Comento apenas esta afirmação do post do Maradona: "O que essencialmente se afirma é que não deverá nunca ser da responsabilidade dos cidadãos, muito menos de um jornalista australiano de cor de cabelo indefinida, zelar pelos bocados de informação mais fulcrais ao funcionamento dos orgãos de soberania, mas sim das próprias instituições que os produzem e fazem circular."
É indiscutível que compete às instituições zelar pela segurança dos seus documentos confidenciais, e que fizeram uma asneira descomunal, e que esta crise é uma óptima oportunidade para aprenderem para o futuro.
Mas os cidadãos não têm de ser necessariamente gente que come tudo o que vem ao prato. Podem ter um conjunto de valores pelos quais se orientem. Já estivemos aí: pudemos escolher livremente se víamos as fotografias do Tomás Taveira naquela revisteca (lembram-se?) ou se nos queríamos informar sobre os detalhes da relação Clinton/Lewinsky.
Não é por ser possível expor determinados materiais que esta exposição se torna legítima e aceitável, e que os cidadãos se devam sentir convidados a suspender a ética por uns tempos para participar na fuçangada geral. Isto, como no resto, é cada um por si. Cada cidadão decide por si qual é a sua própria responsabilidade.
O que é que você faria se lhe tivessem dado a si o tal CD? Passava-o ao Assange? Passava-o ao embaixador americano mais próximo, avisando que havia fugas gravíssimas ao sistema?
Eu: pedia a um padre, em segredo de confissão, que fosse levá-lo a uma embaixada americana, exigindo uma resposta do Obama a dizer que a carta chegou à Garcia. Porquê um padre? Porque - espero eu, espero eu - ninguém se lembraria de o torturar para o obrigar a violar o segredo de confissão. (O que é que os de Hollywood andam a fazer, que ainda não se lembraram de mim para lhes inventar os filmes?)
***
Um post em que se fala do Roberto
Sem por um segundo duvidar que o amigo do João Pinto e Castro seja um palerma, há um lado não explorado neste post. Um segredo de Estado ou um segredo diplomático que seja do conhecimento do Assange já não é um segredo diplomático ou de Estado. Te-lo-á sido em tempos primevos, idos e belos, mas a partir do momento em que os canais de comunicação institucionais falham ao ponto de permitir que um bardamerdas qualquer exacerbe o seu amor pela transparência fuçando em documentos supostamente classificados significa, principalmente, que as instituições democráticas andam a tratar ineficiente e indignamente informação que supostamente seria mais valiosa para todos se circulasse limitadamente.
Salvo os excêntricos habituais (e que merecem existir, até porque animam isto), ainda não vi praticamente ninguém a defender que os Estados deveriam ser cem por cento transparentes, e que todos merecemos ter acesso indiscriminado a tudo o que ocorre entre governos, diplomatas e demais poderes sob a alçada dos tentáculos democráticos. O que essencialmente se afirma é que não deverá nunca ser da responsabilidade dos cidadãos, muito menos de um jornalista australiano de cor de cabelo indefinida, zelar pelos bocados de informação mais fulcrais ao funcionamento dos orgãos de soberania, mas sim das próprias instituições que os produzem e fazem circular.
Assim, e acima de tudo, o caso Wikileaks é valioso porque demonstra a fragilidade do actual sistema de comunicações confidenciais entre Estados e respectivos apêndices diplomáticos, o que com certeza merecerá a atenção e melhoria adequadas por parte daqueles que têm a responsabilidade de os manter restritos a determinadas áreas de poder. Notem: se o Assange, um personagem mínimo, conseguiu ter acesso a relatórios de diplomatas americanos sobre governos estrangeiros e a informação militar americana secreta, imaginem o que andou por aí a circular nas cúpulas dos interesses económicos, das filiações políticos e dos inimigos bem posicionados dos Estados Unidos? É muito melhor que todos saibamos o mais cedo possivel que o sistema está a precisar de arranjos, que o mesmo continue por aí a pingar sem que ninguém desconfie, ou seja, sem que nos apercebamos que precisamos de nos proteger melhor: dada a habitual e universal inércia dos burocratas quando não estão sob pressão dos média, este caso é uma oportunidade flagrante para emendar o que, com certeza matemática, nos anda a prejudicar há muito.
