessoal com o genocídio, as questões que se coloca a si próprio e o que aprendeu.
Na capa vê-se o autor, na vasta sala do memorial do genocídio em Yerevan, depondo cravos brancos junto à chama eterna. Há cinco anos, Hasan Cemal visitou a cidade integrado na comitiva do presidente turco Gül. Uma viagem histórica, por ocasião de um jogo de futebol entre a Arménia e a Turquia. O colunista do Milliyet lembra-se de ter ponderado longamente sobre uma visita a esse memorial:
"Sentia que isso rasgaria um tabu profundamente enraízado em mim. Mas lembrei-me das palavras de Hrant Dink, que disse ao povo turco: 'Sejamos capazes de nos unir e de, por fim, mostrar respeito mútuo pela nossa dor'."
Hrant Dink, amigo e colega de Cemal, tinha sido morto a tiro um ano antes, numa rua de Istambul - por ser arménio, e por lutar tanto pela reconciliação entre arménios e turcos como pela verdade histórica. O livro "o Genocídio dos Arménios" é-lhe dedicado. Cemal escreve logo no início que foi esta morte violenta que lhe deu o impulso decisivo para se confrontar intensamente com este capítulo sinistro da História do seu país. O livro trata deste doloroso processo de reconhecimento, que inclui a história da sua própria família. Ao contrário do que o título nos faz pensar, não é um trabalho sobre a expulsão e o assassínio de talvez mais de um milhão de arménios, durante a primeira guerra mundial, pelo regime otomano em declínio. Já tudo foi dito e escrito sobre o planeamento e a execução deste genocídio - e, mesmo na Turquia, só os nacionalistas mais extremos põem em causa os factos históricos. O que mais surpreende no livro é o facto de não ter provocado praticamente qualquer controvérsia - revela uma mudança histórica na Turquia. Ainda há poucos anos Cemal foi processado por apoiar a realização de uma conferência de historiadores sobre este tema, por alegada contribuição para "denegrir a identidade turca". Lembra vários acontecimentos trágicos que o abalaram. Por exemplo, nos anos 70 um amigo próximo, que era diplomata nos EUA, foi assassinado pela organização arménia clandestina ASALA, num acto de vingança tardia pelo genocídio. E também se lembra disto: na casa da sua família falava-se muito pouco do avô paterno, Cemal Pascha, e ainda menos da causa da sua morte. Cemal Pascha era um dos chefes dos Jovens Turcos, e comandante do exército durante a primeira guerra mundial. Em 1922, na cidade de Tbilisi na Geórgia, foi morto a tiro por um arménio devido à sua participação no genocídio. Durante a sua visita a Yerevan, Hasan Cemal, o neto do militar criminoso, encontrou-se com o neto do assassino daquele.
"A princípio estava um pouco nervoso. Armen Gevorgyan tinha trazido duas fotografias, amareladas e com os cantos já gastos, cheirando a tristeza. Na primeira via-se a casa onde o seu avô vivera até 1915. Na segunda via-se um turco barbudo que salvara das torturas e da deportação duas crianças arménias, parentes do avô de Gevorgyan. Escondeu-as durante dois anos, no fim dos quais as entregou sãs e salvas à família. Estávamos sentados frente a frente, bebemos chá e café e falámos da necessidade de uma Paz. Trocámos os nossos números de telefone. Da próxima vez que vier a Istambul vai-me ligar, e vou levá-lo a comer peixe e beber raki no Bósforo."
Hasan Cemal, nascido em 1944, cresceu na república de Kemal Atatürk. Como todos os outros, aprendeu muito na escola sobre as conquistas da moderna Turquia. O império otomano não chegava a ser tema. Também não se falava dos povos que tinham habitado e habitavam ainda a região da actual Turquia: curdos, gregos, caucasianos e, claro, arménios. E muito menos se falava das injustiças cometidas contra estas minorias. Cemal chama a estes tabus "o medo da História".
"Quem olha para o passado com compaixão em vez de ódio consegue libertar não apenas a História das suas correntes, mas também a si próprio."
Na qualidade de neto de um dos criminosos, Cemal tem passado muito tempo dos últimos anos no estrangeiro, a contactar com a diáspora arménia. Em Salzburgo ou em Los Angeles, ouve pacientemente os testemunhos chocantes de descendentes das vítimas. Muitos deles estão reunidos no livro. É um livro honesto - especialmente no que diz respeito à família de Cemal. Só incomoda um pouco o facto de estar demasiado escrito na primeira pessoa, e ter tantas referências a artigos seus. Contudo, para os 20.000 arménios que continuam na Turquia é consolador saber que há turcos influentes e liberais como Hasan Cemal. Em 2015 lembrarão no mundo inteiro o centenário da "Grande Catástrofe" - o nome que dão ao genocídio. Será que até lá a Turquia vai conseguir fazer as pazes com os arménios e a sua História? Pessoas corajosas como Hasan Cemal podiam ajudar.
