10 novembro 2011

afinal "cigano" significa o quê? (1)

A dois passos da porta de Brandenburgo realiza-se hoje e amanhã um simpósio sobre os ciganos europeus - algo que dará que falar nos próximos anos, anunciavam na cerimónia de abertura.
Estive lá, porque o tema me interessa e porque queria ver e ouvir a Herta Müller. Apareceu: uma mulher pequenina e frágil, vestida de preto, uma carteira prática tipo mochila, toda curvada sobre os braços cruzados em cima do peito, como se estivesse a tiritar de frio. Percorreu a primeira fila de cadeiras lendo os papéis nelas pousados - reservado   reservado   reservado   reservado   reservado  - e sentou-se na última, onde também não encontrou escrito "reservado para a Herta Müller".

A sessão começou: Wolfgang Ischinger, em nome do anfitrião (a Fundação Cultural da Allianz), que falou da nossa relação ambivalente com os ciganos, ora romântica ora plena de preconceito e discriminação.

Thomas Krüger lembrou a seguir um apelo de Habermas no jornal FAZ de sexta passada, para que salvemos a dignidade da Democracia, o que passa também pelos valores europeus que são ou não praticados na relação com esta minoria.

Chegou então a vez de Herta Müller ler um ensaio que escreveu há anos, sobre os ciganos da Roménia. Descrevia uma miúda de dez anos que carregava o irmãozito, demasiado pesado para as suas forças, e como se esforçava e lhe limpava a boca com uma ponta da saia florida, perguntava-se se já estaria vendida para um casamento, contava na sua voz triste e clara algumas das regras tradicionais que dão à mulher um lugar de degredo. Contava de um pogrom acontecido há dez anos numa aldeia, as casas incendiadas, os ciganos desalojados de pés descalços nos campos à entrada do inverno, e que tinham sido avisados por um polícia, que todos na aldeia - a polícia, o professor, o padre - sabiam de antemão o dia e a hora. Contou ainda que uma jornalista lhe pediu para tirar do texto a referência ao inverno, porque ia ser publicado no verão, e que em 1991 os ciganos romenos lhe pediram para lhes chamar ciganos e não Roma - "porque esse é o nosso nome, e o nome é bom se nos tratarem bem".
No pequeno debate posterior repetia muito a palavra "raiva", agitava-se contra aquela jornalista "que não teria sistema nervoso, não teria sentimentos".

Morten Kjaerum, da Agência Europeia de Direitos Humanos, forneceu alguns números: 60% dos ciganos europeus são discriminados quando procuram trabalho, 20% quando tentam ter acesso aos cuidados de saúde, 18% são vítimas de agressão por motivos racistas. Apelou a uma abordagem global e simultânea dos problemas para quebrar os círculos viciosos da exclusão e da pobreza, abordagem essa que tem de passar pelo diálogo com os próprios ciganos e com os seus vizinhos. Lembrou que não se pode ceder à tentação de, em tempo de crise, passar a problemática dos ciganos para segundo plano, pois eles são também uma oportunidade económica: dadas as altas taxas de natalidade, dentro de algumas décadas uma percentagem grande dos jovens a entrar no mercado de trabalho será proveniente deste grupo.

Silvio Peritore, politólogo, avisava que a sociedade europeia não aprendeu nada com o assassínio de meio milhão de ciganos pelos nazis - caso contrário, comportar-se-ia de outra maneira. Os ciganos são ainda hoje vítimas de um violento racismo que na Europa pós-holocausto não devia existir. E é uma violência racista ancorada no meio desta sociedade, desta Europa de cultura e valores - não apenas nos grupos extremistas. Não se exige tolerância, mas respeito. Referiu sobreviventes do genocídio nazi, que pura e simplesmente não conseguem acreditar no que os seus olhos vêem hoje. Mas o problema vem de longe: vem da continuidade que se seguiu à guerra, e que permitiu que muitos nazis permanecessem à frente de lugares vitais na sociedade, cuidando de evitar que aos Roma e Sinti fossem concedidos mais direitos. Para terminar, apelou a uma mudança, porque esta situação "é contra os nossos valores e faz-nos perder credibilidade".

Zoltán Balog, secretário de estado húngaro para a inclusão dos Roma, queria ter histórias bonitas para contar, mas só pôde falar do que falta fazer: 2/3 dos ciganos húngaros vive em situação de pobreza, mais de metade deles (cerca de 400.000) em situação de extremíssima pobreza; a esperança de vida dos ciganos é 10 anos mais baixa que a da restante população; a Polícia tem ainda de aprender a não discriminar as vítimas quando estas são ciganas; já estão a olhar o problema de frente, agora falta olhar os ciganos nos olhos; já há 100 pessoas no ministério dedicadas ao trabalho de inclusão. Mas os ciganos não são um grupo homogéneo - nem dentro do país, e muito menos a nível internacional. Por exemplo: gitanos espanhóis podem protestar tão alto como os restantes espanhóis contra a entrada dos ciganos romenos.
O que é importante ter em conta é que fica mais caro excluir que integrar. Mas, atenção: integrar não é assimilar, é incluir. É fundamental incluir os ciganos na resolução dos problemas europeus - por exemplo, na falta de mão-de-obra para trabalhos indiferenciados. Terminou com uma advertência: os programas de apoio aos ciganos não estão a resultar porque essas pessoas são neles tratados como objecto, e não como sujeito. Os programas são feitos sem lhes perguntar o que querem, e como.