Outro aspecto da questão é a aparente guerra ao menssageiro que os Estados Unidos e outras democracias ocidentais visadas por esta questiúncula (não passará disso, se seguirem os meus conselhos) estão a montar aos olhos do mundo inteiro: trata-se um erro que me parece estúpido. É impossivel controlar os danos: até o esquerda.net já alojou um dos famosos "mirror" do site, sendo que a informação encontra-se neste momento tão refletida em tudo quando é local que qualquer tentativa de a estancar é o equivalente pedir ao Roberto para nos proteger das gotas da chuva.
Não duvido - estou mais gordo mas não sou ingénuo - da necessidade e utilidade de também punir quem divulga segredos de Estado, mas, neste caso, quando o palco é mundial e a luta ideológica é, tudo bem espremido, o principal que está aqui em jogo (os voos da CIA, por exemplo, de que o Bloco faz bandeira, são evidentes pretextos no ambito mais global da guerra à supremacia dos EUA), parece-me perfeitamente contra-producente insistir no cumprimento de um pormenor judicial que só levará a uma maior corrosão do posicionamento moral dos EUA perante os valores que, efectivamente, defende.
Um pouco de táctica neste momento era não só desejável, como muito desejável: o mais remoto cheiro a sucesso em, simultaneamente, limitar a divulgação de toda a extensão dos documentos e colocar debaixo da justiça o Julian Assange, como que dispersaria pelo muito inteiro uma nuvem radioactiva de documentos e julian assanges fictícios potenciais que, aí sim, transformariam o ambiente informativo numa barafunda estéril e ingovernável, mesmo por uma super-potência.
O "palerma" conhecido do João Pinto e Castro é de facto um palerma se disse que os estados democráticos têm que viver em juramento de fidelidade eterna à extra-mítica "transparência"; mas é provável que o palerma o seja não porque acredite no que disse (não teve tempo para pensar, provavelmente foi isso), mas apenas porque não se soube expressar: o que praticamente toda a gente que eu conheço defende é que fazer uma cruzada contra as fugas de informação confidencial postas em evidência pela Wikileaks é um triplo erro: não impede a presente, transforma em boato as futuras, e criminaliza de forma meramente teatral um acto cuja performance em impunidade é a base da democracia ocidental (ainda mais que as própria eleições).
Salvo os excêntricos habituais (e que merecem existir, até porque animam isto), ainda não vi praticamente ninguém a defender que os Estados deveriam ser cem por cento transparentes, e que todos merecemos ter acesso indiscriminado a tudo o que ocorre entre governos, diplomatas e demais poderes sob a alçada dos tentáculos democráticos. O que essencialmente se afirma é que não deverá nunca ser da responsabilidade dos cidadãos, muito menos de um jornalista australiano de cor de cabelo indefinida, zelar pelos bocados de informação mais fulcrais ao funcionamento dos orgãos de soberania, mas sim das próprias instituições que os produzem e fazem circular.
Assim, e acima de tudo, o caso Wikileaks é valioso porque demonstra a fragilidade do actual sistema de comunicações confidenciais entre Estados e respectivos apêndices diplomáticos, o que com certeza merecerá a atenção e melhoria adequadas por parte daqueles que têm a responsabilidade de os manter restritos a determinadas áreas de poder. Notem: se o Assange, um personagem mínimo, conseguiu ter acesso a relatórios de diplomatas americanos sobre governos estrangeiros e a informação militar americana secreta, imaginem o que andou por aí a circular nas cúpulas dos interesses económicos, das filiações políticos e dos inimigos bem posicionados dos Estados Unidos? É muito melhor que todos saibamos o mais cedo possivel que o sistema está a precisar de arranjos, que o mesmo continue por aí a pingar sem que ninguém desconfie, ou seja, sem que nos apercebamos que precisamos de nos proteger melhor: dada a habitual e universal inércia dos burocratas quando não estão sob pressão dos média, este caso é uma oportunidade flagrante para emendar o que, com certeza matemática, nos anda a prejudicar há muito.
