Passámos o Natal com amigos, perto do Lago Constança. À experiência, porque projectamos fazer mais tarde uma república de velhotes com eles, no topo de um prédio de Kreuzberg, com pequenos apartamentos para cada um, e mais uma sala comum fantástica, e mais a enfermeira que nos há-de mudar as fraldas a todos, e por isso convém ir experimentando juntos alguns momentos importantes do ano.
(Ainda não começámos a construir a casa nova, e já estamos a imaginar o depois de. Se isto não é uma espécie de avantgarde...)
Como ia dizendo: passámos o Natal com amigos, perto do Lago Constança.
A comida não costuma ser o elemento central dos Natais que tenho vivido na Alemanha. Nem os presentes. O que costuma ser realmente central é o ambiente de harmonia e Gemütlichkeit. Este Natal, por exemplo:
A seguir ao pequeno-almoço demos um passeio pela floresta nevada.
Como os nossos amigos são protestantes, fomos com eles celebrar o Natal na concorrência. No dia 24 faz-se em muitas igrejas uma representação teatral ligada ao presépio. E assim foi nessa comunidade: um adolescente de headphones e boné irritantemente virado para trás perguntava-se o que é que o Natal tinha a ver com ele, e um anjo muito autoconfiante falava-lhe sobre a Luz - mensagem que o "parvinho" percebeu quando umas pequenitas amorosas e espevitadas, bem conscientes do efeito dos seus caracóis loiros (verdadeiros) e das asas enormes que alguma avó lhes terá feito, começaram a cantar o famoso glo-ooooooooo-ooooooo-ooooooria. O pastor também resolveu fazer um desenho: perguntou às crianças das primeiras filas o que era o mais importante no Natal. Um rapazito ousou a sinceridade: "os presentes!" O pastor quis saber o que é que ele tinha recebido há dois anos. Não sabia, claro. "Então não pode ser assim tão importante", concluiu o pastor. Boa malha.
Depois da igreja, o jantar. Relativamente simples (uma salada, um prato de carne enrolada acompanhada por couve-roxa com maçã e uma massa típica da região, e gelado com ameixas de conserva aquecidas numa calda de vinho do Porto), preparado sem alarde nem canseiras com a ajuda de todos.
No fim do jantar, todos vieram discretamente pôr os seus presentes debaixo da árvore. Os miúdos foram esperar para um quarto, enquanto o pai acendia as velas do pinheiro.
(E não puseram um balde com água ao lado. A ver se me lembro, quando tivermos a nossa república em Kreuzberg, de pedir à enfermeira que traga um balde com água por causa das coisas. Ou até um extintor, nunca se sabe.)
A mãe acendeu velas nas escadas, para iluminar o caminho até à árvore.
Os miúdos vieram, fizemos roda de guitarra a cantar os habituais cânticos de Natal (e se os há belíssimos!), o Matthias tocou um prelúdio de Chopin que tem andado a aprender, leu-se um relato do Natal segundo São Lucas, e alguns textos engraçados sobre esta época. Com muita calma, muitas gargalhadas.
Finalmente, os presentes. Que vinham com postais feitos à mão, e textos transbordantes de ternura. Por mim, bastavam os postais, nem era preciso darem presentes.
No dia seguinte seguimos para casa da minha sogra, para passar com ela os feriados de Natal. Novo passeio pelos campos com neve, novo jantar fácil de preparar: raclette.
No segundo feriado de Natal (sim, aqui o dia 26 também é feriado) fomos a uma missa festiva, com orquestra e coro. Em alguns momentos parecia-me estar a ouvir uma missa de Mozart, embora não a conhecesse. À saída, um amigo nosso explicou: "Era uma missa de Hummel, conheces?"
(Conheço, claro que conheço. Era meu vizinho em Weimar, morava entre o Goethe e o Liszt. Ali a dois passos da escola do Walter Gropius. Agora mora lá um conhecido nosso, tem uma bela sala, muito moderna, virada para o jardim.)
Celebrava-se Santo Estêvão. Gosto que no segundo dia de Natal se celebre este mártir da igreja, um dos primeiros cristãos a compreender que Jesus Cristo veio ao mundo para todos, judeus e gentios, e que morreu rezando para que Deus perdoasse aos que o matavam à pedrada.
Ora aqui está alguém que sabe o que é o mais importante no Natal, e o que é que isso tem a ver com ele.
Regressámos aos amigos no Lago Constança um dia antes do que queríamos, tentando antecipar-nos à nova camada de gelo que se anunciava para as estradas. Depois de viagens destas, tenho sempre tiques de Papa: apetece-me beijar o chão à chegada.
9 comentários:
Há muitos muitos anos um colega falou-me do sonho que tinha de um dia, quando se reformasse, ir com os amigos viver numa aldeia transformada em condomínio, com serviços comuns apropriados. Esse sonho contagiou-me.
Duvido que seja possível, porque os meus amigos são bastante individualistas e, como os colhi em lugares e situações diversas, não formam grupo.
Mas que era giro era.
Boa tarde Helena,
Já vi que o Natal foi excelente.
Algumas notas / dúvidas/ perguntas :
- a enfermeira já esteve presente ?
- que modelo de fraldas escolheram ?
- quando começa a construção da nova casa ?
- e eu a pensar que os alemães eram uns comilões :))
- afinal bebem é muita cerveja e pelos vistos exageram nos feriados de Natal
- os turcos também têm direito aos feriados ?
Bom Ano
P.S. : aquela "minha" fotografia lá no meu tasco não é de agora...mas no dia 1 o tempo esteve razoável
Gosto muito da região à volta do Lago Constança.
