27 outubro 2011

três concertos e uma lição de vida

1. Anotem este nome: Pablo Heras-Casado. O Simon Rattle que se cuide, porque este maestro, nascido em 1977, além de ser inacreditavelmente versátil, dança e mima a música de uma maneira que quase corro o risco de começar a ser infiel ao meu único e grande amor. Ai!
Portanto, anotem também: se for o Pablo Heras-Casado, é para comprar bilhetes nos blocos por trás ou ao lado da orquestra. 

O concerto a que assisti na sexta-feira passada parecia uma máquina do tempo avariada: Felix Mendelssohn, Karol Szymanowski, Luciano Berio, Felix Mendelssohn. Maestro e orquestra aguentaram-se com bravura e arte em todos estes sacões no tempo,  e fizeram-no tão bem que até parecia fácil.
Sacões também na História: a estreia da sinfonia nº 4 de Szymanowski em Berlim decorreu com enormes dificuldades. O compositor e pianista hesitou muito antes de aceitar o convite, em 1934, por considerar inadequado visitar a capital alemã após o surgimento das leis raciais de Nuremberga. Mas acabou por ir, devido às suas enormes dificuldades financeiras. Chegado a Berlim, deparou-se com uma Filarmónica sem maestro, porque Furtwängler tinha acabado de se demitir devido à proibição de apresentar a música "degenerada" de Hindemith, e com uma população deprimida e chocada com os primeiros ataques aos judeus. O concerto acabaria por se realizar em 1935, sob a batuta de Hermann Stange, um maestro de qualidade duvidosa e membro do NSDAP.
Sacões no tempo e na História, saltos geográficos: a Escócia de Mendelssohn, com a Abertura "as Hébridas" (o texto que acompanha este vídeo no youtube é muito interessante). A Polónia moderna de Szymanowski. As Quatre Dedicaces que, sob o nome escolhido por Pierre Boulez, junta peças escritas para a orquestra sinfónica de Roma da RAI, a orquestra sinfónica de San Francisco, a orquestra sinfónica de Dallas e a orquestra filarmónica de Roterdão. Para terminar, regresso à Escócia de Mendelssohn: "Esta madrugada fomos ao palácio onde a rainha Maria viveu e amou. Existe lá um aposento pequeno com uma escada em caracol junto à porta. Foi por onde subiram, e encontraram Rizzio, arrastaram-no para fora e, três quartos à frente, mataram-no num canto sinistro. Ao lado há uma capela à qual falta o telhado, a erva e as heras crescem livremente, e no altar partido coroaram Maria como rainha da Escócia. Tudo ali está quebrado, apodrecido, iluminado por um céu límpido. Penso que hoje encontrei nesse lugar o início da minha Sinfonia Escocesa." (de uma carta sua à família em Berlim, como vinha no programa do concerto). Esta sinfonia foi tocada sem pausas "assassinas da atmosfera" (cito Mendelssohn) entre os andamentos - pobre público da Filarmonia, que tanto gosta de as usar de forma criativa, introduzindo nas peças pequenos intermezzos de tosse con brio


2. Concerto para as famílias no domingo à tarde. Na primeira parte apresentaram "canções de Istambul" com instrumentos tradicionais infelizmente abafados pela orquestra, dois cantores tipo orientalismo e uma narradora que se esqueceu de fechar o vestido nas costas e estava muito nervosa: lia demasiado depressa e contorcia-se como se não tivesse reparado que havia crianças na sala. No intervalo, a Christina criticou-me "acho muito bem que apresentem outras culturas, e tu devias mostrar mais abertura para o desconhecido". Para o desconhecido, está bem. Agora para "aquele querido mês de Agosto", só que em turco, e com arpejos intermináveis tipo "ó mãe, dói-me tanto a barriga"?!
O foyer estava cheio de crianças a experimentar instrumentos. Tive pena de não ter gravado em fotografia a imagem de um rapazinho de quatro anos a tentar tocar num violino maior que ele.
Na segunda parte estava o Otto Waalkes, um dos mais famosos comediantes alemães. Narrou com graça a história de Pedro e o Lobo, fazendo caretas extraordinariamente expressivas e engraçadas, e na cena dos caçadores apontou uma espingarda imaginária ao maestro, que se encolheu todo (o que os miúdos riram!). Ao ver a aflição no seu rosto simpático, no momento em que o lobo entra em cena, ao ver como o medo e o suspense ecoaram pela sala, pensei que só um excelente artista, um artista de corpo inteiro, pode entrar em tamanha sintonia com um público infantil. E lembrei uma passagem que li no livro do Hape Kerkeling "Ich bin dann mal weg" (sobre a sua caminhada até Santiago de Compostela): contava a extrema generosidade e simplicidade com que um Otto famoso acolheu um rapazinho Hape em início de carreira. Pareceu-me estar a ver naquele palco um homem bom. As crianças desciam das cadeiras e iam ao seu encontro. Foram-se juntando, encostadas ao murete do palco, como se o Otto fosse o flautista de Hamelin. Primeiro as meninas, mais afoitas: e que bela fotografia dava aquele friso de pequenitas nas suas roupas garridas, com os caracóis loiros, a orquestra ao fundo.
Quando parecia que o concerto tinha acabado, Otto regressou. Para três rábulas musicais que fizeram rebentar a sala em gargalhadas (entre elas, este Yesterday - a segunda parte, a partir de 2:20, em alemão muito mal traduzido, é hilariante), e para dirigir a orquestra mais ou menos assim:





3. Simon Rattle e a Bundesjugendorchester no domingo à noite. Eu sentada no sítio certo, na primeira fila do bloco por trás da orquestra, para fazer um gostinho aos olhos. Preciso urgentemente de binóculos para levar aos concertos. Já sugeri isso para o meu aniversário, que está aí ao virar da esquina. E aquele quadro lindíssimo que vimos em Kreuzberg, não?, pergunta o Joachim. Ahem, não, respondo eu. Entre um quadro de mulheres nuas e o meu Simon Rattle vestido, não há dúvidas.
A Bundesjugendorchester junta os melhores músicos alemães entre os 15 e os 19 anos, que se reúnem durante três semanas, três vezes por ano, para preparar peças exigentes com maestros famosos. Desta vez era a sinfonia nº 9 de Bruckner, com um Finale inédito, resultado do trabalho de um grupo de compositores, maestros e musicólogos que de 1983 a 2011 juntaram esforços de detective e arqueólogo para encontrar a verdadeira intenção de Bruckner, servindo-se dos inúmeros rascunhos, fragmentos e textos que deixou.
A determinado momento os olhos escorregaram-me do maestro para a orquestra (em minha defesa acrescento que foi já no último andamento). E reparei, espantada, que um dos jovens músicos tocava trompa com o pé. Quando necessário, virava as folhas com dois dedos do pé, com uma impressionante destreza. Em casa, fui procurá-lo na internet, e descobri que é um músico premiado, muito prometedor, e que se ri da sua falta de braços: "posso fazer tudo, excepto o pino".

(daqui - texto em alemão)


Ele nasceu sem braços, e ri-se.
Faz-me sentir insignificante. Não é que as dificuldades dos outros me sirvam de consolo, ou sequer de relativização. É muito mais que isso: pessoas assim mostram-me que é possível dar a volta muito por cima, mesmo que se venha de muito baixo.

11 comentários:

Mery disse...

Olá, bom dia.
Maravilhoso esse post, fiquei tocada e me mostrou que podemos tanto, a felicidade está em nossa cabeça*, em nosso amor pela vida, nada cai do céu, ...ótimo exemplo.
Beijo da Mery*

Helena Araújo disse...

Mery, às vezes penso que a capacidade de ver as adversidades como desafio a ultrapassar de forma positiva é algo que cai do céu. Poucos têm essa sorte. Infelizmente.

Paulo disse...

Ó Helena, é tão bom ouvir estas notícias todas de Berlim. A sério. Não sei por que é que o Expresso insiste no Jorge Calado.

Helena Araújo disse...

Paulo,
ó pra mim inchada que nem um peru:
:-)

Agora, cá para nós: que é que interessa aos leitores do Expresso saber o que se passa na Filarmonia de Berlim, e o que ia eu fazer a Lisboa sem o Simon Rattle?
;-)

sem-se-ver disse...

este otto é uma moca :D

(qt ao trompista, subscrevo o que dizes, inteiramente)

Helena Araújo disse...

o que é uma moca, no caso?

Mar* disse...

ai...

cjs disse...

tu descreves tão bem as situações, que até me imagino ao teu lado a apreciar a destreza do rapaz a tocar com os pés.

Helena Araújo disse...

hahaha
Tu és mesmo muito engraçado!

(Sou melhor a descrever situações que a dar cotoveladas e a segredar "olha ali!")

sem-se-ver disse...

moca = de rebolar a rir
moca= divertidíssimo

:)

Helena Araújo disse...

Obrigada. Sim, é.
E no Pedro e o Lobo que eu vi esteve muito mais divertido do que naquele com o Kurt Masur.

E aquele ar de boa pessoa, de bom mesmo do fundo do coração? Isso sim, isso é que me deixou completamente rendida.
É algo que procuro nos VIPs (e aqui na Alemanha encontro muito): uma simplicidade e uma grande humanidade, um estar sem peneiras.
O Raúl Solnado era assim, não era?