Outro aspecto da questão é a aparente guerra ao menssageiro que os Estados Unidos e outras democracias ocidentais visadas por esta questiúncula (não passará disso, se seguirem os meus conselhos) estão a montar aos olhos do mundo inteiro: trata-se um erro que me parece estúpido. É impossivel controlar os danos: até o esquerda.net já alojou um dos famosos "mirror" do site, sendo que a informação encontra-se neste momento tão refletida em tudo quando é local que qualquer tentativa de a estancar é o equivalente pedir ao Roberto para nos proteger das gotas da chuva.
Não duvido - estou mais gordo mas não sou ingénuo - da necessidade e utilidade de também punir quem divulga segredos de Estado, mas, neste caso, quando o palco é mundial e a luta ideológica é, tudo bem espremido, o principal que está aqui em jogo (os voos da CIA, por exemplo, de que o Bloco faz bandeira, são evidentes pretextos no ambito mais global da guerra à supremacia dos EUA), parece-me perfeitamente contra-producente insistir no cumprimento de um pormenor judicial que só levará a uma maior corrosão do posicionamento moral dos EUA perante os valores que, efectivamente, defende.
Um pouco de táctica neste momento era não só desejável, como muito desejável: o mais remoto cheiro a sucesso em, simultaneamente, limitar a divulgação de toda a extensão dos documentos e colocar debaixo da justiça o Julian Assange, como que dispersaria pelo muito inteiro uma nuvem radioactiva de documentos e julian assanges fictícios potenciais que, aí sim, transformariam o ambiente informativo numa barafunda estéril e ingovernável, mesmo por uma super-potência.
O "palerma" conhecido do João Pinto e Castro é de facto um palerma se disse que os estados democráticos têm que viver em juramento de fidelidade eterna à extra-mítica "transparência"; mas é provável que o palerma o seja não porque acredite no que disse (não teve tempo para pensar, provavelmente foi isso), mas apenas porque não se soube expressar: o que praticamente toda a gente que eu conheço defende é que fazer uma cruzada contra as fugas de informação confidencial postas em evidência pela Wikileaks é um triplo erro: não impede a presente, transforma em boato as futuras, e criminaliza de forma meramente teatral um acto cuja performance em impunidade é a base da democracia ocidental (ainda mais que as própria eleições).
17 comentários:
Helena,
"pudemos escolher livremente se víamos as fotografias do Tomás Taveira naquela revisteca (lembram-se?) ou se nos queríamos informar sobre os detalhes da relação Clinton/Lewinsky."
Na questão do Wikileaks, há muito que se passou da fase do botox. De qualquer forma convém lembrar que chegou ao nosso conhecimento pelos mídia estabelecidos. Sim, eu sei que estava no site do Wikileaks, mas quase ninguém teria reparado se esses mídia não o publicassem.
Portanto, o que tu estás a dizer é que não devemos ler jornais.
É isso mesmo.
Também não li jornais na altura em que publicavam detalhes sobre a vida sexual do Clinton.
E não estou a ler quase nada das "notícias" sobre o que vem no wikileaks. De cada vez que leio, irrito-me: fazem notícia do diz que disse e tentam passar isso por informação.
Também as fugas ao segredo de justiça acabam nos jornais. E qual é o resultado? O mob rejubila, porque pode fazer justiça pelas suas próprias mãos.
Já disse isto antes: em vez de mais e melhor Estado de Direito, estamos a descarrilar para o sistema de franco atiradores. É óbvio que não vou poder alterar este curso dos acontecimentos, mas pelo menos não se diga que estive entre os que o aplaudiram desde o início.
E depois, se se considera tudo isto legítimo e aceitável, porque é que o Estado é obrigado a respeitar certas regras? Os cidadãos podem espiar o Estado, mas o Estado não pode espiar os cidadãos? Em nome da transparência (e quem não tem pesos na consciência não precisa de ter medo...) aceite-se que a polícia entre nos computadores de qualquer cidadão para melhor proteger a sociedade. Aceite-se que faça escutas a todos, e estas sejam publicadas. Aceite-se tudo, então.
