29 agosto 2012

o passeio dos alegres (4)



Sábado.
Saímos de casa um bocadinho atrasados, pelo que foi uma correria até ao bunker de protecção civil. Até parecia que íamos a fugir a um bombardeamento aéreo...
Em Berlim existe uma associação, a Berliner Unterwelten e.V., que se dedica à investigação da vida debaixo da terra arenosa e pantanosa de Berlim: redes de água, electricidade, gás e esgotos, transportes públicos, sistema de tubagem para os correios, e até armazéns subterrâneos para manter a cerveja fresca. Os guias que até agora conheci sentem aquele projecto também como seu, falam sempre de "nós", e com um entusiasmo que chega a ser comovente. O que tivemos no sábado, numa visita em espanhol, conseguia misturar muito bem a leveza com a seriedade. Numa das primeiras salas mostrou um jogo infantil, que já no início da década preparava as famílias para a guerra. Com dados e peões, fazia os membros da família avançar ludicamente pelo cenário de um ataque inimigo: a ida disciplinada para o bunker, a cidade a arder, os soldados alemães a ganhar a guerra e a ir buscar a família ao bunker, para os levar sãos e salvos de volta ao seu apartamento, onde a mesa estava posta e de cuja janela se via uma linda torre de igreja e uma rua intacta. Aquilo é que os nazis tinham visão. Mostrou-nos as salas onde as pessoas esperavam pelo fim do bombardeamento, com velas a diferentes alturas para avisar da toxicidade do ar (quando a vela mais perto do chão se apagava, os adultos tinham de pôr as crianças sobre os seus ombros; quando a segunda se apagava, todos tinham de se levantar - numa sala às escuras, ouvindo as explosões lá fora...), contou que aquele bunker não tinha segurança nenhuma e não passava de um mero placebo, bem diferente dos que se construíam para proteger os militares, falou da falta de qualidade dos equipamentos de segurança (as máscaras de gás, por exemplo), das máscaras de gás inventadas para cães e cavalos como medida de propaganda enquanto para as mães de famílias numerosas (quatro e cinco filhos era o que o regime considerava mínimo satisfatório) não se inventou nada que lhes facilitasse o trabalho de cuidar para que todos os filhos sobrevivessem a um ataque. Numa sala viam-se os destroços das ruas, imaginava-se o que terá sido o trabalho daquelas mulheres a levantar a cidade a partir das ruínas (isto é a letra do hino da RDA) apenas com as suas mãos nuas. Numa das últimas salas mostrou um armário cheio de gavetas e fichas. "Ficámos muito felizes quando encontrámos isto num subterrâneo, porque são as fichas de trabalhadores escravos de uma empresa. Tentámos contactá-los. Os dos países ocidentais foram muito fáceis de encontrar, mas para os de leste foi dificílimo, porque eles tentaram esconder de todos que tinham estado em campos de concentração alemães, pois isso fazia deles traidores. Por terem trabalhado para o inimigo, apanhavam mais 28 anos num gulag. De modo que os sobreviventes dos campos de trabalho trataram de mudar de país e inventar um passado novo. Conseguimos encontrar alguns, e o Estado alemão deu-lhes uma indemnização por esse crime. Vimo-los chorar de felicidade, não pela quantia recebida, que pouco valor tinha, mas pelo seu enorme significado simbólico:  reconhecia que tinham sido vítimas e não traidores, como eram acusados pelo regime igualmente totalitarista do seu próprio país."
"Nós", dizia ele, e adivinhava-se um certo orgulho de fazer parte de um projecto que ajuda a fazer História: para além do que dela exibe num museu, muda o seu curso.


