Hoje há dez anos o Joachim estava a sair de San Francisco num dos primeiros aviões civis que voou após o atentado do onze de Setembro.
Ia com destino a um congresso na Argentina, e passava por Nova Iorque. Ao sobrevoar a cidade, o piloto inclinou o avião para que todos pudessem ver Manhattan, e disse "ladies and gentlemen, the skyline of New York - it will never be the same". E eles viram: a cratera fumegante.
Muitos pilotos e assistentes de bordo estavam ainda em casa, profundamente traumatizados. Alguns ainda nem sequer tinham conseguido regressar, depois da paragem forçada onde calhou, um pouco por todo o mundo, e tinham passado vários dias em abrigos improvisados, quase sem acesso a notícias ou informação sobre as suas próprias perspectivas de regresso. Nos primeiros dias de reinício de actividade, as companhias de aviação não obrigavam nenhum funcionário a voar contra a sua vontade.
De modo que o Joachim chegou a Nova Iorque e regressou algumas horas mais tarde, porque não havia pessoal para o levar para Buenos Aires. No avião para San Francisco um passageiro entrou e fez meia volta, em pânico, ao ver lá dentro dois passageiros com pele um pouco mais escura.
Como só havia uma hospedeira para fazer todo o serviço, o Joachim ofereceu-se para a ajudar. "Oh, you are so kind", exclamou ela, e mais uma meia dúzia de superlativos, mas recusou. À saída, ofereceu-lhe uma garrafa enorme de champanhe francês gelado, embrulhado num guardanapo de pano, e mais uma rosa vermelha da primeira classe. Que o Joachim brandiu para mim alegremente quando o fui buscar ao aeroporto, muito aliviada não lhe ter acontecido nada enquanto sulcava os céus americanos. Em casa, brindámos a estes gestos que os humanos se oferecem no meio da aflição.
Poucas semanas mais tarde a Maria João e o Mário Laginha deram um concerto em San Francisco. Ela disse que estava muito contente por ter vindo, que todos lhe diziam que era asneira, que era perigoso, e que as notícias que recebiam na Europa eram uma catástrofe, mas que tinham decidido vir apesar de tudo - e a sala irrompeu em aplausos vindos do mais fundo do coração.
Por essa altura a minha empresa cortou os salários do pessoal - ou isso, ou mandar alguns de nós para a rua - porque havia menos encomendas de tradução. A economia estava a retrair-se. A colega francesa começou a almoçar o cheese burger do McDonald's, que custava um dólar. Eu comecei a fazer mais comida ao jantar, para trazer para o nosso almoço - o meu, e o da francesa. E a mulher do chefe, que também era assistente de voo e ficara retida num pavilhão desportivo durante quatro dias, algures na Gronelândia, deixou junto ao microondas um papel onde se lia "não aqueçam aqui peixe". Era a minha caldeirada, famosa em todas as Américas, e que bem nos sabia aquecida. Nojentinha, perdi logo a pena que tive dela durante a semana do onze de Setembro, faz hoje dez anos.
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