Fui à Filarmonia comprar bilhetes nos bancos de pau para os concertos desta semana, descobri que os bilhetes para o concerto/bailado na Arena Treptow já estão quase todos esgotados e comprei logo uma dúzia para os amigos (amigos: quem quiser chegue-se à frente) (leitores residentes em Berlim, ou que visitem Berlim no último fim de semana de Junho: trata-se disto, com música de Rameau e a maestrina Emmanuelle Haïm, por 8 euros).
Regressei a casa toda contente, com a carteira a abarrotar de promessas de beleza.
No autocarro, fui como sempre para o andar superior. Estranho: estava muito cheio, mas havia uma fila à frente, nos chamados melhores lugares, que estava vazia. Sentei-me, e logo a seguir percebi: estava mesmo atrás de um pequeno grupo de punks em excursão. Cheiravam um bocadinho mal, bebiam cerveja e arrotavam como trombones. Ai.
Ao passar na paragem "Albergue de Juventude Resistência Alemã" uma das punks riu-se: albergue de juventude da resistência alemã, que nome engraçado!
Por acaso: a quantidade de vezes que já passei ali, e nunca me ocorreu o cómico do nome.
Decidi deixar-me ficar, que a conversa prometia. E bem: hoje fiz a mais divertida viagem de autocarro de que tenho memória. Eles não eram de Berlim, e vinham com um guia, uma espécie de assistente social disfarçado de cool, com pulseiras cheias de imagens de nossa senhora, um lápis detrás da orelha e outros adereços do género. Ao falar, abria muito os olhos, fazia uma voz toda empolgada: como quando contamos aos meninos histórias de dinossauros muuuuuuiiiiito graaaandeees e feroooooozes. O dinossauro era outro: "olhem que eu sou um especialista de III Reich", dizia ele, todo orgulhoso de si próprio.
A miúda perguntava "então onde é a tal resistência alemã, será isto aqui?" e apontava para um prédio neocoiso com a porta da entrada debruada a flores de pedra. Aqui, dizia o guia, apontando para o edifício certo, e punha voz de caso: foi aqui que mataram o Stauffenberg. Foi o comandante, fez-lhe o favor de o matar antes de ser torturado pelos SS. Olhem que eu sei muito disto, na escola fomos passados a ferro com esta matéria toda, parecia uma lavagem ao cérebro. Tive um professor que era nazi...
- Nazi?! Não és tão velho! Quando é que andaste na escola?
- Fins dos anos sessenta. Que querem: os grandes do partido foram corridos, mas os pequeninos ficaram, foram para polícias ou professores. Tiraram o uniforme castanho, não abriam a boca, mas eram nazis na mesma.
- Que nojo, diziam os punk, e arrotavam.
- Eh, pá, há um sítio muuuuiiiitooo giiiiiro no Ku'damm, tenho de vos levar lá. Fazem de conta que estão a queimar os livros...
- Que livros?
- O III Reich queimou livros dos escritores que não eram nazis. E no Ku'damm tem um sítio onde parece que estamos a caminhar sobre a fogueira. É impecááável, vamos lá. De qualquer modo, temos de fazer alguma coisa, fazemos isso.
A conversa continuava, sem parar. Pareciam meninos grandes, todos eles, e enquanto descobriam a cidade eu descobria, fascinada, aquela sua maneira simples e directa.
Depois chegou a vez da paragem deles, beberam o resto da cerveja, deram um último arroto, saíram.
O autocarro ficou normal, que pena.
2 comentários:
Que sorte, assististe na primeira fila, a um espectáculo único, ao preço de uma viagem de autocarro! ;)
Aqui, se apanhasses a carris, ouvirias algo como: olha ali, voltou a fechar aquela loja, era enorme tinha artigos lindíssimos, faziam filas enormes, agora fechou... isto vai de mal a pior, nunca mais se endireita... usw, usw...
(Humor negro hoje!)
Sofia,
e não se arranjam uns punks para animar os autocarros portugueses?
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