O Spiegel teve cinquenta jornalistas a trabalhar durante meses no material do cablegate. Na capa da revista lia-se: "Revelação: como a América vê o mundo". O caso foi tema durante três ou quatro dias, se tanto. Mal empregado dinheirinho...
Agora discute-se se a wikileaks adianta ou atrasa a Democracia. E a história tem detalhes engraçados, como uma queixa feita ao Conselho da Comunicação Social, protestando contra o contrato de exclusividade entre os cinco jornais escolhidos e a wikileaks, que contraria o princípio da liberdade de informação.
Mas escândalos e revelações sobre a política alemã, coisas assim sumarentas, não houve.
A princípio fiquei chocada com o facto de uma revista como o Spiegel se entreter com as coscuvilhices do diz-que-disse relativo a governantes alemães. A própria oposição reagiu: que estas coisas não são um bom serviço prestado à Democracia.
Entretanto, começo a suspeitar que não podia ser de outro modo: para além das coscuvilhices, não tinham mais nada para publicar.
Ou eles estão a esconder os factos realmente graves sobre as relações entre a Alemanha e a América (que é como quem diz: ou os cinquenta jornalistas do Spiegel estão todos feitos com os políticos-cambada-de-corruptos), ou não havia mesmo nada relevante, excepto aquele rapaz da FDP que resolveu colaborar com a embaixada americana por conta própria.
Em suma: no que diz respeito à Alemanha, a recente acção da wikileaks não trouxe nenhuma novidade realmente importante sobre o que os políticos fazem nas costas do povo. Parece-me que isto é um sinal óbvio da saúde do sistema democrático alemão.
Já no que diz respeito a Portugal as coisas parecem ser diferentes: se bem entendi, a wikileaks revelou factos graves que os políticos esconderam ao país e sobre os quais chegaram a mentir.
Perante isso, há quem defenda a necessidade de uma vigilância tipo wikileaks para melhorar a Democracia.
Tenho as minhas dúvidas que isso nos conduza a uma Democracia mais madura. Temo que simplesmente continuemos a assistir ao aumento a desconfiança, do descrédito no sistema, do cinismo. E que a pouca-vergonha se instale de vez: para aguentar o controle feito por hackers, só mesmo políticos com a máquina de publicidade e a cara-de-pau de um Berlusconi.Se é por aí que queremos ir...
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Virando o bico ao prego: como seria o nosso mundo se o Estado decidisse que a maior parte dos contribuintes mentem, e para o evitar passasse a publicar as declarações de rendimentos de todos, convidando qualquer pessoa a denunciar falcatruas?
Alguém escreveu por estes dias um texto onde referia a imensa quantidade existente de dados informatizados, sobre tudo e sobre todos, terminando com: "habituem-se". Pois lá teremos que nos habituar, é verdade, mas não nos obriguem a achar que o futuro está cada vez mais risonho.
4 comentários:
Parece-me algo demagógica a argumentação do vira o bico ao prego, ou seja, atacar as "WikiLeaks" pensando que não gostaríamos de que nos fizessem o mesmo a nós próprios. Ora isso não conduz a nada de produtivo: publicar os podres dos indivíduos, na "net" como na mercearia do Bairro, já se pode fazer desde que a coscuvilhice foi inventada e nada tem que ver com a qualidade do regime em que se vive, seja ou não uma Democracia. Agora trazer a lume com transparência a moralidade de quem tem (muito e muitíssimo) poder sobre as nossas vidas, já me parece um potencial factor de aperfeiçoamento do sistema social em que se escolheu viver. Como já diziam os romanos: à mulher de César, não basta ser séria! Machismos circunstanciais à parte, a sabedoria deste aforismo mantém-se plenamente actual no Mundo de hoje. Não será seguramente por acaso que a Alemanha, ou a Europa do Norte em geral, tem uma saúde democrática mais resistente do que a norte-americana, que continua a suportar uma Administração imperial no exterior com uma face formalmente democrática no interior. A grande batalha estando no quão mais formalente ou essencialmente o vai sendo, com o passar do tempo (e a sucessão dos Presidentes...).
O bico ao prego é a questão do princípio: aceitamos que tudo se publique, desde que alguns (os detentores desse material) entendam que isso é informação relevante para a sociedade?
Não é por acaso que a Alemanha tem uma saúde democrática mais resistente que as outras, não. É que a saúde desta democracia não passa pela wikileaks - muito pelo contrário.
Fenómenos como a wikileaks não trazem bem nenhum à Democracia. Não é por aí. Uma democracia adulta dá muito mais trabalho que essa quotidiana excitação das mesas de café.
Não, Helena, não estamos mesmo de acordo nesta questão, mas isso não quer dizer que deixemos ficar mal-entendidos nas nossas opiniões. Eu (nem ninguém, acho eu) não defendo a "WikiLeaks" como um qualquer "avanço" da Democracia! Assim como não defendo a Polícia como, sei lá, uma conquista da Civilização! Claro que mecanismos de controle democráticos, quando eficientes, dispensam coisas como a "WikiLeaks", assim como uma multidão pacífica e bem-comportada dispensa a Polícia, uma alimentação racional e uma vida saudável dispensa os medicamentos, ou uma Sociedade de anjos até dispensaria a existência dos próprios Tribunais!
Porém, onde divergimos, é que, enquanto tu chamas a atenção, com (quanto a mim excessiva) veemência, para o facto de a "WikiLeaks" não ser própriamente, em termos democráticos, uma "alimentação racional", ocultas ou esqueces o essencial, quanto a mim: se a "WikiLeaks" não pode servir como alimento, é apenas pelo simples facto de se tratar de um... antibiótico! De uma novíssima (e ainda mal testada) gama, bem entendido. Mas como igualmente os "micróbios" que combate se estão, cada dia, sempre a refinar e a tornar mais resistentes!
Ou seja, os métodos "tortos" usados pela "WikiLeaks" para escrever "direito" poderão até não ser nenhum bem em si, mas apenas uma arma poderosa e muito útil para combater e, sobretudo (oxalá...), PREVENIR o mal!
Como a Resistência francesa também não seria internamente um modelo de virtudes, muito menos um paradigma de regime político, mas apenas um instrumento para o combate a uma usurpação, ou perversão, do Poder. Nada mais.
E não, não acredito nesta ou noutras "WikiLeaks" sem o crivo rigoroso de um Jornalismo sério, competente, isento e responsável. Como aliás agora aconteceu, também por mérito do "irresponsável" Julian. Que seja então ele, o Jornalismo validado como efectivo e legítimo quarto poder, a decidir sempre o que se entenda por "interesse público", e não os Assanges ou os poderes públicos de ocasião (ainda que legitimados pelo voto democrático, que aliás legitima Chávez e também legitimou Bush e Hitler...).
E sorte a da Alemanha e de todos os Países e Sociedades suficientemente decentes que, felizmente, já não precisam de últimos recursos como estes. Esperemos que nunca venham a precisar...
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