03 novembro 2011

dias de magia (2)



Primeiro dia

Chegar. No aeroporto, a enorme surpresa e a alegria de sermos recebidos por uma amiga que julgávamos em Portugal. Em casa, queijo e vinho pela noite adentro, conversas e risos.
E o olhar dos amigos: atento e perscrutador, procurando-me até ao fundo dos olhos - como fazia o meu pai, para concluir "pareces bem, cachopa".
Estou bem. Rodeada de gente que busca o chão dos meus olhos, estou o melhor possível.


Segundo dia

Amigos oferecem-se para trocar de quarto connosco - recebemos deles a floresta, as estrelas que nos entram pela janela.
Conversamos sobre as nossas vidas, as nossas angústias e alegrias. Falamo-nos e ouvimo-nos com confiança e atitude de profunda aceitação.

Aller en profondeur pour toucher l'universel.

Lá fora, a paisagem em tranquila transformação. A luz desliza pelas árvores, ilumina por dentro pedaços de amarelo e laranja. Não faço fotografias, não me quero perder da conversa. Uma mãe conta como diz o amor através da comida. Como, ao fim do dia, acolhe com aromas de bolo no forno essa filha que anda perdida em muito sofrimento. Como inventa um perfeito equilíbrio nas tartes de legumes para os filhos comerem no intervalo das aulas: pedaços de ternura na sacola.

Ce n'est pas le bout du tunnel, c'est aujourd'hui.

Depois do jantar, a música: uma canção de Clarika na voz de uma amiga e na sua guitarra (e que linda mensagem). George Brassens, les Croquants. Estamos na França, temos cinquenta anos e tanto que nos une.






Terceiro dia

Acordo cedo, agasalho-me à pressa e saio de máquina fotográfica na mão. Atravesso a floresta rapidamente, inquieta dos ruídos da noite (e se me aparece agora uma enorme javalia com javalizinhos?), inquieta de chegar demasiado tarde ao espectáculo da madrugada. Chego a tempo. O céu está tomado por uma poderosa carga de nuvens, o sol vai escalando os montes a custo, arde em pequenas nuvens tresmalhadas, mostra-se por uns minutos, encanta-me as árvores e o caminho da floresta com a sua luz rasa e dourada, e esconde-se de novo.







Ao pequeno-almoço:
- O que é um egoísta?
- É alguém que não pensa em mim.


Mostro as fotografias, toda orgulhosa. O Joachim sugere "amanhã, podias experimentar a preto e branco".
"Amanhã?! Pensas que vai haver amanhã?"


Olho pela janela enorme, e não vejo paisagem, mas vida: árvores, pássaros, insectos. Vida intensa e densa, respiração.

Notre seule chance c'est l'ésprit de remise en question.






Quarto dia

Ao pequeno-almoço duas amigas, professoras, falam do trabalho com os alunos pequeninos. Como fazê-los tomar consciência do seu corpo? "O que se passa agora mesmo no teu corpo?" "A respiração!" "E o que é preciso para respirar?" "Reflectir!" "A sério?!", e a digestão, o coração que bate, "Tudo isso no meu corpo? tanta coisa!" O yoga infantil, a aprendizagem do corpo como caixa-de-ressonância, a aprendizagem do grupo na improvisação da música e na busca de um ritmo comum. Ouço-as, deliciada: a escola como local de prazer, de missão humanitária, de entrega com alegria.

À hora do lanche o nevoeiro abre, liberta a encosta verde do monte.
"Oh, que calma vai caindo".





Prier c'est d'abord cesser de faire autre chose.
Quand on demande à Dieu, la première réponse c'est la paix - même si le problème n'est pas résolu.


Depois do jantar, o jogo: sentados numa roda de cadeiras, temos de mudar de lugar permanentemente, tentando impedir que o que está de pé consiga sentar-se numa cadeira momentaneamente vazia. Temos cinquenta anos, dores de costas, e rimos e caímos das cadeiras, e damos connosco sentados nos joelhos dos outros, uma e outra vez, dizemos brejeiros que ça c'est angoissant.


Quinto dia

Levanto-me cedo. Saio para a floresta, já sem medo dos bichos da noite. O céu está limpo, hoje as nuvens estão pousadas no vale. O sol virá mais tarde, sinos de aldeias longínquas anunciam-no já, e eu espero: os pés encharcados do orvalho da floresta, as mãos geladas, o coração sereno, comovida de beleza.