Ah, ia-me esquecendo: desta vez, o wikileaks trabalhou ao contrário. Deixou os jornais fazer o trabalho de investigação (se as fontes são fiáveis, e essas coisas de jornalista) e só publica no site os documentos já referidos pelos jornais. Tem pelo menos a vantagem de haver mais gente a controlar se não sai nenhum nome (de informador, por exemplo) que não devia sair. E tem a mesma desvantagem que o sistema americano, de pôr informação confidencial acessível a demasiada gente: só no Spiegel trabalham 50 jornalistas neste caso - quanto tempo é que os segredos se podem manter?
(falo de segredos vitais: nomes de pessoas que podem ser mortas se se souber que contactaram com os americanos)
Se isto não fosse tão trágico, dava uma óptima série de humor político.
Helena,
Se as pessoas puderem googlar sobre o que o governo anda a fazer e a decidir em nome do povo sem dar conhecimento ao povo, fá-lo-á. Isso não é irresponsabilidade, antes pelo contrário. Um cidadão responsável valoriza a informação sobre o que directa ou indirectamente afecta a sua vida e a dos seus concidadãos. A informação muda a percepção das pessoas sobre aqueles a quem paga para fazer um trabalho decente. É isso que muitos governos temem.
Não digo que a Wikileaks não tenha cometido erros graves, mas reduzi-la, como fazes, a franco atiradores e as consequências dos seus actos a uma mob furiosa pronta a guilhotinar o rei é short-sighted.
A única mob que anda a tentar fazer justiça pelas suas próprias mãos, à margem da lei, está entre os que querem mais opacidade e não entre os que querem mais transparência (O Maradona já disse, e bem, que ninguém anda a pedir transparência absoluta).
"Porque é que o Estado é obrigado a respeitar certas regras?"
A questão é precisamente a de o Estado não as respeitar e não estou a falar de sexo na Casa Branca. Há coisas que devem ser mantidas em segredo, no entanto o segredo é uma concessão do povo a quem o governa com o entendimento de que é usado de forma justificada - será usado a favor do povo e da democracia e não contra ela. Infelizmente o que tem acontecido é o segredo ser usado para proteger os governos do escrutínio democrático e a favor de interesses obscuros, que não são os nossos e que, em alguns casos, vão contra os nossos e até contra a nossa segurança, para não falar dos abusos cometidos, ou prestes a serem cometidos, em nosso nome.
Não, Helena, isto não é mera bufaria. Vai muito, mas muito mais além disso.
Maria,
Parece-me que a diferença entre as nossas posições advém do nível de confiança no sistema.
Subjacente à tua argumentação está uma concepção do político como corrupto e incompetente, a fazer negociatas nas costas do povo. Sendo assim, todos os meios são legítimos para controlar esses governantes.
Onde vão estabelecer a fronteira do controle? Pode pensar-se em instalar um chip subcutâneo nos políticos, e uma pequena câmara de filmar entre os olhos?
O que me incomoda no aplauso à wikileaks é a confirmação de que as pessoas não acreditam nem nos políticos, nem no poder do jornalismo, nem no poder da justiça. Reforçar e melhorar a Democracia passa por reforçar e melhorar esses esteios, e não por uma vaga de transparência cuja maior consequência é escandalizar as pessoas durante uns dias.
E nem estou a falar desta palermice dos telegramas diplomáticos. Estou a falar das revelações realmente graves sobre as guerras e a tortura. A wikileaks revelou o que já todos sabíamos. Muito antes da wikileaks, já a Ana Gomes se desunhava toda a falar dos voos da CIA, por exemplo, ou o Spiegel tinha falado de prisioneiros que os americanos enviavam para "serem interrogados" em certos países.
Precisamos realmente de processos tipo wikileaks para saber mais? Achamos bem que que o controle do funcionamento do aparelho estatal seja agora feito por idealistas com bons conhecimentos informáticos?
Finalmente, há a questão do "eles" e "nós". Começo a desconfiar que cada povo tem nos seus políticos um espelho.