Saímos do bunker, e fomos comer a obrigatória curry wurst para um parque em frente. Não sei como, a conversa foi parar às mães e às manias das limpezas da casa. Criança sofre... Confessei-lhes a minha falta de vontade para me chatear com o aspecto do quarto dos meus filhos, e para repetir mil vezes "façam isto, façam aquilo". De modo que quando daí a pouco disse (na brincadeira - ouviram, pais?) que os adoptava a todos, recebi um coro de interjeições entusiásticas. (Bom, para não criar problemas na casa de ninguém,  cortes na mesada e assim, adianto que nem todos acharam boa ideia, mas não digo quem foi, in dubio pro reo - perceberam, pais?).
(Entretanto, estamos neste apartamento há cinco dias, dez pessoas e um cão, e ainda ninguém limpou nada, nem vai limpar - tenho a certeza que depois disto estes jovens vão olhar para a limpeza e a ordem das suas casas com muito maior apreço - ora essa, de nada, pais, o prazer foi todo meu.)




 (ai se os pais sabem o que os filhos andam a comer...)


 (...é um autêntico caso de polícia!)

Estávamos em Wedding, seguimos para Prenzlauer Berg. É o bairro ao lado, todo um outro mundo. Passeámos no mercado da Kollwitzplatz, eles descobriram uma filial móvel - ao que parece - da Vida Portuguesa. Também encontraram lá uma invenção fantástica para a cozinha, e duas miúdas seguiram caminho a fazer contas de cabeça sobre montar um negócio assim em Portugal. Parámos no stand de um vendedor de postais que os fazia ele próprio - postais diferentes de Berlim, porque ele fotografa fachadas engraçadas (e se as há, nesta cidade!) ou partes de letreiros de lojas que formam palavras cheias de sentido ("vida", por exemplo, "Leben", que é apenas o princípio da palavra Lebensmittel, usada na tabuletas de muitas mercearias).






Vimos a sinagoga na Rykestrasse, a torre redonda que era um depósito de água e é agora um prédio de apartamentos, o parque de aventuras onde os miúdos podem construir as suas próprias casas de madeira, as casas antigas renovadas segundo os interesses e o poder económico dos novos moradores, os Wessis (falei-lhes dos conflitos sociais devidos a esta invasão dos ricos, claro), as casas ainda por arranjar de onde um dia sairão os moradores que as souberam proteger do regime comunista mas não se sabem defender do poder do dinheiro.









Seguimos para a Alexanderplatz, onde parámos para ver o bungee jumping ("estes romanos são loucos!"). Uma das miúdas do grupo foi apanhada para participar numa sessão de teatro improvisado - e sinto como falha minha não ter mandado passear o mimo que organizava o show, um rapaz extremamente desagradável, que dava as ordens aos assobios e nos tratava sem respeito. Ainda pensámos em agarrar na miúda e fugir todos num momento em que ele não estava a olhar, mas estas coisas precisam de uma capacidade de reacção muito rápida, o que não é o caso com um grupo de nove pessoas sentadas e espalhadas num semicírculo. Apesar da violência do momento, valeu a pena, pelo modo como os voluntários à força meteram o mimo na ordem e se recusaram a aceitar as ordens assobiadas. A miúda do nosso grupo fez todo um show de resistência passiva. Outro, a quem o mimo tinha atirado o chapéu para o chão para lhe dar um novo, agarrou no novo e lançou-o para longe. "Então que é isso?" assobiou o mimo, e ele limitou-se a apontar para o seu próprio chapéu no chão; o mimo foi buscá-lo, limpou-o e deu-lhe um assobiozinho como quem pede desculpa. E o terceiro, o cavaleiro andante que salva a donzela, recusou-se a fazer a fita de lhe dar um beijo à macho. Apesar das muitas assobiadelas que o mimo lhe deu, limitou-se a um beijo respeitoso na face. Admiro imenso essa capacidade de permanecer fiel aos seus princípios, mesmo numa situação em que tudo te incita a entrar no jogo e a deixar que façam contigo o que querem - e disse-o ao jovem cavaleiro andante, que agradeceu e cresceu logo ali dez centímetros.












A longa noite dos museus ia começar daí a pouco. Dirigimo-nos ao parque em frente à catedral, onde afinal não havia o piquenique internacional anunciado (estes alemães estão a ficar cada vez mais desorganizados...). 




