22 outubro 2011

Liszt em Weimar - um post cheio de presentes de aniversário


200º aniversário - parabéns, senhor Liszt!

No domingo passado recriaram na Filarmonia o salão de Liszt, numa Weimar por volta de 1848. Ouvimos alguma da sua música e da dos amigos que passaram pelo pequeno ducado: Wagner, Berlioz. Ouvimos passagens deliciosas de correspondência: Berlioz invejando-lhe a carreira de pianista, tão mais fácil que a de um compositor, "tu só precisas de um piano e uma sala, e logo tens toda a cidade a teus pés; eu, em contrapartida, se caio na asneira de querer executar uma composição minha, tenho de lutar contra o cepticismo de músicos de péssima qualidade e ainda pior humor - ah, quem me dera ter a tua vida" (cito de memória, ou seja, invento com quantos dedos tenho a bater no teclado) a que se seguiu um desabafo de Liszt "Estou farto farto farto desta vida de pianista, hoje aqui amanhã acolá! Quero parar, quero começar a compor!"
E parou: aceitou finalmente um antigo convite para ir residir em Weimar.
A história começa muito antes, como é costume: com a chegada da irmã do czar, a famosa Maria Pawlowna, que tentou manter o espírito de Weimar, pelo qual a cultura e a tolerância tentavam, de mãos dadas, elevar o nível da população. Para criar um novo período áureo para a cidade, semelhante ao da época de Goethe e Schiller, mas desta vez com música, começou por chamar Johann Nepomuk Hummel, um aluno de Mozart. Após a morte deste, chamou Liszt. Mas Liszt ainda não estava farto de dar concertos e ter todas as cidades europeias aos seus pés, pelo que foi adiando adiando, até que se meteu em sarilhos com uma mulher casada, a Carolyne von Sayn-Wittgenstein, e acreditou na palavra da irmã do czar, que disse que ia dar uma ajudinha para o divórcio.
No que o pobre Liszt se foi meter! A orquestra às suas ordens tinha músicos maus e muito mal pagos e frustrados. Como é que estômagos a rosnar podem produzir arte? E o czar acabou por ordenar à sua irmã que evitasse todo o contacto com a Carolyne von Sayn-Wittgenstein. A corte de Weimar, que bem conhecia a voz do dono, seguiu-lhe o exemplo. Só um punhado de damas, como a escritora Henriette von Schorn, continuaram a frequentar a sua casa, esse palacete de Altenburg fora de muros, na encosta nascente da cidade.
Para calar as más-línguas, Liszt residia oficialmente num hotel do centro, onde a sua correspondência era entregue, enquanto os seus vários pianos de cauda e outros instrumentos musicais residiam na Altenburg, juntamente com a sua amada - e era nessa casa que ele desenvolvia a sua vida social, trabalhava, recebia amigos (como Wagner, que escondeu em 1849, quando este ia a fugir para a Suíça).
Perdido nos desafios da sua revolução de costumes privada, e nas resistências que encontrou na orquestra e na corte, Liszt acabou por ficar de fora dos movimentos revolucionários de 1848. E não venham agora criticar, que enquanto não se meteu em políticas tratou de compor uma dúzia de poemas sinfónicos e outras delícias assim. Praticamente amarrado à cadeira pela sua namorada, que se queixava que, não lhe faltando génio, tinha um grave problema de fundilhos: era pouco amigo de se sentar a trabalhar.
Génio não lhe faltava, é certo: tanto musical, como intelectual. Propôs ao grão-duque que criasse uma Fundação Goethe, para promover a literatura e a música alemãs, propôs também que criasse um teatro Wagner para as obras deste compositor, especialmente para o Anel dos Nibelungos. O grão-duque dizia que sim a tudo, mas tudo ficou em águas de bacalhau. Bayreuth aplaudiu.
Que lhe restava? Um grupo de intelectuais incompreendidos pelo seu tempo, com quem partilhava os salões da Altenburg: a primeira feminista alemã, Fanny Lewald, com o seu companheiro, Adolf Stahr; Bettine von Arnim, Peter Cornelius, entre outros. E também o dissidente político Hoffmann von Fallersleben (o poeta que escreveu o hino nacional alemão), que após cair em desgraça em Dresden foi ajudado por Liszt em Weimar. É de Fallersleben a ideia de criar o "clube nova Weimar", uma instituição que, com Liszt, Fallersleben e Berlioz à sua frente, declara guerra ao conservadorismo da cidade.
Ora, dessa é que Goethe não se tinha lembrado! Quando se começou a sentir sufocado pelo provincianismo da sociedade de Weimar, pediu licença aos pés e pôs-se a andar para Itália. Ao fim de uns tempos regressou, contagiou os amigos com o vírus do sul, levou-os lá, sacudiu mais um pouco o pó da corte, mas nem assim conseguiu mudar muito a cidade. Liszt fugiu apenas para a Altenburg, na encosta da saída para Jena, onde se encontrava com amigos da nova Weimar, onde recusava a entrada aos da velha. Uma luta sem tréguas, que acabou por perder. Como perdeu outra: a sua Carolyne, que entretanto conseguira do Papa a anulação do casamento, abandonou-o na véspera do casamento, e Liszt foi para padre.

