12 setembro 2012

enquanto isso, na Alemanha...



Continua a fazer-me imensa confusão o que se diz em Portugal sobre o que se diz na Alemanha. Nada como a fantasia, o preconceito e a projecção psicológica para ocupar os espaços mantidos vazios pela ignorância.

Por estes dias, em que o Tribunal Constitucional deliberou sobre a entrada da Alemanha no Pacto do Euro (lembro que antes do Verão deu um valente puxão de orelhas à Angela Merkel por andar a tomar decisões sobre como salvar o euro à revelia do normal funcionamento democrático alemão - e estava capaz de apostar com quem quiser que o normal funcionamento democrático alemão não teria resultados menos drásticos para os países do sul, muito pelo contrário), por estes dias, dizia, a revista Stern tem andado numa extraordinária campanha a favor do euro.
Sobre a revista da semana passada já escrevi aqui.
Hoje dou-me de novo ao trabalho de traduzir (rapidamente, já se sabe) um artigo de opinião de Hans-Ulrich Jörges, da edição de 6 de Setembro.


Nota prévia: Konrad Lorenz escreveu "quando a bandeira adeja, a razão vai para a trompeta", referindo-se à ligação entre ideias nacionalistas e marchas militares. Há quem pense noutra "trompeta" quando se fala em "ter a razão na trompeta". Dado que neste texto nem sempre é claro a que trompeta é que o autor se refere, limitei-me a traduzir a palavra literalmente. Interprete o leitor como melhor aprouver à sua razão.


A razão na trompeta

A arrogância em relação ao euro tornou-se uma obstinação dos alemães. Começa a ser tempo de nos despedirmos dos ERROS e das ILUSÕES, tempo de perceber que só temos a ganhar com a Europa

Hans-Ulrich Jörges, Stern 6.9.2012

É insuportável. A burrice do orgulho nacionalista patente no barulho que envia a nossa razão para a trompeta. As tiradas depreciativas sobre os países do sul, recortadas como confetti para os títulos dos jornais - o sul que aprecia a sesta e só quer o nosso rico dinheiro. O clamor do jornal Frankfurter Allgemeine contra a inflação, que um banqueiro com passaporte falso e genes monetários de romano decadente vai lançar sobre nós. Estamos mergulhados na miséria do euro. A autocompaixão e a fúria tentam apoderar-se da alma alemã.
E que tal se tentássemos tirar a nossa razão da trompeta? Se começássemos a aceitar a Europa e a sua moeda frágil - defendê-la com tudo o que temos, com todos os que estão connosco, e contra todos os que a querem destruir? Se nos despedíssemos do nosso auto centrismo, dos erros e das ilusões que transportamos connosco vindos da era das paixões nacionais, quando o marco alemão funcionava para os alemães como substituto do patriotismo traído?
Começa com a ilusão de sermos os mestres e o modelo da Europa. Sim, foram os alemães que, no início do euro, impuseram aos outros países severos critérios de estabilidade. Mas também fomos nós os primeiros a dar o exemplo, no tempo do chanceler Gerhard Schröder, do impune desrespeito dessas regras. Espalhámos o veneno da dívida pública desordenada, do qual provaram os gregos, e não só. Hoje impomos à Europa poupanças públicas que estrangulam os países, mas nós próprios não poupamos um único cêntimo. Gastamos a rodos, alimentados por generosas fontes fiscais. Se tivéssemos de poupar como os espanhóis, a nossa cómoda partidocracia rebentava.
Além disso, acreditamos que, por termos a economia mais poderosa do continente, nada de importante deve ser decidido à nossa revelia. Por termos as bolsas mais recheadas, concedemo-nos um poder de veto. O que é insustentável. Os outros podem organizar maiorias contra nós - temos de suportar isso.
E temos de ter a superioridade de sermos capazes de reconhecer que os outros podem ter razão. No Banco Central Europeu isso já aconteceu. O presidente do Banco Central Alemão, Jens Weidmann - isolado no conselho do BCE, com apenas um voto, tal como o colega de Malta - agita-se contra a compra de títulos da dívida de Estados em dificuldade, para baixar a pressão dos seus juros. Se fosse ele a mandar, o euro já não existia. Que sorte termos o italiano Mario Draghi à frente do BCE! Defendeu o euro dos ataques de especuladores anglo-americanos, de forma enérgica e criativa. O que é um óptimo motivo para repensarmos os nossos preconceitos sobre os dirigentes que há no Sul.
É também motivo para enterrarmos o mito do Banco Central Alemão. O banco central de uma região cuja moeda está em crise não se pode restringir à luta contra a inflação. Porque, primeiro: apesar da gritaria, nada indica que haja inflação - a desvalorização monetária na Alemanha anda pelos 2%. Segundo: no passado, o Banco Central Alemão também agiu de forma política. Em 1992 e 1993 injectou milhares de milhões para defender o sistema monetário europeu contra ataques especulativos. O então ministro das Finanças, Theo Weigel, recorda que num intervalo de quatro semanas foram entregues em segredo 90 mil milhões de marcos à França, para estabilizar o franco. Desde a crise financeira de 2008, o Banco Central americano já comprou a Washington títulos no valor de mais de 2,3 biliões de dólares.
Podemos, ou melhor, devemos ajudar a suportar as dívidas dos nossos parceiros? Os tratados europeus proíbem-no, mas já o fazemos há muito. Os pacotes de salvação para a Grécia, Espanha, Portugal e Irlanda não são outra coisa. Tal como as compras de títulos pelo Banco Central Europeu, cujo risco é partilhado por todos. O que está correcto. Se formos capazes de quebrar o ciclo de endividamento e de controlar melhor as finanças europeias, podemos até aceitar os Eurobonds (títulos de reembolso da dívida) e mesmo uma isenção da dívida. Nesse caso, sim.
O nosso grande erro consiste em pensar que podemos invadir o mundo inteiro com as nossas exportações, com salários baixos e uma cotação do euro favorável, sem ajudar os europeus que compram os nossos carros e as nossas máquinas. Temos o maior interesse em manter a liquidez dos nossos clientes. O regresso ao marco provocaria uma valorização de cerca de 40% - colapso nas exportações, desemprego de milhões. Os nossos empréstimos de auxílio também estariam perdidos. O marco ficaria mais caro, e tornar-se-ia o nosso castigo.
O euro foi um projecto político, e foi a condição imposta aos alemães para autorizar a reunificação da Alemanha. Hoje é também uma garantia da economia, base do nosso bem-estar. Com a Grécia. A seguir, com a Polónia. E um ano destes com a Turquia de economia emergente.    

