12 dezembro 2010

que fazer com tanta transparência?

No período que precedeu o início da guerra do Iraque, eu lia um site chamado informationclearinghouse.info que recolhia, um pouco por todo o mundo, notícias publicadas sobre as actividades da "máquina americana". O Plamegate, que agora anda por aí em filme, foi publicado em tempo real nesse site: as revelações dos detalhes sobre o caso eram feitas ao ritmo de várias dezenas por dia. 
A internet estava cheia de informações sobre a farsa da guerra, criticava a pressão que o governo estava a exercer sobre a CIA para apresentar os "factos" que ele queria receber (esta até veio na TV alemã). Ainda antes de Colin Powel ir à ONU já havia na internet factos para rebater as afirmações que ele lá faria.
De que serviu tanta transparência? A guerra foi iniciada e, apesar de todos os escândalos, Bush foi reeleito.

Será a transparência um fim absoluto, que justifica todos os meios? Porquê? Para quê?
E o que é isso, "transparência"? Inclui o direito de espiar conversas confidenciais e as tornar públicas, servindo-as como notícias?
Lembro-me de um episódio vergonhoso que ocorreu há anos, em Portugal, quando um jornal publicou uma conversa telefónica entre dois políticos. Com frases de alto teor informativo e explosivo como "agora vou para casa tomar um banho". Tudo em nome de mais Democracia?

Dois apontamentos à margem deste debate:

Continuo sem entender porque é que os jornais portugueses ignoraram tanta informação fundamental sobre as contradições da febre belicista do governo Bush. Em pleno Plamegate, nos jornais portugueses continuava a defender-se que sim senhor, que o urânio da África, e as armas do Saddam, e que custa muito mas o que tem de ser tem muita força.

Mas a internet não era muito mais isenta que os jornais portugueses: o próprio informationclearinghouse.info sujeitava a transparência a critérios ideológicos, de que me dei conta quando lhe enviei dois links com notícias sobre o Iraque. O primeiro era um relato, publicado como opinião num jornal alemão, onde se dizia que foram os próprios soldados americanos que convidaram os transeuntes a saquear o museu de Bagdad. Esse texto foi imediatamente traduzido e publicado como notícia da Süddeutsche Zeitung. O segundo link era de um jornal americano de referência, onde se mostrava que a economia iraquiana estava a ser saqueada por empresas americanas. Esse artigo nunca foi publicado.

11 comentários:

António P. disse...

Nem os santos são transparentes.
Talvez os querubins.
Com tanta transparência arriscamo-nos a que o sol nos encadeie e fiquemos cegos.
Bom domingo aí por Berlim, Helena...com sol ou sem sol

Helena Araújo disse...

E a Nossa Senhora, António.
Diz o cântico que
"Jesus entrou e saiu por ela
como o sol pela vidraça"

(um parto assim é que me dava jeito)

É isso mesmo: ainda corremos o risco de cegar de vez.

Ant.º das Neves Castanho disse...

A transparência é como as pistolas da Polícia: não sendo um "fim em si", são contudo uma arma que, se necessário, pode e deve ser utilizada, como último recurso, em defesa do Bem. Parece-me claro e transparente como água pura... Choca-me muito mais um Polícia desarmado frente a um bando de assassinos, do que um bom e consciencioso Polícia armado com uma metralhadora num local aparentemente pacífico.

Helena Araújo disse...

Ora agora é que deste um bom exemplo: o que estamos a ver agora é um gajo com uma metralhadora (a transparência) a disparar cegamente para todos os lados.
O que há de Bem na publicação de observações subjectivas sobre o feitio de alguns políticos? O que há de Bem na publicação de conversas que só foram suficientemente abertas porque se partia do princípio que permanecia em segredo?
Comparar isto com o Watergate é ridículo.
Pior ainda: isto é só ruído, e cada vez mais. Publicam o que um diplomata comentou sobre alguma coisa. As pessoas lêem como se fosse "a verdade", e desatam a discutir, muito escandalizadas.
No fim, ninguém se entende.
Se a Democracia passa por aqui...

É como diz o António P.: com tanta luz, estamos a ficar cegos.

Ant.º das Neves Castanho disse...

