20 abril 2010

em termos de Fraternité, estamos conversados

Dezenas de milhares de pessoas à procura de uma maneira de atravessar a Europa para regressar a casa, e os ferroviários franceses em greve.

***

Plano B: o Joachim sugeriu à Christina que escrevesse um diário destas suas horas cinzentas.

(quem não percebeu o trocadilho, levante o dedo na caixa de comentários)

16 comentários:

Rita Maria disse...

Eu nao percebi (mas estou com os franceses, mesmo gostando da tua filha) (que aliás já deve vir a caminho)

jj.amarante disse...

É isso que me irrita nos transportes colectivos, é a tendência para ocorrerem greves quando são mais necessários, como no Natal, na Páscoa e nas férias escolares de Verão. Neste caso é a incapacidade de corrigir o rumo face a uma situação excepcional. Parece-me que esta tendência ocorre mais no Sul da Europa ou será também comum aí para o Norte onde há alguma co-gestão?

Helena Araújo disse...

Estás com os franceses, Rita?!
Isso deve trazer água no bico... ;-)
(trocadilho: cinza, cinzento. Sei de um rapaz que diria agora: "que piada seca!")

A minha filha só conseguiu bilhete para quarta à noite. E é se não cancelarem esse voo.


JJ Amarante,
a ideia da greve é mesmo essa: pressionar o mais que podem. E o consumidor que se arranje, e encolha os ombros em espírito de muita fraternité.
Não percebo muito de greves aqui na Alemanha. No ano passado houve durante várias semanas nos transportes públicos de Berlim, mas não se sentiu muito porque só um dos ramos é que fez greve. As pessoas zangaram-se um bocado, mas depois ficaram a saber que havia situações salariais intoleráveis. Vou ver se a Rita me corrobora esta informação.
E depois, se não me engano, no fim do ano, os transportes públicos deram um desconto de 15 euros num passe mensal para Berlim. Para pedir desculpa.

Rita Maria disse...

As greves funcionam como forma de pressao sobre as administraçoes. Mas a pressao é externa, evidentemente, nao achamos que a greve vai funcionar muito bem porque a administraçao se vai sentir muito sozinha na empresa, apesar de os clientes até estarem satisfeitos. Por isso claro que se planeiam greves para quando esses serviços sao necessários, isso aumenta a pressao que é a razao de existência da greve tornando-a, pelo menos em teoria, mais eficaz. Pelo menos até à altura em que os administradores, sentados nos seus bónus discretos, conseguem fazer passar a ideia de que os trabalhadores é que sao uns filhos da mae. Neste caso das empresas ferroviárias europeias a tentarem todas subir os preços discretamente para ganhar o mais possível com a desgraça, nem tenho muita pena.

Nao tenho dúvidas quanto à vantagem comunicativa que podia ter tido cancelar a greve nestas circunstâncias, mas sejamos sérios: há vidas em perigo? É preciso levar ajuda para algum lado, mantimentos, pessoal médico?

Ou a economia tem um soluço daqueles que vao ser os trabalhadores a pagar sozinhos assim como assim e cujos principais prejudicados também nao sao, por norma, uns desgraçadinhos?

(e isto digo eu que cancelei uma conferência para esta semana e estou tristíssima)

PS: Sobre Berlim, lamento mas nao faço ideia do sentimento do pessoal. Como só ando de Ginger, ouço menos o povo...mas lembras-te das estatísticas aquando da greve da Bahn?

Helena Araújo disse...

Rita,
eu diria que também não sou parte neutra na questão, porque tenho uma filha a sentir-se muito infeliz do outro lado da França.
Eu - sobretudo por causa disso - diria que um caso destes, em que as ligações aéreas sobre a Europa deixam de existir, e dezenas de milhares de pessoas estão longe de casa e a tentar desesperadamente arranjar uma solução, os ferroviários franceses podiam ter a gentileza de adiar a greve deles para um período menos catastrófico.
OK, agora vais dizer que ninguém tem pena das condições de trabalho catastróficas dos ferroviários franceses, e eu meto a viola no saco.

Quanto aos soluços da economia: quem os paga são os mais pobres.
Não sei se é motivo bastante para manter o sistema a funcionar, mas de momento parece não haver nenhum que funcione menos mal que este.

Rita Maria disse...

Eu, como calculas, nao sei nada sobre os ferroviários franceses. Em termos de comunicaçao, ter-lhes-ia sugerido adiar, mas quando soube até fiquei contente por eles, confesso.

Quanto a serem os pobres a pagar a crise: Nunca sei se a soluçao para dar a volta à coisa nao é deixá-la cair. Espero que nao, mas por vezes temo que nao haja outra forma e que já devíamos (nós os pobres, nao eu e tu) estar cansados de pagar crises com as quais temos pouco a ver, que quando nascem nunca sao para todos e, quando sao enterradas, ninguém nos convida para aquele bacanal romano a seguir à missa do sétimo dia.

Helena Araújo disse...

Rita,
eh pá, se tivesses barbas até te confundia com o Carlos Marques!
;-)

É verdade que os ricos se safam sempre muito melhor que os pobres. Nem sequer vou defender os salários milionários dos administradores.
Mas este sistema tem permitido que os pobres estejam hoje muito melhor do que há cinquenta anos.
Há algum grupo social que viva hoje pior que há meio século? Há um século?
Sem ler muitos livros antes de concluir isto: o sistema (refiro-me a um capitalismo de Europa do Norte, com responsabilidades sociais) não deve ser tão mau. E não conheço nenhum que tenha funcionado melhor.
Por outro lado: algo me diz que o preço deste nosso bem-estar é pago pelos pobres do terceiro mundo (e esses podem fazer as greves que quiserem, são substituíveis...), e será pago também pelas gerações vindouras.

