08 novembro 2010

brandos costumes

A minha filha, que anda no 11ºano, está hoje a fazer um teste sobre "Terror e Miséria do Terceiro Reich", de Bertolt Brecht. Ontem contou-me que Brecht fugiu da Alemanha no dia seguinte ao incêndio do Reichstag (dois meses antes de ver os seus livros queimados, embora já fosse "famoso" desde 1923: ocupava o quinto lugar na lista negra dos nazis) e que, em Paris, foi recolhendo material para escrever um conjunto de cenas sobre o quotidiano na Alemanha de Hitler, tentando equacionar tanto a perspectiva dos encurralados como a dos agentes do sistema.
No 10º ano estudou "A Visita da Velha Senhora", de Dürrenmatt, e no 9º "Nathan, o sábio".
No primeiro ano do secundário já tinha lido "Quando Hitler Roubou o Coelhinho Cor-de-rosa".

E eu, com a idade dela? Viagens na Minha Terra, Os Lusíadas, um Auto de Gil Vicente, Os Maias. Excelentes peças de Literatura, sem dúvida. Mas muito longe deste confronto com as questões mais existenciais da História de um povo.

(Sim, Os Lusíadas, eu sei. Pena que a minha professora não soubesse. Sim, é possível despir os Lusíadas até só lhes restar a regularidade métrica e a rima. Idem para a peça de Gil Vicente, de que só recordo algumas personagens divertidas falando um português difícil de entender, sem qualquer ponte para a minha realidade.)

17 comentários:

Rita Maria disse...

Desta vez acho mesmo que estás enganada. Entre Gil Vicente e Eça de Queirós disse-se tudo sobre a política portuguesa, com a vantagem de serem ambos muito mais actuais do que a Alemanha sob Hitler (nao leste a lei de Rita sobre a política portuguesa?).

O que é preciso é professores que procurem pontes e programas que peçam aos alunos que usem a cabeça.

Blondewithaphd disse...

Fogo!!! Eu só li o "Nathan, der Weise" na faculdade!!!! Não sei, mas parece-me que o programa está muito para o germânico, não?

Helena Araújo disse...

Rita,
se calhar estava a falar apenas das aulas de português que tive. Ou do que delas retirei...
Mas confesso-te que só me lembro de ritmos e rimas, figuras de estilo e uma ligeira troça sobre a burguesia.

blondewithaphd,
(isso sim, é um nome!)
os meus filhos são alemães...
O que seria estranho era aprenderem Eça num liceu de Berlim.

Helena Araújo disse...

Nota pessoal: Emília, estás aí?
Andámos nas mesmas aulas de português - ajudas a minha memória?

Rita Maria disse...

Sim Helena, mas isso sao os professores e o programa, nao a literatura. O que sugerias, Alves Redol, Álvaro Cunhal e Manuel Alegre?

Acho que as pontes devem ser procuradas e os alunos estimulados a interpretar obras de Arte na direcçao que escolherem, mas as aulas de Português ou Alemao (isto é, a partir de certa idade, as aulas de Literatura) nao devem ser dedicadas à política ou à cidadania, mas à Arte (e à Arte da Língua neste caso). A arte pela arte, o conhecimento pelo conhecimento, a educaçao pela educaçao.

Estamos sempre a formar cidadaos, mas saber isso nao implica a instrumentalizaçao das disciplinas e o aproveitamento de cada oportunidade para replicar os princípios do Estado que criamos, antes o seu contrário, a nossa crença de que dotar os alunos com diferentes formas de pensar, incluindo a artística, os levará a serem pessoas e cidadaos melhores.

Helena Araújo disse...

Rita,
agora me arrependo de me ter deixado distrair pelo tal "nudista" no dia em que o cardeal de Berlim falava de Religião e Arte...
;-)

Espanta-me observar esta diferença profunda entre o programa tão politizado das aulas de alemão da minha filha, e o meu - tão estético - das aulas de português. A verdade é que eu cheguei ao fim do ensino secundário sem um décimo da consciência política e da capacidade de argumentação que os meus filhos vão ganhando na escola. Ou o meu marido, a seu tempo.

E aqui está um óptimo tema para debate: instrumentalizar o ensino em função dos valores primordiais da sociedade? Integrar as disciplinas, literatura e história, filosofia e literatura? Ou valorizar o estético?

Eu apostava no fifty-fifty.

(Tem graça que ainda há pouco tempo me falavam de uma viragem que está a acontecer no Vaticano: cada vez menos consciência social, cada vez mais estética: "fazei da vossa vida lugares de beleza")

Rita Maria disse...

