Ao pequeno-almoço, o Wladimir Kaminer pôs-se a ler uma folha com notícias frescas da Rússia. "Olhem para isto", dizia ele, "tudo a correr às mil maravilhas, tudo sob controle, um povo feliz, um país fantástico." Contra tudo o que seria de esperar, perante notícias tão positivas, estava visivelmente preocupado. Imaginei que o jornal seria escrito pelo próprio Putin, que bem conhece o registo certo para contar a verdade ao povo. Mas há gente assim, que nunca se dá por satisfeita, por muito que os políticos do seu país se esforcem.
O director do Pestana Palace tinha-me mostrado o hotel com todo o detalhe, e eu fiz o mesmo para o casal Kaminer. Contei-lhes a história do cacau mais valioso que o ouro, mostrei-lhes os salões que o cacau pagou, a capela com uma passagem secreta para as cavalariças (depois da capela da quinta do Carmo, ocorreu-me que em Portugal, pelos vistos, as capelas não são apenas ponto de chegada, mas também e sobretudo de partida - e cada qual sabe de si e onde tem o seu amor), a cozinha tradicional, a sala de jantar feita com madeiras preciosas de importação proibida, que chegaram a Portugal por meio de um ardil: mandou-se fazer um navio no Brasil, e quando chegou a Portugal foi desmantelado para fazer aquela sala... (porque é que eu me rio com estas artimanhas, quando devia era ficar chocada?)
À saída, o director apareceu para cumprimentar os hóspedes, saber da estadia, oferecer um livro com a história do hotel (e a mim um das pousadas, ai, agarrem-me! que tem lá pousadas tão bonitas). Talvez o fizesse por profissionalismo, mas pareceu-nos genuinamente simpático - a um domingo de manhã! Abençoada empresa que conta com tal director.
Partimos para Óbidos. Ao chegar à vila, o telefone tocou: era o Paulo Almeida, que estava por ali, e tinha uma horinha para passear connosco. Se isto não é sorte! De modo que subimos à Pousada guiados pelo Paulo, que falou da Óbidos das rainhas, e especialmente da rainha Santa Isabel.
No restaurante, tinham reservado uma mesa junto à melhor janela para nós - o Kaminer diria mais tarde: "trataram-nos como reis, e ainda nos mostravam que se sentiam honrados pela nossa presença!"
Serviram-nos um excelente almoço. A Olga pediu-me para fotografar o polvo no prato dela.
Como habitualmente, o escritor sublinhava o tema da conversa com um brinde a propósito. As entradas vieram, deliciosas, e com elas o primeiro brinde, "- Ao cozinheiro!", falámos do que ainda queríamos fazer nesse dia e brindámos à nossa viagem, depois às auto-estradas vazias, e por aí fora.
Em algum momento contei o comentário de um músico polaco, que toca numa orquestra berlinense, o tipo de comentário que é sempre recebido em silêncio pelos alemães: "o Hitler, em comparação com o Estaline, era um menino do coro". Falámos da guerra, da crueza de Estaline ao mandar os rapazes para a carnificina, e o Kaminer ergueu o seu copo: "A essas vítimas, impedidas de estar aqui connosco". Ia tocar o meu copo no deles, mas travaram-me, e em vez disso deixámos cair algumas gotas de vinho na toalha. A sala encheu-se do silêncio de muitos milhões de russos.
Estávamos atrasadíssimos para o concerto em Mafra, pelo que não pudemos visitar a Pousada com calma. O director, de uma extrema amabilidade, levou-nos até à porta, e pelo caminho ia apresentando o edifício e a sua história. O inevitável aconteceu: chegados ao pátio, ficámos na conversa. As janelas namoradeiras, por cima do portão, interessaram a Olga. Queria saber se a rainha namorava ali, se era o rei.
- O rei, explicou o director, costumava ter os seus arranjos fora do castelo. A rainha lá teria de se arranjar com a prata da casa...
- O rei por fora, repetiu a Olga, e a rainha em casa, entretida a transformar pão em rosas e rosas em pão, pão em rosas e rosas em pão.
Nunca me tinha ocorrido que aquele milagre também se podia fazer em inversão de marcha.
O director falou ainda dos quartos nas torres do castelo, que desta vez não nos pôde dar porque já estavam reservados. Mas que se combinarmos com tempo... Pouco depois, no carro, combinámos com tempo: marcámos a data para a próxima viagem a Portugal, no verão de 2013.
