10 maio 2010

em Berlim, há 65 anos...

Do diário de Ruth Andreas-Friedrich, tradução Speedy Gonzalez: 

Nota: Ruth Andreas-Friedrich, jornalista, viveu em Berlim antes e durante a segunda guerra mundial, fazia parte de um grupo de resistentes, denominado "Onkel Emil", e escreveu um diário ao longo de todo esse período. 
Os nomes usados no diário são falsos, por precaução óbvia. 

Andrik é Leo Borchard, maestro, companheiro de Ruth, dirigiu a Filarmónica de Berlim no fim da guerra; nasceu e cresceu em Moscovo, filho de alemães; morreu em Agosto de 1945, aos 46 anos, num estúpido acidente devido a um mal-entendido com as forças de ocupação. 

Frank é Walter Seitz, médico no hospital universitário, que viveu escondido em Berlim. No Verão de 1945 vê-se obrigado a ajudar mulheres que estão grávidas na sequência das violações em massa feitas pelos soldados soviéticos. O diário inclui um debate sobre esta decisão, já que o aborto era considerado crime. Se pedirem com jeitinho, depois o Speedy Gonzalez traduz também essa passagem. 

Jo é Joseph Schunk, médico do exército. 

Heike é a filha de Ruth. 

*** 

Quarta-feira, 2 de Maio de 1945 

(...) 
À tarde, o Frank organiza uma expedição para ir buscar água. A bomba mais próxima fica a três quarteirões. A alça passa de mão em mão, há várias filas enormes. Pomo-nos no fim, e precisamos de duas horas até chegar à bomba. "Nós costumamos ir buscar ao tanque dos incêndios", diz uma mulher à minha frente. "Mas desde que há lá um cadáver a boiar...". "Pois é", concordo eu, "água com cadáveres não é boa para beber". "Além disso, é um civil", acrescenta ela, com alguma hesitação. Eu fico calada. O problema da higiene da água nunca me tinha ocorrido por este prisma. O Frank começou a falar com o proprietário de um rádio de pilhas, e espreme-o como a um jornal vivo. "Há notícias!", diz ele, radiante, enquanto rebocamos para casa os nossos oito baldes de água, em estratégia de vai-vem. "Já vos aviso: de cair para o lado!" 
Em casa, revela a sensação: Hitler está morto na Reichskanzlei. Goebbels envenenou-se, com mulher e filhos. Himmler ainda luta em Bresgau e Epp terá feito um golpe de estado em Munique. "De onde te vem tanto saber?", pergunta Jo. O Frank não responde. Olha para uns e outros, expectante. "E então...?" - "Hum...", resmunga Andrick. Os outros permanecem calados. "Eu nem sequer sabia que o Hitler estava em Berlim", diz Dagmar. 
Repentinamente, ficamos conscientes do grotesco deste momento. O Hitler está morto! E nós, como se não fosse nada connosco. Foi ultrapassado pelos acontecimentos. O Drittes Reich desfez-se como um fantasma. Também o sr. Hitler caiu no monte de lixo, com as cruzes gamadas das suas bandeiras nazis. Vai para o inferno, Führer e Reichskanzler! Tempi passati! Já não nos interessas. 

Sexta-feira, 4 de Maio de 1945 

Ainda não há água, nem luz, nem gás. Não há meios de transporte nem telefone. Gastamos várias horas para ir buscar água. Trabalhamos como coolies. Fazer fogo, juntar lenha, cortar lenha, retirar entulho. Volta e meia recebemos visitas dos russos. Vão de quarto em quarto, olham para tudo, e ficam com o que lhes agrada. Não são antipáticos, mas também não são simpáticos. Olham através de nós, como se não existíssemos. "Uhri, Uhri" [relógio], dizem eles às vezes. "Schnaps" e "Veloziped". As nossas bicicletas desaparecem. Por trás do cemitério há uma rua de asfalto. É lá que os soldados vitoriosos aprendem a andar de bicicleta. Aprendem como crianças. Com tenacidade e zelo, sem se preocuparem com o que estragam. Ao fim de três dias, a rua está coberta de peças de bicicleta. "Refugo", diz o Frank. "Sou a favor de irmos buscar aquelas peças. Sem meios de transporte não podemos ir a lado nenhum". Ao lusco-fusco saímos para ir recolher, peça a peça, aquilo que já fora nosso como um todo completo. Selins e guiadores, quadros torcidos e pneus esburacados. "Belo trabalho de bricolage". Fabian observa o monte de peças com um ar resignado.