Não confio no sistema nem acho que tenhamos algum motivo para confiar nele. Confio na democracia e não acho nada que o sistema seja tão democrático como parece ser.
Chipar políticos é paranóia. Quem tem de fazer esse controlo é o jornalismo. O jornalismo costumava fazê-lo. Ia atrás das histórias, virava tudo do avesso, resistia às pressões e informava-nos. Há muito que o jornalismo deixou de ser assim. Sucumbiu às pressões económicas e políticas e passou a servir-nos soft news, opinião (e alguma desta de bradar aos céus) e copy/paste. Há excepções, poucas.
A Wikileaks tem levado a reflexões em várias vertentes, uma delas o jornalismo. Há hoje muito debate e muita auto-análise. Acho isso óptimo se daí sair um jornalismo diferente e melhor. Veremos.
(reparei agora que este comentário não foi enviado depois de ter clicado no botão, por isso, vai agora se as letras deixarem)
Maria,
só hoje arranjei tempo para responder.
De que sistema estás a falar? O português? O americano? O alemão?
Concordo inteiramente contigo numa coisa: é preciso dar uma volta ao jornalismo.
Mas também é preciso dar uma volta à nossa maneira de estar presentes na sociedade. Não é informação e transparência o que nos falta. É uma exigência democrática que comece no nosso próprio exemplo (não cometer pequenas corrupções, não pactuar com corrupções) e sirva de exemplo para outros.
Mas corremos o risco de nos tornar pessoas odiosas, denunciando o vizinho que não paga segurança social à empregada de limpeza, e por aí fora.
Sinceramente: não sei como resolver o problema da falta de confiança no sistema (português). Duvido que coisas como o wikileaks melhorem a Democracia. Parece-me que só contribuem para aumentar ainda mais a sensação de pântano e areias movediças.
Helena,
Deduzi que falavas do sistema em geral, não do sistema específico de um país. A Wikileaks é sobre o mundo, ou uma parte dele.
Sobre a nossa forma de estar em sociedade, não discordando do que dizes sobre a exigência democrática começar por nós, não devemos confundir a defesa da privacidade do cidadão com a do estado e a responsabilidade do cidadão com a responsabilidade do Estado. O estado não é um cidadão. Não quero com isto dizer que temos o dever de ler o que é exposto, mas não culpo ninguém por fazê-lo. Acho até bem compreensível que o façam uma vez que querer saber o que o governo faz não é um acto moralmente condenável. É uma coisa que fica na consciência de cada um.
Por outro lado, acho perigoso ligar a publicação/leitura de segredos de Estado à má cidadania. Foi o que fez Joe Lieberman, o senador que pressionou a Amazon no sentido de correr com a Wikileaks e que pediu uma investigação ao N.Y.Times ao abrigo do Espionage Act de 1917 que serviu, entre outras coisas, para tentar impedir todo o criticismo ao governo. Interessante como da má cidadania se salta logo para a tentativa de limitar a liberdade de expressão.
Sobre a transparência: Obama iniciou o seu mandato a falar dela. Ele defendia mais transparência e até foi à China dar lições na matéria. Em Janeiro deste ano, Hillary Clinton defendeu que as novas tecnologias são essenciais para promover mais acesso ao governo e mais transparência. Como vês, o Assange não inventou a transparência, aliás, segundo o próprio, o objectivo da Wikileaks é a justiça e não a transparência.
Também não sei se o jornalismo científico de Assange em que lemos a notícia e podemos aceder também à fonte, é bom para a democracia. Há tantas questões. É um assunto complexo, que nos causa sentimentos mistos e que, receio, não tem uma resposta fácil do tipo sim ou não.
(apareceu-me aqui um erro ao enviar, se for repetido elimina este p.f.)
Helena,
Deduzi que falavas do sistema em geral, não do sistema específico de um país. A Wikileaks é sobre o mundo, ou uma parte dele.
