10 outubro 2012

a propósito de um casaco...

Muito se falou ontem do casaco que a Angela Merkel usou em Atenas, por ter sido o mesmo que usara no jogo de futebol em que a Alemanha deu 4-2 à Grécia.



Afirmou-se que foi intencional: ela queria humilhar a Grécia.
Ora bem: esta mulher ontem correu risco de vida (ou alguém tem dúvidas?) para ir ao lugar onde é mais odiada, dizer que a Alemanha está com a Grécia. Reafirmou o seu apoio ao governo grego para que a Grécia permaneça no Euro. Foi falar, e ouviu - e com ela, todo o povo alemão: nos noticiários televisivos de ontem, na Alemanha, falou-se largamente das dificuldades terríveis que a Grécia está a atravessar.
- Como é que essa teoria da humilhação encaixa nestes factos?

Disse-se que ela não tem gosto nenhum para se vestir, e que isso não admira, porque foram muitos anos de educação no bloco de Leste.
Quando ouço coisas destas, fico com o cérebro como um quartel de bombeiros quando soa o alarme. Se há coisa que eu apreciei quando morei numa cidade do antigo bloco de Leste, foi a falta de valorização desse tipo de estética. É uma libertação, podem crer. Os meus filhos podiam ir para a escola sujos, esfarrapados, com as cores todas mal combinadas - ninguém dizia nada. Mas perguntavam-se porque é que determinado rapazinho (que tinha vindo de Munique) tinha necessidade de ir para a escola com pólos Ralph Lauren, calças Lewis, sapatos Timberland. Entre as duas tiranias (a de não usar marca para poder pertencer à matilha, ou a de usar marca para poder pertencer à matilha), prefiro a primeira. É mais barata, e dá mais margem para descobrir um estilo pessoal.
Lembro-me de um concerto de piano, em casa da professora da Matthias, no qual ela apareceu muito bem vestida - com roupa que estava na moda nos anos oitenta. Foi um bocado surpreendente (a gente não espera aqueles ombros descomunais, aquelas lapelas de casaco) mas ao fim de uns momentos percebi que o assunto não tinha importância nenhuma. E mais: não é possível falarmos em protecção do ambiente, estilo de vida sustentável, etc. e mudarmos todo o guarda-roupa sempre que a moda muda.
Havia no bloco de Leste valores muito positivos, que bem podíamos aprender - em vez de largarmos este tipo de comentários sobre eles.

Falaram dos casacos horríveis que ela veste. Pois, longe vão os tempos em que o Hugo Boss desenhava os uniformes da SS...
[Adenda: não é verdade que o Hugo Boss tenha desenhado esses uniformes - a fábrica Hugo Boss limitou-se a produzi-los, a partir do desenho encomendado]

Os "casacos horríveis" são um uniforme. Tem aquela dúzia de casacos todos com o mesmo corte mas em cores diferentes, duas t-shirts (uma preta e uma branca) e três ou quatro colares. Alguém inventou para a Angela Merkel uma roupa de trabalho, e tiveram particularmente cuidado com o comprimento do casaco - dantes, ela vestia uns casacos curtos que lhe ficavam mesmo muito mal.
Ela veste o uniforme sem perder um único neurónio a pensar nisso - como se viu, ao levar a Atenas o mesmo casaco que levara ao tal jogo. Tem coisas mais importantes em que pensar.
E acho muito bem - para fazer um gostinho aos olhos e para ter um registo das ocasiões em que vestiram o quê, temos a Máxima na Holanda, a Letícia em Espanha, a Catherine no Reino Unido, as Marias na Dinamarca. Mas essas só têm de se apresentar bonitinhas e de bico fechado, não têm nas mãos o futuro da Europa.    

Chamaram-lhe gorda. Lá vem outra vez a sirene dos bombeiros...
Primeiro, as mulheres que criticam a Angela Merkel por ser gorda: porque será que as mulheres são extraordinariamente venenosas contra outras mulheres? E como lhes ocorre criticar assim o excesso de peso de uma mulher? Não saberão que também lhe pode acontecer a elas?
Segundo, a sociedade inteira que acha graça: como é possível neste nosso princípio do séc. XXI usarem o aspecto físico para desvalorizarem uma mulher? E porque é que a sociedade trata assim as mulheres, e protege os homens?
O Helmut Kohl, por exemplo, o homem que entendeu a breve janela de oportunidade que se abriu no dia 9 de Novembro de 1989, sentiu a urgência do momento, e conseguiu a reunificação da Alemanha (um país que estava ocupado e sob custódia há mais de quarenta anos) em menos de onze meses. Alguém se lembrou de lhe chamar gordo mal vestido? Mesmo agora, que se vê que esta Alemanha forte pode ser um perigo para a Europa, que se vê que o Euro mal alinhavado (e aceite assim por Kohl como preço a pagar para a França autorizar a reunificação) está a provocar problemas gravíssimos: quando criticam a acção do Kohl, alguma vez se referem a ele como aquele gordo mal vestido?