Domingo, 6 de Maio 

O Frank e eu ousamos sair pelas redondezas. As ruas continuam dominadas por lenços de cabeça vermelhos e braçadeiras brancas. Mas hoje essas pessoas não carregam malas. Sem parar, com um zelo obstinado, libertam as ruas do entulho. "Porque é que trabalha a este ritmo?", pergunta Frank a uma mulher que manuseia a pá a com desespero. "Porque eles...", ela engole em seco, "ameaçaram deitar fogo às casas se até hoje à noite o trabalho não estiver feito". Nos olhos dela há um ar de cão batido. "Não será assim tão perigoso", consolamos nós. Mas a mulher já regressou apressadamente à sua tarefa. "Pobres escravos", diz o Frank. "Mas, e se fosse mesmo assim", pergunto eu, inquieta, "quer dizer, isso de incendiar as casas?" Frank encolhe os ombros. "Talvez seja verdade. Mas o medo deles ainda torna as coisas piores. Os russos não gostam de medricas." 
Não, eles não gostam de medricas. Como crianças e animais, gostam do ar calmo, da segurança amigável. Quem olha para eles como se os achasse perigosos, para esses tornam-se perigosos. Nos últimos dias tornaram-se muito mais perigosos. O pânico domina a cidade. Consternação e choque. Onde quer que se vá: roubo, pilhagem, violência. O exército dos vencedores atirou-se às mulheres berlinenses com desenfreada voracidade. Visitamos Hannelore Thiele, amiga e colega de escola da Heike. Está aninhada num canto do sofá. Mal levanta os olhos quando entramos. "Deviam ser todos mortos", lamuriava-se ela num murmúrio. "Não é possível viver assim". Cobre o rosto com as mãos e desata a chorar. É horrível olhar para os seus olhos inchados, horrível ver o seu rosto desfigurado. "Foi assim tão mau?", pergunto eu. Olha-me com ar miserável. "Sete", diz ela, e começa a tremer. "Sete, uns atrás dos outros. Como animais." 
Em Klein-Machnow mora a Inge Zaun. Tem dezoito anos, e não sabia nada sobre o amor. Agora sabe tudo. Com sessenta repetições. "Como é que uma pessoa pode resistir", pergunta ela numa voz indiferente, "se eles batem à porta e disparam para todos os lados? Todos as noites vêm outros, todas as noites novos. Da primeira vez que se serviram de mim e obrigaram o meu pai a ver, pensei que morria. Depois...", faz com a mão um movimento vago. "Desde que tenho uma relação com o capitão deles, por sorte é apenas um. Ele dá-me ouvidos e faz com que eles deixem as miúdas em paz". Estremeço. Durante os últimos quatro anos, o Goebbels não parava de afirmar que os russos nos iam violar. Que eles violam e pilham, assassinam e incendeiam. "Propaganda abominável!", protestávamos nós enquanto esperávamos pelos aliados libertadores. Agora, não queremos ficar desapontados. Não podemos suportar que Goebbels possa ter razão. Durante doze anos fomos do contra. Em algum momento temos de ser a favor de alguma coisa. Se agora não o conseguirmos... 
"Eles desonram as nossas filhas, violam as nossas mulheres", acusam os homens. "Não uma vez, não seis vezes, não dez ou vinte vezes". Só se fala disso na cidade. E só se pensa nisso. O ar está pesado de ideias de suicídio. As raparigas são escondidas no sotão, sob montes de carvão, sob roupas de velha. Quase nenhum dorme na sua própria cama. "Perdida a honra, tudo perdido", diz um pai, enquanto estende uma corda à filha, doze vezes violada. Obedientemente, ela vai enforcar-se numa janela. "Se vos desonram, a única coisa que vos resta é a morte", diz uma professora à sua turma feminina, dois dias antes de ter um colapso. Mais de metade das alunas aceita as consequências, e afoga-se no canal mais próximo. Honra perdida, tudo perdido. Veneno ou bala, corda ou faca. Suicidam-se às centenas. "Frank", pergunto eu, "entendes isto?" Ele abana a cabeça. "Mas temos de compreender. Se não compreendermos, o nosso futuro acaba ainda antes de ter começado". Eu concordo. "Que resultado tão triste para doze anos de espera." Caminhamos pelas ruas, taciturnos. Quanto mais o dia avança, mais frenéticas trabalham as pás por todos os lados. Como se estivesse ausente, o olhar de Frank vagueia por cima dos lenços vermelhos e das braçadeiras brancas. "Talvez haja um meio", começa ele, pensativo, "ou seja: um meio para entender". Olho para ele. "Sabes", continua ele, quando começámos a guerra e os invadimos, quando lhes matámos os homens e lhes roubámos os haveres, o Muschik terá pensado: devem ser mais pobres que nós. Devem ter fome e falta de tudo. Isso era algo que ele podia ter compreendido, porque é simples e natural. Mas afinal não era simples, nem natural. Porque quando chegaram à Alemanha, viram que tínhamos casas, e até banheiras, espelhos e cómodas. Percebes agora porque é que ficaram furiosos? Pilhar e roubar, estragar e incendiar. O espelho enfureceu-os, a banheira e a cómoda. Não se invade um país quando se é mais rico que o país invadido". "Pois não", confirmo eu, e sinto-me grata ao Frank por me ajudar a acreditar de novo. "Mas, e as violações?", ocorre-me a seguir. "Com certeza que não se viola só porque não se tem uma cómoda. E se alguém o faz, não tem de vir logo todo o regimento". "Precisamente, todo o regimento", atalha Frank. "É essa a questão. Tens de perceber que tem a ver com aquele tipo de pessoas [em alemão: Gattung, uma expressão da biologia, que tem a ver com raças e espécies]. O homem natural." - "Mas um homem natural não precisa de desatar a violar", argumento eu. "Lógica louca! Claro que não. Mas o que é instintivo, quer também possuir de forma instintiva. Carne ou terra - terra ou carne. Com os primitivos também é assim. A vitória é um processo físico. Vivido e revivido de forma física. Não é bonito, mas é compreensível." - "Não é bonito, mas é compreensível..." concordo relutantemente. "Por outras palavras: a euforia da vitória russa manifesta-se na carne". O Frank anui. "Na carne das nossas mulheres. Apropriam-se da terra alemã pedaço a pedaço, em pessoa. Noite após noite procriam nela, em pessoa." 
Está a anoitecer. As pás movem-se como tomadas por demónios. Quase se dá nas vistas por não se fazer parte do grupo dos que trabalham na rua. Um homem olha-nos com cara de poucos amigos. "Comissários", ouvimo-lo resmungar. "Malditos espiões!" O insulto não nos atinge. 
Em casa deparamo-nos com visitas. Todos querem contactar os amigos, saber se sobreviveram. Em poucas palavras trocam-se novidades: cessar-fogo desde ontem, luta-se apenas em Praga. Hitler morreu de hemorragia cerebral. Continuamos a viver de boatos. O que sabemos, chega-nos por acaso ou de algum rádio a pilhas. "E como é que foi com as violações por aqui?", pergunta alguém. "Não aconteceram", responde Andrik. "Queres dizer que as soubeste evitar", corrijo eu. "Sorte a vossa, que conhecem a língua", suspira uma das visitas. "Quando se conhece a língua, tudo se torna mais fácil". É verdade. A impossibilidade de se fazer compreender rouba qualquer base de humanidade aos encontros entre vencedores e vencidos. 
(...) 