Sobre a nossa forma de estar em sociedade, não discordando do que dizes sobre a exigência democrática começar por nós, não devemos confundir a defesa da privacidade do cidadão com a do estado e a responsabilidade do cidadão com a responsabilidade do Estado. O estado não é um cidadão. Não quero com isto dizer que temos o dever de ler o que é exposto, mas não culpo ninguém por fazê-lo. Acho até bem compreensível que o façam uma vez que querer saber o que o governo faz não é um acto moralmente condenável. É uma coisa que fica na consciência de cada um.
Por outro lado, acho perigoso ligar a publicação/leitura de segredos de Estado à má cidadania. Foi o que fez Joe Lieberman, o senador que pressionou a Amazon no sentido de correr com a Wikileaks e que pediu uma investigação ao N.Y.Times ao abrigo do Espionage Act de 1917 que serviu, entre outras coisas, para tentar impedir todo o criticismo ao governo. Interessante como da má cidadania se salta logo para a tentativa de limitar a liberdade de expressão.
Sobre a transparência: Obama iniciou o seu mandato a falar dela. Ele defendia mais transparência e até foi à China dar lições na matéria. Em Janeiro deste ano, Hillary Clinton defendeu que as novas tecnologias são essenciais para promover mais acesso ao governo e mais transparência. Como vês, o Assange não inventou a transparência, aliás, segundo o próprio, o objectivo da Wikileaks é a justiça e não a transparência.
Também não sei se o jornalismo científico de Assange em que lemos a notícia e podemos aceder também à fonte, é bom para a democracia. Há tantas questões. É um assunto complexo, que nos causa sentimentos mistos e que, receio, não tem uma resposta fácil do tipo sim ou não.
Maria,
se falas sobre o sistema em geral, não vou poder concordar contigo (o que não tem qualquer importância).
Não direi que o sistema é perfeito. De modo algum. Mas vejo países onde funciona melhor que noutros. E não lhe conheço uma alternativa melhor.
Talvez eu não tenha sido clara: o meu problema não é o wikileaks em si, mas este material agora divulgado. Repugna-me a quebra do sigilo desses telegramas por motivos que me parecem fúteis.
(Agora vais dizer que revelam coisas importantes sobre Portugal, e eu vou ter de passar, porque não sei o que revelam. E, a crer no que dizia o "duas ou três coisas" sobre os voos de/para Guantanamo, parece que está a haver má fé no tratamento público dessas informações)
Quanto à confusão entre cidadão e Estado: em nome de quê pretendemos proteger os cidadãos que não pagam impostos? Esse é um incumprimento grave contra o princípio da solidariedade. Porque é que a sociedade só se quer proteger dos políticos, e não dos cidadãos que vivem melhor à custa dos outros?
Mas o que me incomoda é a questão do princípio: achamos bem que qualquer pessoa que tenha acesso a documentos os publique na internet?
A wikileaks (e se não fosse a wikileaks, era a mesma coisa com outro nome) abriu uma caixa de Pandora que me assusta. Mas já está aberta, já não há como fechar.
Eu acho tão perigoso ligar a publicação de segredos de Estado à má cidadania como partir do princípio que é preciso e legítimo controlar o Estado sempre em cima do acontecimento e por todos os meios. Estamos a destruir o que temos sem saber o que construir sobre os escombros.
Há muitas questões, é certo.
E eu não estou a conseguir abordá-las da melhor maneira, porque ainda sinto uma enorme repugnância pelo que o wikileaks fez. Ora, essa já não é a questão. A questão é como vamos saber viver num mundo onde toda a gente, em nome da liberdade de expressão, se sente autorizada a publicar na internet tudo sobre toda a gente.
Parece-me que não é nada disso que se trata. Os documentos publicados não são do domínio privado, são oficiais, são feitos em nosso nome e com os nossos recursos. O que foi publicado não foram segredos importantes, foram "segredos" chocantes. Eu não acho que todos os despachos dos dirigentes da Câmara onde trabalho devam ser do conhecimento público, mas acho que se um perito informático descobrisse despachos menos legítimos e não tivesse estofo para os denunciar às autoridades (ou não confiasse nelas, o que é mais grave...), deveria fazê-las chegar ao público de uma forma fiel e fidedigna. Ou seja, através de um jornalismo de investigação sério e competente. Se um Presidente de Câmara português, ou o comandante supremo das Forças Armadas norte-americanas, toma uma decisão oficial que seja flagrantemente violadora de alguma norma legal, pois o público tem o direito a sabê-lo, da forma e nas circunstâncias mais próprias atendendo às prováveis consequências da revelação. Para isso é que foi "inventado" o Jornalismo como quarto poder. Responsável, como é evidente. Watergate é o seu melhor paradigma ainda hoje, mas há mais exemplos. E nenhuma Democracia, por mais aperfeiçoada que pareça hoje, resiste eternamente sem o escrutínio moral do público. Que claramente não se pode limitar ao escrutínio político das urnas.