Mas tudo isso aconteceu muitos anos depois deste 1848, muito longe deste salão filarmónico onde um actor lê uma carta da Carolyne apaixonada, e ela diz que beija os pés do seu querido amante, varre com os cabelos o chão que ele pisa. O público aplaude, encantado, eu não - era o que faltava aplaudir um amor assim!
A pianista e o violoncelista começam a tocar Liebestraum, sonho de amor - música que eu já não ouvia desde os meus quinze anos. Estas melodias que nos surgem do esquecimento de muitos anos têm algo de mágico: oferecem um salto no tempo, por acordarem em nós aquilo que éramos na época em que as ouvíamos. Por uns minutos fui de novo adolescente, arrebatada pela beleza daquela música tranquila numa sala cheia de sol, na casa da minha avó.



Liebestraum, uma das peças mais famosas de Liszt, foi originalmente composta para um poema: "oh, ama enquanto puderes amar! / Oh, ama enquanto quiseres amar! / chegará a hora, chegará a hora / em que chorarás junto à campa".

Aqui estão duas versões da mesma peça:

- com Gundula Janowitz a cantar:


- com Evgeny Kissin ao piano:


Fora eu moradora de Weimar nessa época, ter-me-ia juntado ao grupo "Neues Weimar". Por todos os motivos, e também por cálculo, não escondo. Para poder sentar-me num canto do salão, ao lado da Henriette von Schorn, a ouvir esta música composta para um conjunto inesperado de instrumentos: violoncelo, piano, harmónio e harpa.



Para terminar, três presentes de 200º aniversário:
- A orquestra sinfónica de Viena, tocando "Les Préludes", sob a batuta do maestro Valery Gergiev.
- A Rapsódia Húngara nº2, tocada por Alfred Brendel e por Georges Cziffra (no dizer do jornal The Epoch Times, onde fui buscar alguns destes links, "o pianista húngaro foi aos nove anos de idade aluno de um aluno de Liszt, e toca esta peça de forma arrebatadora e selvagem. Liszt deve ter sido uma força da natureza assim.")

26 comentários:

sem-se-ver disse...

sim, tem esse efeito.

ainda hoje me admirei por (mais uma vez recordar timtim por timtim a letra do 'fils de'. eu, que sou um desastre com letras, sei as de brel todas de cor. enfim, muitas delas. brel que ouvi até a exaustao qd o descobri, em 76/7 (!), e nos anos a seguir a esses, ainda em coimbra. claro que voltei a ele, qd começaram a sair os cd's mas, por deus, nao com a mesma intensidade.

e o misterio permanece para mim: onde se guarda, em que sitio tao poderoso da memoria, se guarda a música? essa que à primeira nota, ao primeiro acorde, nos faz exclamar 'eu conheço isto, ha quanto tempo nao o ouvia, deus meu', e podem desligar a musica que ela continua a deslizar na nossa mente? esse poder de viajar no tempo e nos fazer regressar - tal como dizes - a qualquer época da nossa vida passada?

é um misterio, sinceramente, é um misterio. e tao bonito, por deus.

Helena Araújo disse...

...e tão bonito, sim!

sem-se-ver disse...

(enqt vou ouvindo as tuas prendas, deixa retribuir:

http://sem-se-ver.blogspot.com/search/label/liszt

Carlos disse...

Belo post, Helena. E é tudo tão belo...

Helena Araújo disse...

Carlos, :-)
eu hoje esmerei-me. Que não é todos os dias que se faz 200 anos.

Sem-se-ver,
obrigada pelo presente, mas não vou poder ainda gozá-lo. Estou a sair para uma grande maluquice, uma peça de teatro improvisado (o público chega, senta-se, e diz aos actores o que quer, e eles improvisam segundo a encomenda) e depois, se o meu telemóvel não me trocar mais uma vez as voltas, vou à Russendisko. Até amanhã!

Carlos disse...

E, já agora, deixo-lhe isto.

Helena Araújo disse...

Obrigada! ia para a ouvir, mas formou-se uma cascata de água a cair do meu computador para o chão...
;-)

sem-se-ver disse...

CZIFFRA - excelente.

sigo pra bingo

io disse...