Não vejo as coisas assim. Repara que não foram publicadas conversas, mas documentos oficiais. Repara que se não fosse publicado nada de relevante, nem sequer aqui estaríamos a dialogar. Repara que se não fosse comparável (formalmente apenas) com o caso "Watergate", não teria interessado ao "Der Spiegel", mas ao nosso "Correio da Manhã". Tantas incoerências para barafustar contra um suposto "excesso de transparência" traz água no bico. Não acredito na inocência dos argumentos anti-Assange, porque não aconteceu nada aos grandes Jornais que acenderam a "luz" que supostamente nos "encandeou". Não acredito nos defensores da Democracia que se preocupam mais com os Governos, do que com os Povos. Não partilho das preocupações dos que temem o fim do Mundo, tal como o conhecemos, porque eu simplesmente não o quero para o meus Filhos. Estamos rodeados de hipocrisia, de ganância, de auto-convencimento e de soberba estéril. Se não se consegue escrever direito por linhas direitas, corremos o risco de ter de se o fazer por linhas tortas. Já aconteceu muitas vezes. Cometem-se muitos erros, de início, mas o Mundo fica sempre um pouco melhor. E os Velhos do Restelo, embora tenham pontualmente razão, nunca têm aquilo a que se costuma chamar a razão histórica. O nosso Mundo está podre. Salve-se o bé-bé, claro, mas higienize-se e urgentemente a banheira...

Ant.º das Neves Castanho disse...

"Ridículo" porquê? Se as escutas do Nixon também só foram feitas porque ele partiu do pressuposto de que permaneceriam em segredo?

Helena Araújo disse...

Os documentos oficiais são sínteses de conversas.
Já falei do que fez o Spiegel: teve cinquenta pessoas a trabalhar nisso durante meses, e no fim publicou uma porcaria de um artigo a contar "como é que a América vê o mundo". Aquelas coscuvilhices do que o embaixador americano disse sobre a Merkel e o Westerwelle. Se tivessem coisas realmente importantes para contar, não faziam esta porcaria de artigo, que foi muito criticado por todos. Aqui não houve luz nenhuma. Houve, pelo contrário, até políticos da oposição a dizer que, embora não gostem nada do Westerwelle, há coisas que não se publicam.
O que a wikileaks tinha a revelar sobre a Alemanha era pouco mais que nada, e nem chegou para meia semana de notícias.

E tenho sérias dúvidas que episódios como este tornem o nosso mundo melhor. Como disse: não é por aí.
Mas é impossível de mudar. Os nossos filhos vão viver num mundo onde tudo é publicado. Onde aquilo que disseram ou fizeram 30 anos atrás ainda conta, se alguém resolver pegar com eles. Visto por esse prisma, a internet é um sítio diabólico.

Ant.º das Neves Castanho disse...

A "internet" não é um sítio diabólico, é apenas um sítio e, como tal, pode tornar-se diabólico, como todos os sítios. Deve é ensinar-se às crianças que na "internet", que é uma criação humana, pode acontecer tudo o que acontece nas outras criações humanas, ou seja, até um "simples diário", mesmo com cadeado e chave, pode ser violado e lido por alguém que não o seu autor. É um "clichet" da literatura policial (mas também da realidade judicial, veja-se o caso do diário da Mãe McCann...).

Ant.º das Neves Castanho disse...

E dizer que a "WikiLeaks" não torna o nosso mundo melhor é tão significativo como dizer que a existência de Prisões e de encarcerados não torna o nosso mundo melhor...

Helena Araújo disse...

Ora aí está outro bom exemplo: uma coisa é um diário ser lido pela Polícia que está a investigar um caso, outra coisa é o seu conteúdo aparecer publicado nos jornais.
- Asqueroso!
E este tipo de situação torna o nosso mundo um lugar irrespirável. Já nem te atreves a escrever um diário ou a fazer confidências a um amigo, porque tudo isso pode aparecer publicado.

Aliás: como seria se de repente fosse publicado na internet o nome verdadeiro de todos os nicks e anónimos? Se a gente soubesse quem são, o que fazem, onde trabalham? É contra este desenvolvimento que protesto. Embora saiba que não tem hipótese - tudo aquilo que nos parece hoje seguro e confidencial vai acabar por ser publicado um dia destes, como o cablegate acabou de provar.
Para nos precavermos, vamos ter de nos auto-censurar muito mais, e em contextos onde até agora não parecia necessário. Em compensação com o que pode acontecer na internet, a Stasi era uma brincadeira de crianças.

Ant.º das Neves Castanho disse...

Hum, tenho as minhas dúvidas, só pelo pouco que sei da PIDE...