Mas aqui ninguém tomou decisões. Não é um Presidente da Câmara a decidir, nem um general a comandar. São conversas. Relatos de conversas, análises subjectivas sobre agentes políticos e factos da actualidade, relatórios sobre encontros efectuados entre diplomatas.
Uma coisa são relatórios de conversas e contactos, outra coisa é o Watergate.
Isto não é material para ser publicado:
- primeiro, porque uma coisa é o que se diz quando uma pessoa sente que não há "escutas", e outra coisa é o que se faz - isso sim, relevante. Transparência, sim, mas sobre os actos e as intenções, não sobre as "manobras preliminares para sondar terreno".
- Segundo, a própria natureza do material: se achamos bem que agora se publiquem documentos diplomáticos em tempo real, e que a triagem desses documentos seja feita perfeitamente ao acaso (segundo o critério "tudo o que vem à rede é peixe"), que espécie de diplomacia queremos ter? A "transparência" que se ganhou, e mantenho as aspas, porque isto não é transparência, é um ruído impossível de dissecar, compensa realmente o que se perde com este abalo na confiança da diplomacia americana?
Claro que eles é que tinham de cuidar melhor do seu material secreto. Mas, após a fuga dos dados, não serei eu quem aplaude a sua publicação.
Atenção: estou a falar do cablegate. Outra coisa são documentos que expõem crimes ou decisões fundadas em corrupção e lesivas para a sociedade.
Mas foram publicadas conversas, ou documentos oficiais? E se foram conversas normais em Diplomacia, por que razão seria abalada a confiança na Diplomacia americana? Não detectas uma incongruência fatal neste raciocínio?
Imagina que, por erro teu, o que conversas com a tua mulher entre quatro paredes aparecia publicado nos jornais. Apesar de as vossas conversas serem legítimas e normais, ela perdia a confiança em ti. Ou não?
Ou imagina um treinador a falar com o presidente do clube, e a dizer que mais valia vender o Cristiano Ronaldo, porque é caro demais para os golos que faz, e o presidente a dizer que o prestígio também se paga. Em si a conversa não tem mal nenhum, acho eu. Mas se, por culpa do presidente, isto fosse publicado nos jornais? O treinador continuava a conversar com ele na maior?
Voltando à vaca fria: a confiança na Diplomacia americana ficava abalada porque a condição sine qua non das conversas normais em Diplomacia é que essas conversas não passem para o domínio público.
Eu não consigo dar esse salto da privacidade e intimidade das pessoas para a "privacidade" e "intimidade" dos Diplomatas profissionais em serviço. Claro que a Diplomacia exige secretismo, como as conversas de um Conselho de Administtração de qualquer Empresa. Eu não estou a pugnar por "transparência" e "controle democrático em tempo real" das Diplomacias. Estou apenas a defender que quem deve defender esse secretismo necessário são as Administrações, não os Jornalistas, nem os Cidadãos em geral!
Se a Diplomacia americana fica afectada com isto, isso não me afecta a mim em nada, porque as consequências só poderão ser positivas: 1ª) a Administração americana tem se saber proteger-se melhor e, muitíssimo mais importante, 2ª) o Mundo fica a conhecer melhor os podres dos Estados poderosos e poderá assim exigir-lhes regeneração!
Nunca poderia lamentar que uma coisa negativa fosse "posta em causa", antes pelo contrário. Porque se não houvesse nada de criticável no que foi publicado, teria sido um acto de sabotagem gratuito e, então, a Diplomacia americana não seria posta em causa (apenas criticável pela sua incompetência em manter os seus segredos), mas sim elogiada, por ser mais limpa do que se poderia supor!