Mas havia os rickshaws que nessa noite eram gratuitos para os participantes na longa noite (nós! hehehe), pelo que deixamos o Wowereit a falar sozinho no seu discurso de abertura do evento e fomos ter com os cinco primeiros da fila. Tivemos direito a uma pequena corrida pela ilha dos museus até à parte nova do museu de História, "um edifício do Pei, o arquitecto que fez a pirâmide do Louvre", explicou o condutor.







O primeiro ponto do programa dessa noite eram dois filmes históricos, feitos em 1937 e 1938, para comemorar os 700 anos de Berlim. O primeiro tinha dez minutos, e mostrava uma travessia de Berlim - que em breve seria desfigurada pela guerra - em transportes públicos. O segundo era bem mais longo: um documentário sobre as comemorações do sétimo centenário, acompanhado com música de piano ao vivo. Interessava-me ver os dois filmes para descobrir uma Berlim que não conheço, para ver os sinais daqueles tempos nas imagens, e para ouvir musiquinha de piano dos anos 30, que sabe sempre bem - e convenci os miúdos que aquilo é que era. Aquilo é que foi: uma xaropada...  Começou com uma apresentação que não acabava mais, até que o público desatou a gritar "deixe-nos ver o filme, em vez de o contar cena por cena". Veio enfim o primeiro filme, engraçadinho e com tudo como deve ser: a mãe em casa, o filho mais velho muito adulto e responsável a ir buscar um amigo ao comboio, os irmãos mais novos todos alegres e orgulhosos do irmão mais velho. Depois veio o documentário, uma tal sucessão de cenas sem interesse, acompanhados por música improvisada tão à maneira contemporânea, que eu morri de pena dos miúdos. Alguns deles lutavam corajosamente contra o sono. Eu, pela minha parte, percebi à primeira que essa batalha estava perdida. Mas sempre que abria os olhos deparava com cortejos de etnologia e folclore, alemães de todas as regiões disfarçados de ancestrais de si próprios, etc.
Saí do cinema um bocado decepcionada. Porquê aquela música tão avessa ao filme? Talvez - imaginei depois - para criar uma cisão clara com a época, para não cair na tentação de mostrar a Berlim nazi de 1937 como algo apetecível.

Jantámos no restaurante do museu de história alemã ("pizza alsaciana", disse-lhes eu, tentando explicar o que é a tarte flambée, o Flammkuchen) e seguimos para a catedral, para ouvir um pequeno concerto de órgão. Entretanto um dos miúdos tinha descoberto que as garrafas vazias valem bom dinheiro, e começou a juntá-las. O que não tem mal, excepto quando, um pouco mais tarde, atravessámos o foyer e o pátio do museu de história para irmos buscar os nossos casacos e sacos, e ele levava um monte de garrafas acomodadas nos braços em arco. Mas estamos em Berlim - consta que ninguém se interessa por estas coisas.



Os pais de alguns deles telefonaram perto da meia-noite.
- Olá, estão a ligar para dizer que estão a morrer de saudades dos vossos filhos?, perguntei eu.
- Não, pelo contrário!, foi a resposta.
- Vejam lá como falam, olhem que eles hoje ao almoço ficaram todos contentes com a ideia de eu os adoptar...
- Mandamos já os papéis! (risos do lado de lá)

Ai! Eu e a minha boca grande.

2 comentários:

Paulo disse...

Quando lá estive não vi especialidades lusitanas à venda.

Cristina Gomes da Silva disse...

Adoptar a sério!!?? Ou só uma semana de dois em dois anos? ;-))

Isso deve ser uma canseira, Helena, e fazes favor de os pôr a limpar a casa antes de apanharem o avião de regresso. Era só o que faltava, deixarem tudo desarrumado! Beijinhos de cá.
CGS

PS: eu já disse que gostava que organizasses um programa parecido para gente crescida? :-)