Será que nos lembramos do que acontece de bom ao longo do nosso dia? Uma proposta: anotar diariamente cinco momentos bons. Mudar a perspectiva: do derrotismo para a consciência do bem que habita a minha vida.
No meio da fragilidade, perder o medo. Há um caminho de vida para mim - não um caminho de fuga às dificuldades, mas de acolher a minha vida, dizer-lhe "sim!" - não tenho outra vida senão esta que me foi dado viver neste dia. E é neste dia que posso acolher o "sim!" de Deus.

Criar sistemas anti-rotina: não estamos condenados a repetir. Podemos começar sempre. 

S.Paulo: "sois filhos, e não escravos". 


Antes da partida, trocamos informações.

Filmes: Et maintenant, on va où?; Habemus Papam; También la lluvia; We want sex equality; Louise-Michel; Poulet aux prunes; Lantana; El secreto de sus ojos; Le gamin au vélo; A separation; La Guerre est déclarée.

Livros: Pietro De Paoli;  L'origine de la violence; Olivier Le Gendre (Confession d'un cardinal); Maurice Bellet (Minuscule traité acide de spiritualité); Madeleine Delbrêl (La joie de croire); Deux petits pas sur le sable mouillé; Une femme fuyant l’annonce.

Terminou. Continua. Germina em nós. 

18 comentários:

jj.amarante disse...

Considerando o convite para escolher fotos do post anterior, nesta série as que gostei mais foram as primeiras três do terceiro dia, tiradas respectivamente às 8:44, às 8:57 e às 8:52 do dia 30-10-2011. Destas, e como já tinha visto as fotos do post anterior ainda destacaria a 2ª, do arvoredo, com uma luz dourada que me parece irreal, por ter pouca experiência de vida nesse tipo de horas.
Fui verificar a que horas nasce hoje (3/Nov) o sol em Lyon (dada a referência a França) e diz o http://www.wunderground.com/global/stations/07480.html que é às 7:22 AM (em 30/Out foi ligeiramente mais cedo). Como mudou a hora no passado fim-de-semana todas as horas batem certo, a do arvoredo foi tirada poucos minutos após o nascer-do-sol.
Eu, que gosto de fazer tudo tarde, há pessoas que dizem que vivo no fuso dos Açores ou quase mesmo da costa leste dos EUA, parece-me um bocadinho de batota andar a tirar fotos a esta hora matinal mas, dados os resultados, um dia destes ainda irei ver como é o dia nessa altura.
Não uso muito a posição "retrato" nas minhas fotos mas reconheço as suas vantagens nalguns casos. Nestas do 3º dia, o uso do "retrato" pareceu-me muito adequado, embora eu não tenha qualquer formação académica em fotografia.

Helena Araújo disse...

jj.amarante,
como é que descobriu tudo isso sobre as minhas fotografias?

E como descobriu que tinha a máquina em "retrato"?

Caramba, eu ando aqui mesmo sem saber ler nem escrever!

Quanto aos horários: tive sorte, a hora mudou quando lá estava. E, de facto, até me levantei mais tarde do que faço durante a semana em Berlim.
Garanto-lhe que vale a pena!

jj.amarante disse...

Se numa janela do "Windows Explorer" (antigamente chamava-se File Manager) colocar o cursor em cima do nome do ficheiro (ou do thumbnail) onde está a foto e esperar um ou dois segundos com o cursor no mesmo sítio, aparecer-lhe-ão várias informações e entre elas a "Data Picture taken".
Poderá também fazer "Mouse right" sobre o ficheiro e escolher "propriedades". Na caixa que aparecer seleccionar o "tab" "details" e então aparece muita informação sobre a foto. A apresentação das propriedades variou do Windows anterior para o Windows 7, antigamente o tab talvez se chamasse outra coisa e havia um botão que alternava entre "simple" e "advanced". Tem lá muita info sobre os parâmetros da máquina quando se tirou a foto.
Claro que a informação da data-hora é muito frágil, eu por exemplo não mudo a data-hora da minha câmara nunca, tendo assim de fazer conversões posteriores quando mudo de fuso horário. Na minha máquina anterior estava em TMG+1 porque comprei a máquina em Junho e na mais recente está em TMG porque a comprei em Fevereiro.

