A convite do Pedro Correia (esse simpático head hunter dos blogues), escrevi para o Delito de Opinião o texto que a seguir transcrevo. Não é bem um estéreo, é uma edição revista e aumentada: tem mais fotografias.
Os vizinhos do segundo andar deixaram uma carta em todas as caixas de correio do prédio, informando que, em 1942, uma mulher judia foi levada do nosso prédio para Theresientstadt e daí para Auschwitz, onde foi assassinada, e que em sua memória tinham encomendado uma Stolperstein, uma “pedra no caminho”.
Trata-se de uma iniciativa de um artista alemão, Gunter Demnig: em frente à última morada voluntária de vítimas do nazismo põe-se entre as pedras da calçada um pequeno bloco de betão com uma placa em metal, onde estão inscritos nome, ano de nascimento, data da deportação e da morte. Uma das intenções é devolver a essas pessoas o seu próprio nome – que no campo era substituído por um número – levando a que os passantes parem e por uns momentos se curvem perante a sua memória. No meu caminho para o metro há onze placas dessas em frente a uma só casa, e fazem-me sempre parar: Selma Sternfeld, aos 79 anos de idade arrancada à sua casa com destino a Theresienstadt. Clara e Minna Plessner, de 63 e 64 anos, imagino-as duas irmãs solteironas, assassinadas em Piaski (onde será Piaski?). Johanna Steuer, a caminho do campo de concentração com 75 anos, um martírio de duas semanas e meia até a matarem. Reparo nas datas da deportação, quase todas diferentes: vez após vez o mesmo terror, “por quem virão eles hoje?” ou “será que hoje há uma carta para mim?”
Também da nossa casa saiu uma mulher, levada à força para Theresienstadt, e os vizinhos do segundo andar encomendaram uma pedra para o nosso caminho. Fomos falar com eles, louvar a iniciativa, pedir para participar nos 100 euros que este pequeno memorial custa, mas em vez disso deram-nos uma lista de nomes: da nossa rua minúscula levaram mais de trinta judeus para campos de concentração. Podíamos escolher um deles, sugeriram, e encomendar mais uma pedra. Temos andado a pensar nisso: é estranho adoptar uma vítima de entre seis milhões, ou mesmo de entre trinta. A mulher de 82 anos? O rapaz de 20? A família pai-mãe-filha que foi enviada para o gueto de Varsóvia? Um deles seria a herança dos nossos filhos: a “nossa” pedra, um nome resgatado para ser levado de geração em geração, dos nossos netos aos seus bisnetos.
No dia aprazado chegou o artista, segurando reverentemente o cubo, e um ajudante que trazia as ferramentas. Descemos todos e fizemos um círculo à volta do homem que, muito rápido, tirou algumas pedras, inseriu o bloco, deitou areia e cimento. O ajudante juntou a água e varreu o chão. Depois levantaram-se, nós acendemos uma vela e pousámos rosas no passeio.
Ficámos alguns minutos em silêncio. A vizinha do segundo andar chorava desamparadamente. A vizinha do terceiro andar, que descende de uma família de judeus assimilados e é muito extrovertida, começou a segredar-me legendas para o que estava a acontecer. “Temos de lembrar”, dizia ela, e repetia-se “que ninguém esqueça”, e lamentava-se “isto foi uma coisa horrível, horrível, horrível”. E eu fazia que sim com a cabeça, e deixava-a falar apesar de não querer ouvir, e tentava não chorar como a outra vizinha, tomada de uma tristeza informe por esta mulher que talvez tenha habitado as minhas salas, e foi morrer assassinada em Auschwitz.
3 comentários:
Obrigado, Helena.
Gostei muito do texto. Aqui e lá.
Obrigada.
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