16 junho 2011

Sárramagô

A Embaixada de Portugal na Alemanha e o Instituto Camões organizaram, por ocasião do 88º aniversário de Saramago, uma sessão com os seus tradutores. À parte o pormenorzito de na Alemanha não ser muito costume festejar alguma coisa com dois oitos seguidos (para quem não sabe: 8 é a oitava letra do alfabeto, o H - querem que faça um desenho?), foi uma delícia de serão.

Rainer Bettermann foi o primeiro tradutor de Saramago para alemão. A convite da Associação de Amizade Portugal-RDA viveu em Portugal de 1976 a 1981, onde trabalhou como leitor. Após o seu regresso à Turíngia, um amigo português enviou-lhe um livro com este bilhete: "tens de traduzir isto". Era o Levantado do Chão. E ele começou a traduzir, em condições que já ninguém imagina: sem dicionários decentes, sem internet. Se lhe aparecia uma palavra desconhecida, tinha de pegar em caneta e papel e selo para pedir ajuda ao autor. A resposta chegava semanas ou meses mais tarde. Esta resposta, por exemplo: "essa palavra não existe, inventei-a eu".

Sarita Brandt falou do Saramago tradutor, e da exigência que punha no seu trabalho. Detalhou: uma carteira de "cuir jaune", couro amarelo, couro amarelo, uma carteira de couro amarelo?! Não. Uma carteira de couro jalne. Sendo a mesma cor, é todo um outro objecto.  
Contou também  sobre o seu primeiro contacto com a escrita de Saramago. Fora convidada para um workshop sobre o escritor, para o qual devia levar a sua tradução do conto "A Cadeira" (*). Na véspera, depois de dar o jantar aos filhos e os meter na cama, sentou-se a traduzir. Trabalhou várias horas, e não conseguiu passar do primeiro parágrafo. Mas convidaram-na para ser a tradutora de Saramago. Provavelmente - digo eu - negociou um preço especial por página.

Marianne Gareis começou a traduzir Saramago no nosso tempo de internet e networking. O autor remetia para ela os tradutores das outras línguas. "Perguntem à tradutora de alemão, não lhe escapa nada", dizia ele, assim ou de outra forma. Não lhe escapa nada, é certo, nem sequer as incongruências do texto. Que fazer, nesse caso? Ir incomodar o autor, fazer de conta que não reparou, alterar ligeiramente o texto?
E que fazer quando a Morte se apaixona por um músico? Em português é caso para dizer "pois que sejam muito felizes", mas em alemão o livro ganharia significados não previstos inicialmente, porque "morte" é masculino.
Para terminar, Marianne Gareis lê uma passagem da sua tradução de As Intermitências da Morte. Na sua voz, grave e tranquila, o texto transforma-se em música de belíssima cadência.

Ando desde então a resistir ao impulso de comprar Saramago em alemão.

***

(*) Para terem uma ideia da dificuldade, tentem traduzir isto para uma língua que dominem bem:


"A cadeira começou a cair, a ir abaixo, a tombar, mas não, no rigor do termo, a desabar. Em sentido estrito, desabar sifnifica caírem as abas a. Ora, de uma cadeira não se dirá que tem abas, e se as tiver, por exemplo, uns apoios laterais para os braços, dir-se-á que estão caindo os braços da cadeira e não que desabam. Mas verdade é que desabam chuvadas, digo também, ou lembro já, para que não aconteça cair em minhas próprias armadilhas: Assim desabam bátegas, que é apenas modo diferente de dizer o mesmo, não poderiam afinal desabar cadeiras, mesmo abas não tendo? Ao menos por liberdade poética? Ao menos por singelo artifício de um dizer que se proclama estilo? Aceite-se então que desabem cadeiras, embora seja preferível que se limitem a cair, a tombar, a ir abaixo. Desabe, sim, quem nesta cadeira se sentou, ou já não sentado está, mas caindo, como é o caso, e o estilo aproveitará da variedade das palavras, que afinal, nunca dizem o mesmo, por mais que se queira. Se o mesmo dissessem, se aos grupos se juntassem por homologia, então a vida poderia ser muito mais simples, por via de redução sucessiva, até à ainda também não simples onomatopéia, e por aí fora seguindo, provavelmente até ao silêncio, a que chamaríamos o sinônimo geral ou omnivalente. Não é sequer onomatopéia, ou não é formável ela a partir deste som articulado (que não tem a voz humana sons puros e portanto inarticulados, a não ser talvez no canto, e mesmo assim conviria a ouvir de mais perto), formado na garganta do tombante ou cadente, embora não estrela, palavras ambas de ressonância heráldica que estão designando agora aquele que desaba, pois não se achou correcto juntar a este verbo a desinência paralela (ante) que perfaria a escolha e completaria o círculo. Desta maneira fica provado que não é perfeito o mundo."

Cadeira, (in Objecto Quase), de José Saramago.

3 comentários:

Paulo disse...

Quando comecei a ler Saramago, a "História do Cerco de Lisboa", até tinha pesadelos. Sonhava que estava a traduzi-lo para Alemão. Nem te peço para mostrares aqui o que farias com a primeira frase.

Helena Araújo disse...

Não peças, não. Eu nem saberia traduzir isso para português!
;-)

Paulo disse...

Ah ah. Nem eu.