Queres mesmo que os teus filhos passem a aula de matemática a resolver o problema "três imigrantes integrados a 80% sao confrontados com um sistema de ensino preparado a 67% para a sua chegada. Sendo que a probabilidade de finalizar a escola destes imigrantes é à partida de 30%, deve o Estado agir antes ou depois da escolaridade obrigatória?". Ou que na aula de Desporto discutam se correm hoje pelos pobrezinhos ou pelo cancro? E se isto parece ridículo, porque nao o parece se falamos da língua?

A minha perspectiva é mais 100% - 100%. A Arte pela Arte, o conhecimento pelo conhecimento, o desporto pelo desporto. Nao para que nao sejam políticas ou sociais, tudo é político, mas para que o possam ser no seu pleno potencial - preservar estas formas de ver mundo para que por elas se possa ver o mundo.

A Arte tem um enorme poder político porque é subsersiva, regida por outra lógica que nao a política. A instrumentalizaçao é (quase) a sua morte, como se pode ver na maioria das artes de regime. O mesmo acontece com a ciência ou com a filosofia e é importante que sejam preservadas como formas diferentes de pensar o mundo, que estendem por isso sempre os limites do pensável.

Depois trocamos o passo e misturamos tudo, mas porque temos as bases e o potencial infinito.

PS: O teu Português nao era estético, era académico (no sentido dos pintores de academia). Classificar rimas ainda está muito longe da descoberta da beleza e da possibilidade da subversao.

Helena Araújo disse...

Agarra-me, Rita, que eu estou quase a concordar!
E contudo (eu a agarrar-me como posso ao meu lado da questão):

Acho muito bem que nas aulas de Matemática os meus filhos aprendam a falsa nudez da Estatística a partir de exemplos práticos (dos jornais, hehehe, já estava há muito tempo sem falar dos jornalistas). E que no desporto também se discuta se as notas devem premiar a excelência absoluta (o mais rápido) ou o esforço (o que fez mais progressos no último mês) ou o que é capaz de formar boa equipa com os outros.

Não existe Arte pela Arte e Conhecimento pelo Conhecimento - tudo é condicionado. Ao acto de criação está subjacente uma visão política.
Diria que a Arte é subversiva não porque é regida por outra lógica que não a política, mas uma lógica que escapa à política dominante.
Instrumentalizar a criação artística no momento prévio à sua ocorrência é uma coisa terrível, concordo. Mas qual é o problema de ir buscar às criações existentes chaves para "estender os limites do pensável"?

Tanto mais que as aulas de alemão dos meus filhos não se limitam aos exemplos dos livros que dei. Há também espaço para a beleza, para a gramática, para aprender sobre estilos e géneros literários. Por exemplo: já vi miúdos da Primária a recitar clássicos da literatura alemã como se os tivessem escrito eles próprios.

O que me surpreendeu (acho que me estou a repetir) foi a comparação com a minha experiência do secundário: total ausência de confronto com a crítica política. E depois, como dizes, tive azar com os professores. A Beleza não passou por ali, infelizmente.

Ana Paula disse...

Ora aqui está uma questão muito interessante e muito oportuna! Como lidar com o cânone escolar? Como articular cânone estético/académico e consciência social, cívica? De certeza que não é a utilizar o texto camoniano para ensinar a fazer um requerimento...Mas também não é fazer pensar que a Arte - qualquer que ela seja - foi sempre, ou é sempre, autónoma relativamente aos poderes ou às questões do seu tempo e, em geral, às questões da Humanidade em geral...
Tens razão, Helena, quando colocas o dedo na ferida do modo de ensino da literatura no nosso tempo.Agora, continuma a cometer-se "homicídios" de autores e " crimes" contra as obras e o gosto pela leitura literária. Se há área, onde continua a ser determinante o tipo de professor que se tem, é exactamente na área da língua/literatura. O cânone, por si só, não faz milagres. E concordo contigo, não há como levar os jovens a perceber que sob a égide da Literatura podemos ter muitos tipos de textos e ajudá-los a formar a sua consciência crítica perante a respectiva qualidade estética e/ou ética.

Helena Araújo disse...

Será que podemos arranjar uma solução de consenso?
Sugiro 200% - 100% para a Arte e 100% para os conteúdos políticos e filosóficos.

Caso contrário, a Rita vai-se sair com um daqueles posts dos quais eu não vou conseguir discordar...

;-)

Rita Maria disse...

Nao, nao, eu confesso ter ficado na minha, mas ja desisti :)

No fundo, acho possível que o resultado das nossas abordagens fosse semelhante, a Arte (assumidamente) política também nao pode ser deixada de parte, prestando-se depois per se à interpretaçao política. Quanto à restante, mantenho: ela é subversiva na sua Natureza, se a usarmos para ensinar a justiça, a ética ou a economia e ela estava pensada para mais, ela perde em força, nao ganha. Nao era mais simples definir o canône "interpretaçao livre" e deixá-los ir?