Hasan Cemal: "1915. Ermeni Soykirimi (O Genocídio dos Arménios)", Edições Everest Yayinlari (Istanbul) 2012, 230 páginas, 11,99 Euro
"Sentia que isso rasgaria um tabu profundamente enraízado em mim. Mas lembrei-me das palavras de Hrant Dink, que disse ao povo turco: 'Sejamos capazes de nos unir e de, por fim, mostrar respeito mútuo pela nossa dor'."
Hrant Dink, amigo e colega de Cemal, tinha sido morto a tiro um ano antes, numa rua de Istambul - por ser arménio, e por lutar tanto pela reconciliação entre arménios e turcos como pela verdade histórica. O livro "o Genocídio dos Arménios" é-lhe dedicado. Cemal escreve logo no início que foi esta morte violenta que lhe deu o impulso decisivo para se confrontar intensamente com este capítulo sinistro da História do seu país. O livro trata deste doloroso processo de reconhecimento, que inclui a história da sua própria família. Ao contrário do que o título nos faz pensar, não é um trabalho sobre a expulsão e o assassínio de talvez mais de um milhão de arménios, durante a primeira guerra mundial, pelo regime otomano em declínio. Já tudo foi dito e escrito sobre o planeamento e a execução deste genocídio - e, mesmo na Turquia, só os nacionalistas mais extremos põem em causa os factos históricos. O que mais surpreende no livro é o facto de não ter provocado praticamente qualquer controvérsia - revela uma mudança histórica na Turquia. Ainda há poucos anos Cemal foi processado por apoiar a realização de uma conferência de historiadores sobre este tema, por alegada contribuição para "denegrir a identidade turca". Lembra vários acontecimentos trágicos que o abalaram. Por exemplo, nos anos 70 um amigo próximo, que era diplomata nos EUA, foi assassinado pela organização arménia clandestina ASALA, num acto de vingança tardia pelo genocídio. E também se lembra disto: na casa da sua família falava-se muito pouco do avô paterno, Cemal Pascha, e ainda menos da causa da sua morte. Cemal Pascha era um dos chefes dos Jovens Turcos, e comandante do exército durante a primeira guerra mundial. Em 1922, na cidade de Tbilisi na Geórgia, foi morto a tiro por um arménio devido à sua participação no genocídio. Durante a sua visita a Yerevan, Hasan Cemal, o neto do militar criminoso, encontrou-se com o neto do assassino daquele.
"A princípio estava um pouco nervoso. Armen Gevorgyan tinha trazido duas fotografias, amareladas e com os cantos já gastos, cheirando a tristeza. Na primeira via-se a casa onde o seu avô vivera até 1915. Na segunda via-se um turco barbudo que salvara das torturas e da deportação duas crianças arménias, parentes do avô de Gevorgyan. Escondeu-as durante dois anos, no fim dos quais as entregou sãs e salvas à família. Estávamos sentados frente a frente, bebemos chá e café e falámos da necessidade de uma Paz. Trocámos os nossos números de telefone. Da próxima vez que vier a Istambul vai-me ligar, e vou levá-lo a comer peixe e beber raki no Bósforo."
Hasan Cemal, nascido em 1944, cresceu na república de Kemal Atatürk. Como todos os outros, aprendeu muito na escola sobre as conquistas da moderna Turquia. O império otomano não chegava a ser tema. Também não se falava dos povos que tinham habitado e habitavam ainda a região da actual Turquia: curdos, gregos, caucasianos e, claro, arménios. E muito menos se falava das injustiças cometidas contra estas minorias. Cemal chama a estes tabus "o medo da História".
"Quem olha para o passado com compaixão em vez de ódio consegue libertar não apenas a História das suas correntes, mas também a si próprio."
Na qualidade de neto de um dos criminosos, Cemal tem passado muito tempo dos últimos anos no estrangeiro, a contactar com a diáspora arménia. Em Salzburgo ou em Los Angeles, ouve pacientemente os testemunhos chocantes de descendentes das vítimas. Muitos deles estão reunidos no livro. É um livro honesto - especialmente no que diz respeito à família de Cemal. Só incomoda um pouco o facto de estar demasiado escrito na primeira pessoa, e ter tantas referências a artigos seus. Contudo, para os 20.000 arménios que continuam na Turquia é consolador saber que há turcos influentes e liberais como Hasan Cemal. Em 2015 lembrarão no mundo inteiro o centenário da "Grande Catástrofe" - o nome que dão ao genocídio. Será que até lá a Turquia vai conseguir fazer as pazes com os arménios e a sua História? Pessoas corajosas como Hasan Cemal podiam ajudar.
Hasan Cemal: "1915. Ermeni Soykirimi (O Genocídio dos Arménios)", Edições Everest Yayinlari (Istanbul) 2012, 230 páginas, 11,99 Euro
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