E acho piada aos bonés virados para trás ;)
Gi,
quando penso nisso, um pouco mais além de uma BBQ-party num terraço sobre os telhados de Kreuzberg, fico um pouco triste: assistir à degradação físisca das pessoas de quem gosto, vê-los morrer um a um.
E também há esse problema de escolher: o primeiro grupo, e depois os substitutos. Difícil, difícil...
António,
- não, só estavam lá 3 médicos;
- ainda não chegámos a essa fase (depois digo-lhe, prometo - parece que agora há umas australianas, biodegradáveis)
- se tudo correr bem, em Abril
- não, nem sequer chegam aos calcanhares dos portugueses (especialmente no Natal - uma tia-avó do Joachim adorava-me por causa disso mesmo: eu sozinha comia quase tanto como a família toda junta, e ela sentia-se reconhecida como boa cozinheira)
- isso da cerveja é boato: no nosso grupo, o único que bebeu cerveja foi o peruano...
- os turcos também têm direito aos feriados cristãos, coitados. Nos feriados da religião deles metem férias, que remédio.
Bom ano para si também!
Cristina,
ai! o Lago Constança é lindo (quando se vê, o que mal foi o caso), agora os bonés virados para trás...
;-)
Olá!
Mais uma vez muito obrigado pela brilhante escrita!...
Humm... Como eu gostava de passar um Natal nesse lugar tão especial e assim com tanta neve... Ah!... E com um daqueles gorros de Pai Natal na cabeça claro!!!... Preparando-me para comer a boa comida que os Alemães sabem fazer muito melhor do que eu pudesse imaginar!... Pelo menos em Hamburgo encontrei muita, estupenda e incrivelmente barata comida para todas as ocasiões!... E apesar de ter sido dia de festa na Cidade não vi excessos com a cerveja... Eles são malta equilibrada!!!...
E não se preocupe muito com o ter de ir à "missa" na concorrência... Creio que a malta dos Luteranos (EDK como se chamam por aí, não é?) actuais é malta equilibrada que vai conseguindo resolver razoavelmente bem os seus problemas e dando-nos algumas lições a todos nós... E ao fim e ao cabo é muito mais o que nos une do que o que nos separa: Cristo Ressuscitado no meio de nós!... Não tenho dúvidas de que se o bom Papa João XXIII tivesse vivido mais 20 anos do que viveu, pelo menos este problema da divisão dos Cristãos com os Luteranos, os Anglicanos, os Velhos Católicos, os Metodistas, os Presbiterianos, os Reformados e os Congregacionalistas e talvez alguns Ortodoxos já há muito estaria resolvido... Mas infelizmente... A nossa Igreja continua envolta nas suas querelas internas... Agora acrescidas com o drama dos abusos sexuais... Passar o Natal com os "protestantes" é um lindo exemplo do verdadeiro ecumenismo e da verdadeira cooperação e compreensão entre os povos!... Parabéns!... Quando fui à Noruega no verão passado, à falta de Missa Católica lá fui eu à Missa Luterana na Catedral de Stavanger!... E confesso que não foi uma má experiência!...
Boa noite!!!...
:)
catita esse vosso Natal!
Maria,
foi mesmo muito giro. Calmo, sobretudo.
Pensamento positivo,
"Eles" às vezes exageram. Não vá a Colónia na altura do Carnaval...
Eu não me preocupei nada em ir à
missa da concorrência. Chamar-lhe "concorrência" já é parte da brincadeira. Quanto ao ecumenismo: tem mesmo de ser? Não precisamos de ser iguais para ser unidos. Há coisas complicadas de resolver, como a Comunhão, que não significa o mesmo para os católicos que para os protestantes. Mas mesmo que conseguíssemos uma base teológica comum, as pessoas continuariam a querer coisas diferentes: os antigos ortodoxos muito mais simbolismo e ritual, os antigos protestantes menos símbolos e mais palavras. Por mim, pode continuar como está, desde que as confissões não sejam motivo de conflito, como no trágico exemplo da Irlanda do Norte.
No dia 31 fomos todos à igreja católica do bairro. Os nossos amigos iam muito satisfeitos, na expectativa de uma celebração à grande, cheia de pompa e ritual, e saiu-lhes uma celebração da Palavra organizada por leigos. Ficaram bastante desapontados.
Outra coisa: não é só a Igreja Católica que se debate com o drama dos abusos sexuais. Também havia pastores casados a abusar de miúdos, também havia pedófilos em escolas não-confessionais.
Cada vez mais me parece que era o mal do Tempo. Um pouco como a escravatura, que até certa época não dava problemas de consciência a ninguém.
Helena, não me tinha lembrado da parte da degradação e morte... Mas isso há-de acontecer quer vivamos em grupo quer não, e quem sabe quem vai primeiro?
Pois é, Gi, eu a princípio também não me lembrei desse pormenor, mas depois ocorreu-me e deixou-me triste.
Uma coisa é vivermos num meio misturado, onde também há crianças, e outra é fazermos a "última etapa" quase só com gente da nossa idade.
Pensando bem, prefiro a ideia de prédios com várias gerações.
Também há projectos desses por aqui: pessoas de idade que combinam morar com famílias jovens; enquanto têm saúde, fazem de baby-sitter dos miúdos e ajudam-nos a fazer os trabalhos de casa, enquanto os pais trabalham. Quando ficam mais velhos, recebem ajuda dessas famílias. Reinventa-se a família alargada, mas já sem os laços de sangue. E faz sentido, nestes tempos que correm - sei lá em que continente é que os meus filhos vão viver!
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