Saímos a toda a velocidade pelas calçadas da vila - ou seja, saímos à velocidade possível para os sapatos de salto alto da Olga. O director resolveu acompanhar-nos até ao carro. Apontava os monumentos, as características particulares da arquitectura das casas, contava as histórias da terra. Eu traduzia, ofegante.
Na auto-estrada, enquanto eu lutava contra o atraso (sempre a 120 km/h, claro), o Kaminer contava histórias. Por exemplo, a daquele czar sanguinário, que ao ver aproximar-se a morte se encheu de medo das contas que teria de prestar do lado de lá, e deu ordens para que nas igrejas se rezasse por alma das suas vítimas. O problema é que as orações pelas almas precisavam de um nome, e ele perdera a conta até ao número daqueles que mandara matar, quanto mais ao nome deles. Pelo que mandou que se redigisse uma nova oração, "Senhor, pedimos-te por aqueles que Tu bem sabes."
Descontando a parte de desresponsabilização do homem, que não se dá ao trabalho de detalhar o seu exame de consciência, e manteve as almas das vítimas no mesmo registo de indiferença com que lhes roubou a vida, gosto da formulação, porque também eu rezo assim: "Olha, meu Deus, só sei que nada sei, e que tudo isto é muito maior que eu. Por isso te peço que faças o que achares melhor. Só isso."
O programa da visita em Mafra foi organizado pela Leonor Barros. Logo à saída da auto-estrada confirmámos que estávamos em boas mãos: o marido da Leonor estava à nossa espera, para nos indicar o caminho mais rápido para o centro da cidade. E no parque de estacionamento, completamente cheio, a mãe da Leonor ofereceu-nos o seu próprio lugar. A generosidade das pessoas que nos ajudaram durante esta viagem não pára de me surpreender. "Is this real life?"
Entrámos na igreja, para assistir a um concerto dos seis orgãos. Já ouvi muitos concertos de órgãos, mais ou menos potentes, mais ou menos antigos. Mas nunca assistira a um concerto em que o órgão soa ora mais longe, ora mais perto, ora em diálogo com outros. Quem se terá lembrado de fazer uma igreja em sistema de áudio multi-canal no séc. XVIII?
No fim do concerto, Dinarte Machado, o organeiro que recuperou os seis órgãos históricos, contou as trocas e baldrocas que os adormeceram no tempo, fazendo com que apenas um deles tivesse sido objecto de modernizações. À volta dele juntou-se um grupinho de pessoas a ouvir, muito interessadas. É pena não se contarem estas histórias. Procurei na internet, e só encontrei menções superficiais, "órgãos históricos", "premiados", "concerto de seis órgãos". Mas porque não contam eles o que é realmente interessante, os órgãos desmontados e esquecidos, o trabalho de refazer o puzzle, o beijo do organeiro que os desperta cem anos depois, ainda na flor da idade e por descobrir?
Seguimos para as entranhas do palácio, subimos ao topo da igreja, onde eu mostrei que não olho a meios quando se trata de tentar uma boa fotografia:
E acabo por fazer esta porcaria que mais parece uma sonda de Marte:
Para nossa grande surpresa, levaram-nos até ao terraço sobre a igreja.
Os Kaminer repararam mais uma vez nas flores que nascem das pedras. Hei-de mostrar-lhes certos caminhos da minha aldeia, ladeados de muros de pedra cheios de margaridas.Passeámos pelo palácio (o Lutz e o Wladimir sempre sempre sempre em animada conversa), entrámos na biblioteca.
Não, tenho de escrever isto melhor: entrámos na Biblioteca.
Mostraram-nos livros de horas com belíssimas iluminuras, livros da alta Idade Média com gravuras de paisagens de vários países europeus - todos iguais. Extraordinária sabedoria dos antigos, que souberam ver a monotonia da Europa muito antes de se inventarem os regulamentos da União Europeia.
Perdido no meio daquela sala enorme, o Wladimir comentou que esse espaço o enchia de tristeza, porque imaginava quantas pessoas teriam ali trabalhado tanto, e delas já nem o pó restava. Respondi: às tantas, ainda vamos descobrir que estão muito melhor agora...
Olhou-me sem chão. "És uma fundamentalista do optimismo!", disse em tom quase zangado, e virou costas.