Terça-feira, 8 de Maio de 1945 

O nosso humor torna-se mais sombrio de dia para dia. Andamos de um lado para outro como se tivessemos perdido alguma coisa. O Andrik meteu-se na cama. O Frank faz e desfaz a sua mala. Heike e Fabian tiveram a primeira discussão, e a Dagmar nem se vê. O que se passa connosco? Se podemos começar, porque não começamos? "Acho que nos falta um objectivo", diz Jo. "Limpar, só por si, não é uma missão". Acertou em cheio. Ninguém sabe o que fazer. Acabou a luta contra os nazis. Ninguém precisa da nossa ajuda. Perdemos o nosso objectivo, e ainda não encontrámos um novo. É difícil arranjar novos objectivos quando não se tem água nem luz, e qualquer contacto com o mundo exterior é conquistado ao preço de penosas caminhadas. 
Com as peças de bicicleta recuperadas, Frank e Jo conseguiram montar duas bicicletas. "Vamos até à sede do Comando ver o que se passa", sugere Andrik. Não pedalamos muito tempo. Logo na esquina seguinte aparecem três soldados russos a gesticular. Ao ver que tentamos passar por eles sem parar, saltam para nossa frente. "Maschina... Maschina...", dizem eles, e preparam as pistolas. Andrik tenta levá-los a bem, mas é impossível fazê-los mudar de ideias. "Maschina... Maschina!" Uma ligeira hesitação, e continuamos o caminho a pé. "Disto já nos livramos", diz Andrik. "De quê? Dos russos, ou das bicicletas?", pergunto eu. "Dos dois", responde ele, entristecido. 
Na sede do Comando parece estarem de férias. Só um sentinela se estende em frente à porta. "O comandante?", e abana a cabeça. "Hoje é feriado", assegura-nos. Desde o meio-dia, por causa do cessar-fogo. - Cessar-fogo! A notícia vale bem a perda das bicicletas. Subitamente apodera-se de nós a euforia da libertação. Livres de bombas! Livres das casas escurecidas! Livres da Gestapo e dos nazis! Regressamos a casa como se tivessemos asas. À noite fazemos uma festa. Festejamos com tudo o que temos. Pax nobiscum! 

Quarta-feira, 9 de Maio de 1945 

O mundo regozija-se numa vertigem de vitória. Os berlinenses perguntam-se onde é que vão arranjar algo para comer. Ainda não há lojas. Ou estão fechadas, ou saqueadas. Nós não somos os únicos que esqueceram o sétimo mandamento durante os dias da batalha. O que falta nas lojas foi em grande parte levado pelos berlinenses. 
(...)

4 comentários:

Paulo disse...

Um testemunho impressionante. Obrigado pela tradução. Não me atrevo, nem com muito jeitinho, a pedir que traduzas mais.

Gi disse...

Impressionante. O que se tem feito às mulheres, o que se faz ainda hoje, apavora-me.

Helena Araújo disse...

Paulo, tu podias era atrever-te a pedir-me o livro! É viciante.

Gi, é verdade. E foi no centro da Europa, há apenas 65 anos. E elas achavam que tinham de se suicidar a seguir.
O que nós já andámos para chegar ao século XXI!...

Paulo disse...

Ah isso peço. Quando vieres cá, se ele te couber na bagagem, estarei de braços abertos para o receber.