26 agosto 2010

ciganos

Neste momento, em plena onda de protestos contra a França devido ao desmantelamento de acampamentos ilegais e ao repatriamento de ciganos (o que, aliás, não é novo: há alguns meses, fizeram-no com grupos de imigrantes ilegais), recordo alguns episódios soltos ligados a esta difícil coexistência. Porque há que protestar, sem dúvida, mas não se pode escamotear os factos - e estes são muito preocupantes.

1. Há alguns anos já, li uma notícia sobre bandos organizados residentes na Alsácia, que enviavam à Alemanha, para assaltar casas, miúdos com menos de 14 anos. Jogavam pelo seguro a dois níveis: a idade dos miúdos, e a fronteira. Pelas entrelinhas, deduzia-se que seriam ciganos provenientes da Roménia.

2. Em 2005 fez-se na Suíça um referendo sobre a entrada no espaço de Schengen. Apesar de a UE ameaçar que a não entrada anularia acordos económicos já realizados, o que teria custos gravíssimos para aquele país, o "sim" ganhou por apenas 54,6%. O problema - percebia-se nas entrelinhas - seria a possibilidade de ciganos provenientes da Roménia e da Bulgária poderem entrar livremente na Suíça.

3. Quando vim morar para a Alemanha, em 1989, praticamente não havia pedintes nas ruas. Nos últimos anos o número destes tem vindo a crescer, e a sua idade média tem vindo a diminuir. Já se vêem adolescentes com bebés ao colo a pedir no metro, crianças de 4 ou 5 anos a pedinchar junto às paragens do autocarro.
Pergunto-me porque é que os serviços de protecção de menores não fazem com estes o que fariam com qualquer criança alemã: levá-los para um centro de apoio a menores, averiguar quem são os pais, esclarecer a situação e tomar medidas para garantir a longo prazo a defesa dos interesses das crianças.
Alguns amigos franceses, por sinal gente de esquerda, explicaram-me que é impossível. Que são redes muito bem organizadas, e que os organismos estatais não têm qualquer hipótese de intervenção.

4. Na semana passada, em Lisboa, ouviu-se a seguinte conversa entre duas ciganas, aparentemente mãe e filha, a propósito de um bebé que ia no mesmo eléctrico:
- Ouviste aquele bebé? Que choro irritante!
- Ouvi, ouvi. Até me perguntei porque é que não o atiraste pela janela fora.
- Bem me apeteceu, mas não queria acordar o gato da outra senhora naquele banco.
Quando me contaram, perguntei porque é que não tinham reagido.
"Com ciganos ninguém se mete!", foi a resposta.

5. Recentemente, num artigo de opinião de um diário berlinense, falava-se dos ciganos romenos que invadiram as ruas desta cidade e que chegam a ter comportamentos agressivos se não recebem o dinheiro que pedem. Dizia-se que era preciso encontrar resposta para este problema, e logo se brandia a pústula da História: desta vez, exige-se algo bem diferente da "solução" escolhida há 70 anos.

Sarkozy, pelos vistos, não lê os diários berlinenses. Bem sei que "repatriamento" não é sinónimo de câmaras de gás, mas o princípio é semelhante: ver-se livre do problema, em vez de o resolver de forma digna e justa.
É fundamental protestar contra a actuação do governo francês, mas para além disso - e sobretudo! - procurar com perseverança uma solução digna e justa, mas nunca "final", que tem de começar por:
- Melhorar o conhecimento sobre a realidade dessas pessoas, eliminar a confusão que nos leva a pensar "intruso que não respeita as nossas leis" quando se diz "cigano".
- Enunciar abertamente os motivos do medo e testá-los factualmente; reduzir a indiferença que é consequência daquele medo mais ou menos justificado.
- Retirar do discurso público as entrelinhas e os tabus, procurar palavras justas para falar desta realidade.
E venha então o debate a nível europeu, combinado com um diálogo exigente com os romani e os sinti. Sem tolerâncias nem compaixões, antes com respeito mútuo e vontade de encontrar, em conjunto, uma forma de coexistência pacífica e digna.

(Para que da próxima vez, no eléctrico 28, seja possível dizer de igual para igual, sem complexos nem medos: "Ó minha senhora, francamente! Que mau gosto, esse seu humor!")

6 comentários:

lena disse...

Olá. Parabéns ao grupo pelo blog, em especial à Helena, pois até agora só li escritos seus. Parabéns pela alegria que transmite, pela sinceridade e principalmente pela boa disposição. Viajo pouco, e acredite que "voo" quando por aqui passo.
Obrigada.

Helena Araújo disse...

Obrigada!
Os outros membros do blogue são uma brincadeira já velha de alguns anos: este é um blogue com divisão de tarefas, eu escrevo e aqueles amigos lêem...
(enfim: em 2005, ou 2004, já nem sei bem, começámos juntos, mas depois especializámo-nos cada um na sua tarefa)

Rita Maria disse...

Na Hungria a certa altura começaram a fazer algumas coisas interessantes que talvez valesse a pena discutir. Tenho de ver se encontro esses apontamentos...

Helena Araújo disse...

Vê, vê!
E depois conta.

Eu andei no entretanto a ler uns relatórios sobre as condições de vida dos Roma e Sinti na Alemanha, e fiquei com os cabelos em pé.

Como é que agora se protesta contra as expulsões, e até agora nada se disse sobre a condição de pária que cai sobre estas pessoas?
O que por aí vai de demissão nossa, que coisa inacreditável!

Cristina Torrão disse...

Helena, gostei do blog e especialmente da maneira como tratou deste tema. E é claro que também me atrai o facto de ser portuguesa a morar na Alemanha. A Helena desde 89, eu desde 92.
Passarei a seguir este blog e teremos oportunidade de trocar impressões. Apesar de que eu, nas próximas semanas, estarei em viagem e com menos tempo para a blogosfera. Mas ficarei atenta ;)

Helena Araújo disse...

Seja bem-vinda, Kátia!
Daqui a nada temos quorum para criar um grupo de pressão - a ver se também dão subsídios aos emigrantes, para suportar estes custos de insularidade...
;-)