E como o corte na casaca é como as cerejas, acabaram a falar do célebre decote no vestido que usou para ir à ópera em Oslo. Para além do óbvio "ainda bem que ninguém tem outros problemas na vida", só me ocorre um comentário: espero que nunca vos aconteça viverem permanentemente rodeados de fotógrafos prontos a fazer a pior fotografia possível de vocês.

Grrrr.

18 comentários:

Izzie disse...

Enche-me de urticária, esta coisa de os comentários sobre mulheres líderes começarem sempre pelo que vestem ou deixam de vestir, e respectivo aspecto físico. Então os homens, também não andam sempre de igual? É uma farda, uma farda! Se a senhora não gasta em fardas versace, melhor para ela, somos do mesmo clube.
Discutam ideias, não farpelas.
(sou suspeita, claro, que hoje - e quase sempre - também estou de farda. há lá coisa mais adequada e menos cansativa que enfiar um fato nondescript? isto é trabalho, não uma passagem de modelos, e uma etiqueta não define a minha competência, nem disfarça a falta dela)

Rita Maria disse...

Sobre as intenções dela ao visitar a Grécia, a sua "compreensão" para com as dificuldades que o povo grego atravessa e o seu mandato para falar sobre o futuro do país desconfio que só concordaremos daqui a dez anos, de viermos um dia a concordar. O Tagesschau escrevia como se as manifestações que a receberam fossem absolutamente absurdas - é como se reportassem a partir de uma bolha.


Mas sobre o resto estou totalmente de acordo e acho maravilhoso que alguém o tenha escrito.

Helena Araújo disse...

Izzie: pois!

Rita: :) e :)
( pelo desacordo é que vamos / comovidas e mudas / chegamos? não chegamos? / haja ou não haja frutos / pelo desacordo é que vamos )

snowgaze disse...

Em relação à roupa, que em relação às políticas estou como a Rita, a ver vamos.
Se calhar o mero facto de se escrever sobre a roupa da Merkel porque não devia ser facto comentável é cair no mesmo, escrever sobre o molhado. De qualquer maneira, é verdade que ela não se veste muito bem e que tem uma figura quadrada, vá lá. Mas também é verdade que ninguém critica um político homem por usar o mesmo fato, nem que o use todos os dias. Já quanto à figura, olha que tanto o Obama como o Sócrates, e às vezes até o PPP (não consigo escrever o nome dele, os dedos fogem-me para outras coisas) são muitas vezes alvo de críticas de admiração precisamente por fugirem ao estereótipo do político feio e com má figura física.
A Merkel teve o azar (ou não) de conduzir a Alemanha numa altura muito relevante, numa época em que há muita gente a vender jornais e revistas à custa das fotos da roupa que ela veste e se calhar as políticas que defende e implementa vendem menos (ou simplesmente estão dirigidas a outro mercado, e quanto mais se puder vender, melhor). De qualquer forma, a julgar pelo que vejo, ela está-se marimbando (e faz muito bem) para o que dizem sobre a roupa dela.

Anónimo disse...

A rapaziada adora uma conversa de trapinhos.
«Miguel Lopes e Casillas: t-shirts que dão que falar.» http://www.maisfutebol.iol.pt/seleccao/casillas-miguel-lopes-t-shirts-portugal-espanha-maisfutebol/1381989-1194.html

Rita Maria disse...

A parte mais incrível é que isto são coisas que a esquerda feminista diz como se não fosse nada. Gostava de ver a cara que faziam se eu me lembrasse de caracterizar assim por exemplo aCatarina Martins, deputada que Francisco Louçã nomeou Catarina Martins para a liderança bi-céfala do Bloco de Esquerda:

A Catarina só é tão ressabiada porque é muito feia. Tem a pele velha, demasiados cabelos brancos para a idade e o corte de cabelo mais feio do Parlamento. Tem olhos salientes, nariz de batata e lábios feios. Não há nenhum colar de Catarina Martins que eu tivesse usado voluntariamente depois dos quinze anos. Não sabe escolher soutiens, é uma nódoa a por écharpes, aliás nunca foi vista com roupa que a favorecesse, ainda usa chumaços, pelo amor da Santa.