Agora dou-te eu um exemplo corriqueiro e proponho-te uma questão concreta: se a empregada da limpeza de uma Escola encontrar, aberto no chão, um documento onde sejam feitas avaliações aos Alunos, por um qualquer Professor ou Conselho de Turma, em termos falaciosos, injustos, ou moralmente condenáveis (racistas, classistas, xenófobos, com preconceitos machistas, homofóbicos, anti-religiosos, ou quaisquer outros), que deverá fazer? Fechar o livro e fingir que não viu nada (mas a verdade é que já não mais haverá segredo e, por outro lado, nenhum responsável irá saber que existe desleixo no tratamento dos documentos da Escola!)? Deverá apresentar ela, formalmente, uma queixa às autoridades pedagógicas competentes (tendo porém de admitir que elas são de confiança e, por outro lado, que cometeu no mínimo uma "indelicadeza" de ler o que encontrou aberto...)? Ou antes deverá fotocopiar tudo e enviar sigilosamente para o Ministério Público, ou deixar primeiro um Jornal sério e responsável decidir o que fazer, para melhor resolver a situação?
Não estás a pugnar por "transparência" nem "controle democrático em tempo real", mas já vais em praí 10 comentários a dizer que o cablegate está muito bem e que os políticos são todos uns podres e que é preciso controlá-los muito bem controladinhos, clap clap clap para a wikileaks...
O teu exemplo é óptimo. Com uma pequena ressalva: entre as avaliações enviadas pelos diplomatas não havia nada escrito "em termos falaciosos, injustos, ou moralmente condenáveis (racistas, classistas, xenófobos, com preconceitos machistas, homofóbicos, anti-religiosos, ou quaisquer outros)". Havia avaliações sobre políticos de outros países. Mas o exemplo pode perfeitamente servir para o que está em causa: a empregada de limpeza de uma escola encontrou o portátil do Conselho Directivo, onde há avaliações dos alunos (inclusivamente um desabafo do professor x a dizer que mais valia expulsar o aluno y, ou actas das reuniões de notas onde se decide se se deve passar ou chumbar os alunos z1, z2 e z3), onde há notas de conversas confidenciais como a que eu tive uma vez com uma professora, porque suspeitava que uma criança estivesse a ser vítima de abuso sexual (claro que os nomes constavam do texto), mais um e-mail confidencial de um professor de outra escola que alertava para suspeitas (sem provas) de pedofilia de um professor que fora transferido para aquela, mais a lista dos alunos pobres que estão isentos de pagar as viagens escolares, juntamente com o comentário de um director de turma que acha esquisito um desses alunos da lista dos pobres andar sempre com roupa de marca.
E então a empregada de limpeza passa este material ao wikileaks, e o wikileaks publica, e tu achas que está muito bem, porque de qualquer modo as escolas estão aí para nos servir com dignidade e transparência, e são pagas com os nossos impostos e os conselhos directivos assim como assim estão todos infiltrados por incompetentes e oportunistas?
Mas não foi bem assim. A empregada da limpeza contou tudo lá no cafézito do seu subúrbio (onde ninguém fez caso de nada) e deu fotocópias ao jornal da Paróquia (o mais respeitado na terra), que publicou tudo mas só depois de ter préviamente conversado com o Director da Escola e terem limpado o material publicado de todas as referências menos éticas. No final, só sobraram umas frases, do tipo "estes brasileiros são todos uns burros" e "vê-se logo que a Mãe é indiana", que constavam por escrito das avaliações oficiais. E cada um tirou as suas conclusões, mas não aconteceu nada aos Professores, nem sequer ao jornal da Paróquia. Só a empregada da limpeza é que, entretanto, ficou sem o Visto de Trabalho e teve de regressar ao Senegal, porque alguém no S. E. F. conseguiu provar que ela um dia não tinha lavado os dentes de manhã. A história foi bem mais assim (e este é o meu último comentário sobre este assunto)...
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