A fotografia de grupo revela algo que os antigos clientes do Quase em Português já sabem há muito: o Lutz é um iluminado.
Mais tarde, no restaurante da Ericeira, sobre o pôr-do-sol no mar, o Wladimir Kaminer voltaria a falar da igreja, do palácio e da biblioteca.
- Aquela biblioteca lembrou-me uma que não lhe fica atrás, comentou. A de St. Gallen.
O Lutz riu-se:
- Não lhe fica atrás, é uma bela maneira de dizer...
- Uma vez, continuou o Kaminer, visitei essa biblioteca com o director. As salas iam ficando cada vez mais pequenas, e as chaves cada vez maiores. Ele perguntou-me se eu queria ver algo realmente especial, e eu, que não acreditava que houvesse alguma coisa ainda mais especial para ver, anuí. Entrámos numa salinha pequena, e ele pôs-me na mão um dos primeiros manuscritos de um evangelho.
Foi nesse momento que eu caí das nuvens. No meu entusiasmo, pensara que o poderia levar a encontrar em Portugal os lugares encantados que sonhara quando vivia ainda preso na União Soviética. Pensara levá-lo muito além de Tralalá. Nem me ocorreu que algum director de biblioteca tivesse tido essa ideia antes de mim. É muito triste ter nascido assim demasiado tarde.
Nessa noite fomos dormir à Pousada de Cascais. Era tarde, estávamos muito cansados, chovia torrencialmente. Mas mal entrámos na Pousada, sentimo-nos a salvo: foram buscar as nossas malas ao carro, estacionaram-no, levaram a nossa bagagem para o quarto. Enquanto avançávamos pelo corredor, fui trocando algumas frases com o desgraçado que puxava o carrinho com as minhas vinte malas (não perguntem, nem eu entendo).
- O que é que tu fazes às pessoas, que elas ficam todas com um ar radiante?, perguntou o Wladimir.
- Eu?!
- É, pois!, corroborou a Olga. Tão sorridentes, tão amáveis. Nunca vi empregados de hotel tratarem uma pessoa com tanta simpatia.
- Na Alemanha também te tratam assim?
Caí outra vez das nuvens. Nunca me tinha ocorrido que fosse possível ser tratada de outra maneira. Mas ele tinha razão: não é normal um empregado puxar um carrinho tão carregado como aquele e continuar todo sorridente a fazer conversa, para mais àquela hora tardia.
Dizem que viajar alarga os horizontes, mas falta acrescentar que é quando se viaja com a Olga e o Wladimir Kaminer. Capazes de ver o surreal que há na vida dos outros, na minha.
Do corredor dos nossos quartos via-se a piscina coberta, que parecia ao ar livre por cima do mar. Hei-de lá voltar para perceber melhor o fenómeno. Hei-de lá voltar porque a Pousada é linda, e a cama era boa para um sono de mil anos.
Foi o quarto dia.
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Algumas destas fotografias são minhas, outras da Margarida Parente, outras da Leonor Barros.
5 comentários:
Fizeste-me ganhar o dia - que saudades que eu já tinha deste expresso do paraíso!
Está decidido: quando for grande quero ser como tu, "fundamentalista do optimismo" inclusive ;) Já não me falta tudo, rezamos pela mesma cartilha e temos um certo jeito para fotografar Marte. Quanto ao resto, ainda tenho que comer muito caldo com broa!
O Paulo, coitado, limitou-se a levar-vos por ali acima, a ver se não se atrasavam e conseguiam chegar a horas ao concerto em Mafra.
(Amanhã já cá estás? Boa!)
Adorei o dia, Helena, como já te tinha dito. Foi mágico. E quanto à generosidade, ora... é mesmo assim :)
Mil beijocas repenicadas :)
Mar,
ainda bem que gostaste. Acabei de publicar o último - queria terminar isso antes de sair para férias.
"fundamentalista do optimismo", hehehe - quem canta...
Deixa lá a broa, não precisas dela para nada. Já um pequeno manual de fotografia... ;-)
Paulo,
amanhã já aí estou, mas no norte. Só passadas mais de duas semanas é que me mostrarei em Lisboa. Ou talvez por umas horas, se arranjar malucos para irem comigo ao concerto da metropolitana.
Leonor: eu também. Beijinhos, pois!
Pois bem sei, mas espero ter a sorte de te ver, nem que seja por uns instantes.
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