Que maravilha!Que maravilha! De post, de histórias e de música. Um grande beijo e um enormérrimo BEM HAJAS!

sem-se-ver disse...

brendel - o must habitual.

siga pra outro bingo

sem-se-ver disse...

nao consigo. foi uma das que mais maestrei. pronto, viagem ao passado mas escusado ter sido a um tao cheio de sonhos nao concretizados. fiquei bué da triste.

(lembrei-me daquela tira da mae da mafalda, de lenço na cabeça a limpar e a arrumar um armário, encontra umas pautas, pensa 'ah, as minhas aulas de musica... coitada da minha professora dona ermelinda, dizia que eu seria uma grande pianista', com um sorriso. quadrado seguinte, cabeça encostada ao armário 'coitada? ela?...')

(no meu caso ainda foi pior, nao tive quaisquer aulas de musica sem ser as da escola... canto coral, e isso.)

(desculpa)

(tou mm velho-senil.)

(já me recompus)

bjs, vou ao cinema.

sem-se-ver disse...

(nao ouvia há mt tempo. foi do choque. nao ligues)

sem-se-ver disse...

(a interpretaçao é belissimia issima issima)

Teresa disse...

Tenho de reler uma óptima biografia de Lizst que fez as minhas delícias há uns 15 anos, esqueci tantas coisas!
O que mais me impressionou nele foi a imensa generosidade com outros músicos.

E se não ouvias Libestraum desde os 15 anos, eu não devia ouvir desde os 20!
E que delícia!

É a tal coisa, tendemos a abandonar as peças mais celebradas e conhecidas do repertório clássico, começamos talvez a achá-las demasiado simples. Há dias tive o capricho de ir ouvir As Quatro Estações de Vivaldi, em que não pegava havia anos. Aquele Inverno! Aquele Inverno!

Gi disse...

Sabes que o Google em português e em inglês não tem o boneco do Liszt? Estou indignada!
Bons links. Alguns encontrei enquanto andava à procura de um clip para pôr no post que também lhe dediquei, outros não, vou aproveitar e segui-los a partir daqui.
Obrigada :-)

Helena Araújo disse...

Gi, não fazia ideia que eles não têm os mesmos bonecos no mundo inteiro!

Teresa, eu já não suporto a Primavera. Mas talvez um dia destes me atreva de novo ao Inverno. (parece que estamos a falar por código)

Helena Araújo disse...

sem-se-ver, estás a falar de Les Préludes?

Um dia hei-de te perguntar com calma que história foi essa de teres maestrado o quê.

Helena Araújo disse...

io,
o teu nome é...
amorosa.

Teresa disse...

Helena,
Ah, mas eu fui directamente para o Inverno! É como em certas óperas em que salto árias: Libiamo na Traviata, La Donna è mobile no Rigoletto, etc. Já não aguento ouvi-las.

Outra coisa: já reparaste na quantidade de pessoas que aqui vêm que sabem a Mafalda de cor, pormenorizadamente, com descrição do cenário e tudo? :)

E agora, para todas, um presente lizstiano. :)))) A minha interpretação favorita da sua Rapsódia Húngara n.º 2:

http://www.youtube.com/watch?v=6NXo7pr8iRM

Helena Araújo disse...

ai, Teresa, deixa-me cá ver: onde é que eu já terei ouvido isto?
Aaaah, aqui:

http://conversa2.blogspot.com/2010/05/encantamento.html

;-)

(se é a tua interpretação favorita, é mesmo pena não teres visto o Lang Lang a acompanhar o Tom ao piano)

Teresa disse...

«Les beaux esprits se rencontrent» :)))))
(coff, coff, que modéstia).

Também eu em tempos pus na Gota:
http://gotaderantanplan.blogspot.com/2007/12/um-pouco-de-lizst.html

Carlos disse...

«E agora, para todas, um presente lizstiano.» [negrito meu]

Snif, snif... Obrigadinho por me excluir, Teresa. :-(

Agora a sério: muito bonito -- para não destoar! :-)

Helena Araújo disse...

Carlos,
a Teresa, quando pensa no Liszt, até começa a falar alemão! Isso é o plural segundo a gramática do Goethe.

(Teresa,
safei-te, deves-me mais um link.)

;-) para ambos, e bom dia!

Carlos disse...

E assim começa mais uma semana, por aqui, depois de um dia de temporal, com muito sol.

Bom dia! :-)

Paulo disse...

Esse Liebestraum cantado por Gundula Janowitz ganha toda uma outra dimensão. Que voz!

Parabéns atrasados ao Mestre.

Helena Araújo disse...

Paulo, desta vez chegaste atrasado, mas não te preocupes: ele cá estará para os receber quando fizer 250.
;-)