PS: Lembra-me um pouco o artigo da revista do Zeit este fim de semana: os alunos interessam-se muito pelas aulas sobre o período nazi e por pequenos gestos como marchas ou protestos, mas sentem que os professores esperam deles uma Betroffenheit específica e isso desencoraja-os.
PPS: Por outro lado, no que diz respeito à leitura como acto de resistência, inteiramente de acordo. Se nao tivesse lido os Maias já quatro vezes antes de os dar em Português, às tantas tinha acreditado na teoria do profundo significado e do crescendo da cor dos vestidos da Maria Eduarda. Foge Eça, que te fazem Pipoca!

Helena Araújo disse...

Rita,
:-))

Agora fizeste-me lembrar um cartoon que vi, já de não sei quem: um homem deitado no divã de um psiquiatra, este mostra-lhe uma fotografia daquelas de oficina de mecânico e pergunta-lhe "o que lhe ocorre ao ver isto?"
Mas também poderia pensar na mesma cena, com um quadro monocromático: "o que me ocorre ao ver isso?"
E se o quadro for monocromático, vermelho, e o título for "who is afraid of red?"

Hora de ir ler o Eça outra vez, para reparar nos vestidos das moças. Curiosamente, nenhuma professora me falou disso...
(Excepto, claro, de roupões esvoaçantes, e coisas assim)

Interessada disse...

Parece-me que a Rita tem toda a razão e que argumentou bem a sua forma de pensar.
Seria muito recomendável que nos tivessem alargado os horizontes culturais, que muito provavelmente inveja na sua filha. Mas isso será sempre uma necessidade imediata do docente, desde que seja uma pessoa interessada, e que tenha conhecimentos que o permitam.A vida não é uma sucessão de factos relacionados ?
Terão tido os seus professores acesso a esses conhecimentos ? Ou terão tido a liberdade de ensinar a realidade não deformada ?
Pese embora todos estes considerandos, creio que, lamentavelmente, a tendência a nível global, e no presente, é para a fabicação de seres não pensantes.

Helena Araújo disse...

Interessada,
então agora que eu e a Rita conseguimos uma plataforma de entendimento, vem você dar cabo do arranjinho?
;-)

Ora então, voltando ao princípio:
- Tive azar com os meus professores de português, que conseguiram reduzir o Eça às suas figuras de estilo e o Camões às suas rimas.
- Há excelente literatura para todas as orientações políticas e filosóficas. O que me surpreende é esta diferença entre a decisão alemã que dar na escola literatura que confronta um povo com o pior de si próprio, e a decisão portuguesa de passar pelas coisas a rir - quando muito.

Rita,
ontem falei com a Christina sobre isto. Ela fica de bem na nossa plataforma: (1) a Arte tem sempre uma intenção e (2) já está farta de tanto III Reich e Holocausto. Diz que até agora já teve de ler pelo menos uns dez livros sobre esses temas. Além de trabalhos de investigação e apresentação oral, etc.

Rita Maria disse...

Excelente literatura PARA todas as correntes políticas e filosóficas? Bolas, lá se foi o arranjinho!

(Me ♥ Christina)

Helena Araújo disse...

Em todas, era o que eu queria dizer, em todas!
Provenientes de todas.
Ai!
Vou já para debaixo da cama, o dia está-me a começar muito mal.

Ant.º das Neves Castanho disse...

Portugal, a meu ver, tem os "problemas" adicionais de, apesar de tudo, não ter tido problemas tão traumáticos quanto a Alemanha, no Séc. XX, e de, por outro lado, ter passado por uma fase muito especial, ainda que curta, mas em que esse extremismo ideológico intervencionista foi elevado aos píncaros do paroxismo (vidé por exemplo as minhas "aulas" de Filosofia, de Português, ou de Introdução à Política, em pleno "Verão quente" de 75...)!


Descontando tudo isso, penso que o Português, ou melhor, a Literatura de Gil Vicente, de Camões, de António Vieira, de Manuel Bernardes, de Garrett, até do Bocage, podem constituir uma magnífica fonte de compreensão para alguns dos mais fundos problemas sociais da nossa época (ou seja, de todas as épocas!), a par de uma maior proximidade temporal aos aspectos concretos da época actual, presente em Autores política ou ideológicamente mais empenhados, desde Cesário Verde a Saramago, passando por Manuel da Fonseca, ou mesmo José Gomes-Ferreira...