Pergunto-me se perceberiam então porque é que isto é tão chocante.

jj.amarante disse...

Essa conversa do casaco e da gordura tem pouco interesse embora estejamos aqui a falar disso...

Continuo sem perceber o que foi a Merkel fazer à Grécia.

Por cá o Unibanco continua a oferecer-me passar o tecto do meu cartão de crédito para a conta à ordem, com juros de TAEGs entre os 26,9% e os 31,5%. Sinto-me imensamente feliz de viver numa sociedade com tanta liberdade em que posso ter acesso a este consumo fácil.

Sendo a austeridade tão indispensável e sem nenhuma alternativa não seria boa ideia proibir estes contratos leoninos que são bem capazes de extorquir dinheiro aos analfabetos funcionais do nosso país?

Gi disse...

Gostei deste teu desabafo. Ao contrário de muita gente, eu não antipatizo nada com Angela Merkel. Gostei imenso que ela tivesse levado aquele vestido decotado à ópera de Oslo. Prefiro que use o "uniforme", como lhe chamas, que não lhe fica mal, do que se ponha a inventar (ou alguém por ela) coisas estapafúrdias.

Mas sabes que há homens cujo aspecto é comentado, o cabelo pintado de Schroeder, os fatos caros de José Sousa, as perucas de um antigo presidente da Câmara do Porto...

Isto remete-me à história d'"o careca, o alemão e o etíope" do Miguel Sousa Tavares, que provavelmente quis usar outros epítetos mas reconsiderou - felizmente.

Paulo disse...

Não tenho como não concordar em relação à indumentária, Helena. De resto, estou mais com a Rita.

mdsol disse...

Estamos, então, muito bem conversadas, Helena.

:))))

Helena Araújo disse...

Snowgaze, talvez eu esteja muito sensível, mas parece-me que vale tudo para dizer mal da Merkel, e nesse vale tudo vai também um respeito mínimo devido às mulheres. Sobra para todas...
É verdade que se fala de alguns políticos como especialmente jeitosos e bem vestidos. Mas não me lembro de ouvir falar dos homens políticos como gordos e mal vestidos.

Helena Araújo disse...

Rita,
pois é. Nem sequer se lembram do batido "vieram pelos comunistas, e eu não disse nada..."

Helena Araújo disse...

jj. amarante,
parece que ninguém percebe. Eu ouvi alemães e gregos dizer que foi dar um sinal aos mercados e aos investidores - um sinal de que a Alemanha não deixa a Grécia cair -, e que foi falar, mas também ouvir.

A Rita ouviu outras coisas.

Sobre esses créditos: não sei que lhe diga. A última vez que andaram a discutir coisas desse género, disse-se muito que as pessoas são adultas e informadas, e que o Estado não devia vir com proibições paternalistas. Mas eu, sinceramente, estaria de acordo com essa proibição.

Helena Araújo disse...

Gi,
estava há bocadinho a responder à snowgaze, e pensei "mas onde será que ouvi essa história da peruca?"
Bem, parece-me que vou ter de moderar a minha zanga. Parece que afinal estamos a caminhar na direcção certa: num futuro próximo, todos - homens e mulheres - serão criticados por questões de imagem...

jj.amarante disse...

Ainda sobre os cartões de crédito, julgo que na lei geral existe qualquer coisa contra "contratos leoninos", em que uma das partes é claramente prejudicada. Há também uma analogia com a obrigatoriedade do uso dos cintos de segurança, consistente com a existência de um serviço nacional de saúde que teria que suportar as reparações agravadas consquências dos danos adicionais causados num desastre pela falta do uso do tal cinto. Se não vamos deixar a família morrer à fome porque as cabeças do casal contraíram créditos leoninos temos que pensar em limitar essa possibilidade. Aliás a direita costuma dizer quem não tem dinheiro não tem vícios, porque é que então há de ter estes créditos?

Helena Araújo disse...

jj. amarante,
parece-me que tem toda a razão.

Gi disse...

Helena, não é talvez a direcção certa, mas não será seguramente num futuro próximo mas já hoje: a nossa sociedade é completamente subordinada à imagem. Eu que o diga, que tenho visto profissionalmente tanta gente torturar-se por não ter a aparência que deseja.

Helena Araújo disse...

Gi, mais um motivo para levantarmos a voz contra essa ditadura.