A última intervenção do dia foi a de Klaus-Michael Bogdal, autor do livro "A Europa inventa os ciganos", que começou por louvar a contribuição de Herta Müller, acrescentando que de um modo geral os textos literários sobre os ciganos costumam ter um tom completamente diferente: ou de desprezo ou de fascínio. Depois explicou os quatro elementos centrais da História dos ciganos na Europa:
- à chegada, no séc. XV, já foram vistos como uma ameaça;
- rapidamente se firmou a ideia de que a convivência com os ciganos era impossível, porque envolvia riscos graves;
- ao sair da Idade Média, as sociedades mediram a sua evolução civilizacional por uma demarcação dos ciganos - não procuraram os pontos comuns, por muito pequenos que fossem, mas a maior diferença;
- a Europa "inventou" os ciganos, criando imagens que não correspondem à realidade. Não há confiança na capacidade de evolução ou adaptação civilizacional dos ciganos.
A diferença fundamental entre o racismo anticiganos e o anti-semitismo: aos judeus é retirado o seu valor, enquanto aos ciganos não é reconhecido valor algum. O fascínio pelos ciganos é um fascínio à distância (deu o exemplo de Brentano, que romantizava os ciganos, mas se agarrava bem à carteira quando chegava mais perto deles). Este desprezo é algo praticado continuamente, até na literatura. Esperava-se que a literatura pós-Guerra tivesse um outro olhar sobre este povo, mas isso não acontece. Pior: dado que o anti-semitismo é proibido, o racismo é desviado para os ciganos. O modo como a nossa sociedade os trata é um momento "descivilizador" da nossa História.

***

No fim algumas pessoas pediram autógrafos à Herta Müller, e eu também. Ela demorou-se ainda um pouco a falar com o Klaus-Michael Bogdal, e falava com o corpo todo, esbracejava, balançava o tronco. Como uma erva ao vento. Voltou-se para nós, olhou para a pilha de livros que eu levava, decidiu sentar-se para os assinar numa mesinha. Eu ajoelhei-me à sua frente, e ela disse numa surpresa contente: ah, as colagens. Tinha tanto para lhe dizer sobre as colagens, mas perguntei apenas: "e como faz essa poesia? senta-se em frente às palavras, à espera que o poema faça o seu caminho por entre elas?"
"Não! Procuro-as uma a uma!"
Como será sentar-se em frente a um monte de revistas e procurar palavra por palavra "erva" e "passeia" e "há horas" e "no meu vestido novo" e "a primeira" e "a segunda" e "poça" e etc.?
A poesia deve ser um trabalho muito difícil.

9 comentários:

Helena disse...

"A diferença fundamental entre o racismo anticiganos e o anti-semitismo: aos judeus é retirado o seu valor, enquanto aos ciganos não é reconhecido valor algum."

Sublime Helena.

Helena Araújo disse...

É uma grande síntese.
Esse Klaus-Michael Bogdal pareceu-me um autor muito interessante.
No seu livro "a Europa inventa os ciganos" (Surkamp, Berlim 2011, 592 páginas) analisa documentos e textos literários de toda a Europa ao longo de 600 anos, concentrando-se sobretudo na elite cultural.
Aqui tem uma apresentação do livro (em alemão). Talvez venha a ser traduzido para outras línguas?
http://www.dradio.de/dkultur/sendungen/kritik/1601136/

Rita Maria disse...

Há muitos anos havia muitas histórias positivas sobre a Hungria, mas neste momento com a extrema-direita no poder acho estranhíssimo que os tenham convidado. Integração? Estarão a falar dos campos de trabalho para desempregados para onde levam muitissimos ciganos, para longe das famílias, a receber menos que o ordenado mínimo e a trabalhar em condições degradantes, às vezes a fazer em dias o que uma máquina fazia em meia hora?
Ninguém lhe fez perguntas difíceis, com o homem ali?

Helena Araújo disse...

Porque não vieste, Rita?
Não houve perguntas ao público, e a jornalista que moderava não parecia muito bem preparada. De resto, eles falaram todos demasiado tempo, de modo que mal o último se calou fomo-nos todos embora.
Então está bem: levo as tuas perguntas para o painel 1 de hoje.

Helena Araújo disse...

Mas ele falou de alguns aspectos positivos: do liceu para ciganos, e da consciência que começa a nascer na sociedade de que o futuro passa pela resolução do problema da pobreza e da exclusão deste grupo.

beijo de mulata disse...

Fantástico! Não conhecia este blogue e agradeço à Helena Gouveia a boleia para chegar aqui. Esta temática é-me particularmente cara, já que lido diariamente com ciganos e tenho tantas experiências terríficas como encantadoras... Nada disto é simples, é verdade!

(um) beijo de mulata

Helena Araújo disse...

Olá,
obrigada!
É verdade, sim: nada disto é simples. Amanhã conto o resto - o que ouvi hoje.

CCF disse...

Excelente a sua descrição de um tema tão apaixonante. Obrigada.
~CC~

Helena Araújo disse...

CC,

:-)