31 março 2012

uma proposta indigna e ineficaz

Bem sei que não devia ter lido uma carta que não me foi dirigida, mas li, e fiquei alarmada. É entre - digamos assim - o Vaticano e um bispo preocupado em resolver o problema da pedofilia dos padres. Trata-se de uma carta confidencial, onde se fala da proposta de autorizar que os clérigos gays tenham relações sexuais com outros clérigos gays para evitar que abusem de criancinhas. Confesso que a li várias vezes, desconfiando que seria piada do Onion ou do Inimigo Público.
A primeira gracinha que me ocorreu foi que os malandros da Opus Gay agora invadiram o Vaticano e estão a fazer lobbyism a tão alto nível: conseguir que os padres gays possam ter relações sexuais, quando os outros estão amarrados ao voto de castidade, é obra!... (sim, eu sei: a inveja é uma coisa muito feia)
Também me apetecia brincar com a incompatibilidade entre a Realpolitik e a Moral, a Doutrina e tudo o que a Santa Madre tem vindo a juntar como andaime ao longo de dois milénios. Muito haveria para brincar, mas o caso é sério.
Para o caso de passar por aqui alguém ligado à hierarquia católica, deixo alguns comentários importantes:

1. O ponto mais interessante da carta é a alusão a uma revisão das directivas sobre a sexualidade dos padres. Espero sinceramente que sejam as boas notícias que há tanto esperava.

2. Sobre sugerir que os padres gays possam usar outros padres gays em vez de usar criancinhas, convinha deixar algumas coisas muito claras:

- Gay e pedófilo não são sinónimos. Há muitos pedófilos heterossexuais. Há muitos gays e muitos heterossexuais que não são pedófilos.

- Uma pessoa com tendências pedófilas é uma pessoa gravemente doente, que precisa de ajuda profissional em vez de uma espécie de escape para tentar distrair as suas pulsões. Se o sexo com um adulto evitasse de algum modo que se abusasse de crianças, não havia tantos homens casados a visitar o quarto da filha ou da enteada, nem havia tantas mulheres casadas a abusar da inteira fragilidade dos seus filhos.

- Sinto uma enorme repulsa por soluções em que se propõe o sexo como meio para atingir um objectivo alheio ao amor e ao profundo respeito entre duas pessoas. Admitir que se permitam relações sexuais entre dois padres gays porque um deles está quase a ceder à tentação de abusar de uma criança é um grave atentado à dignidade do padre utilizado como objecto de diversão. (Se precisam que eu faça um desenho: um padre heterossexual está quase quase a cair em pecado para os lados de uma miúda da catequese; em desespero de causa, arranja uma freira qualquer que esteja disposta a fazer com ele um truca-truca preventivo. A Igreja olha e diz "do mal, o menos"? Não, claro que não.)

- Porque será que não se fala das meninas que foram vítimas de padres pedófilos? Não as há? Ou estes casos não são tão mediáticos como os dos rapazes? Em todo o caso: se as há, o problema desses padres também tem de ser objecto de análise, em vez de se olhar apenas para os padres gays.

- Eu sei que a doutrina da Igreja Católica não vê o amor entre dois gays como uma forma digna e humana de amor. Ou, citando um testemunho comovente de um gay crente, não aceita que este amor possa estar tocado por Deus. Essa pessoa dizia algo como: "andei anos a recusar este amor, neguei-me e fugi de mim próprio, até que um dia percebi que estava a recusar a única forma de amar que Deus me dera". A Igreja Católica não o vê assim, mas não precisava de atirar para a sarjeta não apenas algo que significa muito para outras pessoas, mas também os seus próprios princípios de dignidade humana.


3. Se me perguntassem, eu sugeria que:

- Fizessem um apertado controle à saúde mental dos alunos que entram no Seminário. Tolerância zero para seminaristas e padres que mostram indícios de tendências pedófilas.

- Aceitassem que a afectividade e a sexualidade de uma pessoa são elementos não escamoteáveis da sua liberdade e dignidade. Não devem ser objecto de imposição de condições desumanas, nem sequer deviam ser tematizados num contexto de vocação.

- Permitir o casamento dos padres (bem, já nem me atrevo a pedir o dos padres gays) ia acabar com um sem-número de misérias e indignidades (o uso de prostitutas, a desgraça da "criada do padre", os amores clandestinos e condenados). Mas duvido que permitir que os padres tenham relações sexuais com outros adultos evite que os pedófilos abusem de crianças.

2 comentários:

maria disse...

Helena, da parte da pessoa que escreveu a carta, o que fica claro é o paternalismo patológico que se instalou na Igreja.
Eu gostava muito que a hierarquia da Igreja abrisse um diálogo profundo sobre o que é a vocação. Isso é mais urgente do que andar a seleccionar determinados modelos de pessoas para o serviço presbiteral. É que quando nos convencermos todos que não há pessoas especiais para determinada função, alguma coisa mudará.

Helena Araújo disse...

Maria,
eu devia ter-te perguntado antes de escrever o meu ponto 3. É claro que esqueci o essencial!