***

Traduzi. Não concordo com tudo. Sobre certos pontos poderia argumentar de outra maneira. Mas dá uma ideia do que anda a ser debatido na Alemanha. Convinha que nos outros países se levantassem vozes para se unir a esta (e para a completar, e para se contrapor a ela no que for necessário).


2 comentários:

Rita Maria disse...

Eu não sei tudo o que "se diz em Portugal sobre o que se diz na Alemanha" e concordo no geral com as tuas críticas tanto ao anti-germanismo primário como à disseminação da ignorância.

Mas neste caso parece-me que o autor escreve na convicção de que está a escrever contra a mentalidade geral, o que significa que ou ele está muito enganado ou a mentalidade geral (“ tiradas depreciativas sobre os países do sul, recortadas como confetti para os títulos dos jornais - o sul que aprecia a sesta e só quer o nosso rico dinheiro”; “O clamor do jornal Frankfurter Allgemeine contra a inflação, que um banqueiro com passaporte falso e genes monetários de romano decadente vai lançar sobre nós”; “autocompaixão e a fúria”; “a ilusão de sermos os mestres e o modelo da Europa”) existe.

E eu já discuti isto com muitos alemães e esta mentalidade existe. Aliás, as sondagens mais recentes não mentem (1,2) - não acho que eles sejam menos vítimas de propaganda que os portugueses que acham que estamos aqui porque "gastamos acima das nossas possibilidades", mas não vale fazer de conta que a excepção é a regra e a regra a excepção.

Helena Araújo disse...

Também pensei nisso, claro.
Mas parece-me que isto não é uma questão de "mentalidade geral". É um problema de populismo. Se as questões das sondagens fossem "pensa que a Grécia deve sair do euro, mesmo que isso provoque a implosão do sistema euro e uma crise brutal para a Alemanha?", as respostas seriam outras. Agora, se me perguntam: "acha que a Grécia devia deixar de nos chatear, e tratar de resolver os seus problemas sozinha?", aí...

De um modo geral, as tiradas populistas tipo "os do sul são preguiçosos" e "a Grécia que pague a sua crise" são muito criticadas no palco político. Leio repetidamente notícias, artigos de opinião e entrevistas em que se tenta chamar os populistas à razão: a Alemanha não é "apenas vítima", também ganhou e ganha com a situação, e também tem muito a perder se recusar a sua solidariedade.

O que me incomoda muito nesta argumentação é o egoísmo: temos de ajudar, senão estamos tramados. Preferia que fosse assim: temos de ajudar, porque da nossa ajuda dependem a Paz e o bem-estar geral.