Quando me estava a referir a "retrato" era apenas em contraposição a "paisagem", termos usados para designar fotos em que a dimensão maior é respectivamente a vertical e a horizontal.

Anónimo disse...

Lindo!
Tudo lindo, texto, poema, fotografias, musica...muito obrigada.
beijinho
Maria Antónia Forjaz
(Braga)

Helena Araújo disse...

Maria Antónia, vou-me repetir: a minha maior alegria é a satisfação dos clientes...
Também gosto que outros tenham acesso às coisas boas que me acontecem.

jj.amarante,
essa escolha "retrato" foi intuitiva: a variação ocorria na vertical, muito mais que na horizontal.
Obrigada por todos esses truques.

Rita Maria disse...

Ainda nao te conhecia a francofonia. Nao queres ser a minha nova parceira de tandem?

(gostei muito desses bocadinhos, e nao foi só por causa da língua)

Helena Araújo disse...

De tandem, quoi! Oui.
:-)

mdsol disse...

:)))

sem-se-ver disse...

que engraçado. sois vós as amigas, mas também eu me surpreendi - muito agradavelmente!! - com a francofonia (sendo que o meu único critério é o teu blog).

somas e segues, helena. :)

e, mais uma vez, obrigada, não só pela partilha, mas pela beleza dela.

Helena Araújo disse...

ó senhora,
mas haverá alguém da minha idade em Portugal que não saiba falar francês?! Era o que se aprendia logo no primeiro ano do ciclo. Robert, Nicole e Patapouf.
Depois veio o 25 de Abril, e eu fiquei foi sem inglês. Tive de aprender mais tarde, na escola da vida. hehehe

sem-se-ver disse...

chuac

Helena Araújo disse...

cuac para ti também :-)
- também eras Robert, Nicole et Patapouf?

(estou agora mesmo a ouvir o teu Tom Waits, e por mais isso, toma: chuac)

sem-se-ver disse...

eh pá, a minha memória nao chega a tanto! mas que se instalou logo logo como a mais bela língua do mundo, lá isso...

(tive más, más professoras a francês. quem me valeu foi uma amiga grande de adolescencia, que me deu tanto na cabeça que me pôs a ler literatura francesa no original; e aquilo desatou-se por si :)

Helena Araújo disse...

Eu tinha uma sede tão grande de francês que logo depois da terceira aula de Patapouf comecei a ler os livros franceses que havia lá por casa.
A aprendizagem foi sobretudo pela gramática, mas nem isso me matou o amor por essa língua.
Quando comecei a namorar com o Joachim, foi em francês. Três anitos assim. Mas ele aprendeu depressa o português - e o francês andava a enferrujar há vinte anos.

Rita Maria disse...

Aaaaah, assim também eu.

Helena Araújo disse...

Pois: só tens de conhecer um alemão que tenha crescido em Paris...
;-)

Carla disse...

Mas sou a unica nesta blogosfera que aprende francês com franceses ? Todos os professores da Alliance Française nos recomendavam um affaire romantique para subir de nivel mais depressa, parece que é cientifico.
Posto isto : Maravilhoso post Helena.
Agora sei que livros ler, ufa, andava perdida.

Helena Araújo disse...

:-) muitas vezes, Carla.
Também me falaram de um cujo nome não entendi. Algo como "kalochori", ou assim, que é como os japoneses pronunciam "coaching".
É sobre o comportamento dos animais, e o modo como fazem aquisições de cultura e as transmitem. Pelo que contaram, pareceu-me extremamente interessante.

Se calhar não precisas de te meter pelas confissões do cardeal (não me parece que seja "aquele tipo" de confissões...) e pela Joie de Croire. Quanto ao "deux petits pas", disseram-me que é muito muito triste.
E dizem que a mulher que foge ao anúncio de que o filho dela morreu na guerra é muito bom. Fiquei muito curiosa de ler esse. Se não tivesse já uns 3 metros de estante em fila de espera para ler...
O "l'origine de la violence" está aqui, no primeiro lugar da fila de espera.

Já que estou com a mão na massa: li "o retorno", e gostei imenso. Não percas o meu próximo post. ;-)