Rita Maria disse...

Espera só até eu começar a deixar crescer a barba...por enquanto, três coisas de bigode: os direitos conquistados por gerações não serão alheios à melhoria das condições de vida, ela não seu por caridade cristã (1); depois de anos de melhorias, a geração dos meus pais é a primeira em Portugal, talvez também na Alemanha das últimas cinco décadas, a não achar que os filhos terão condições de vida melhores do que as deles, a geração que nas aldeias poupou tostões para fazer dos filhos doutores continua a poupar tostões porque os filhos não ganham que chegue no call center, quando têm emprego, os níveis de desigualdade não param de crescer (2); e acima de tudo, os limites da nossa imaginação e do nosso espírito crítico no passado não servem de desculpa no presente, devemos todos a cada criança que morre de fome um esforço extra de questionamento, de procura, de imaginação. Se nao ajudarmos alguém na rua que está a morrer isso é crime. Consentir na pobreza não é menos criminoso, é só mais fácil, sempre nos disseram que é assim e que oos pobres se dividem entre os coitadinhos e os preguiçosos, de uns devemos ter pena, ao longe, os outros podemos desprezar (3).

Helena Araújo disse...

Rita,
acho que estamos a falar de muitas coisas ao mesmo tempo. E, para piorar, de coisas sobre as quais tenho pouca informação.
Por partes:
1. Conquista de direitos: sim, é evidente que foram fundamentais; mas foi o aperfeiçoamento do sistema capitalista, em termos de maior eficiência, que permitiu essas "cedências". A qualidade de vida dos trabalhadores não aumentou apenas porque os "capitalistas" passaram a distribuir melhor o que dantes era apenas lucro seu. E há aqui um elemento relativamente novo que perverte a lógica: pode ser que muitos dos que fazem greves também sejam detentores de acções, e por isso de certo modo capitalistas.
Por outro lado, este aperfeiçoamento do sistema também conta com mão-de-obra barata e matérias baratas do outro lado do mundo - por isso dizia que os pobres que realmente pagam isto não são os nossos (falando da Alemanha).
2. Não sei mesmo porque é que os jovens adultos portugueses não arranjam emprego. Mas algo me diz que não vão ficar melhor se rebentarmos com o actual sistema económico. A questão fundamental é esta: que alternativa temos?
3. Concordo que nos temos de responsabilizar pela pobreza alheia, e não podemos fechar os olhos. Mas de que modo os podemos abrir? Um exemplo muito simples: não gosto de comprar coisas feitas na China. Mas se eu boicotar a China, alguém lá vai perder o emprego, e ficar ainda pior do que está hoje.
Também há o exemplo da mão de obra infantil em países do terceiro mundo - casos em que esta foi boicotada pelos consumidores alemães, levando à desagregação das famílias, porque os pais se viram obrigados a ir trabalhar para onde havia trabalho, já que a oficina onde os filhos trabalhavam fechou. O que levou a uma mudança de atitude nos críticos alemães: agora, controla-se que as crianças, apesar do trabalho, podem frequentar a escola e recebem alimentação adequada.

Não tenho soluções. Quem me dera ter.

Lucy disse...

Espero que a Christina chegue bem e que traga um diário onde, além das cinzentas existam muitas horas verdes, amarelas, vermelhas, azuis! E que a família, enfim reunida, se sinta num belo arco-íris!

Helena Araújo disse...

Obrigada, Lucy!
Pode ser que consiga regressar hoje, à meia-noite.
Se não vier, acho que vou começar a ver todas as cores... ;-)

Rita Maria disse...

Sinto-me tao horrivel, a discutir a revoluçao e tu sem saberes se te devolvem a rapariga....

Mas acho que estamos a falar de muitas coisas diferentes:

1) Uma coisa diferente das conquistas sao as condiçoes de vida da sociedade ocidental: essas sofreram realmente um incremento ligado 1=1 ao desenvolvimento económico. Mas em termos de trabalho, acho que basta olhar para a luta subjacente a cada uma delas para perceber que nao foi exactamente um "agora estamos melhor, tomem lá mais um amendoim".

Quanto aos trabalhadores accionistas, tenho enormes dúvidas que ultrapassem os 5%. Concordo que num mundo bonito os trabalhadores sentiam a empresa como se fosse também um projecto deles. Eu gosto muito de trabalhar assim. Mas faço-o, também, porque me deixam crescer e assumir responsabilidades e porque nao tenho de ficar aqui sentada a pensar se tenho emprego amanha.

E quanto às desigualdades entre o primeiro e o terceiro mundo, as nossas desigualdades internas num espelho de aumentar, só se resolvem com políticas comerciais justas. E alguma regulaçao. Se podemos impedir que entrem na Europa produtos agrícolas de país X, porque nunca fazemos nada ao nível de coisas como o trabalho infantil?

2)Aqui, acho mesmo que estás a anos luz da realidade. A precaridade dos jovens portugueses nao é uma coisa que acontece ao lado do sistema, lateralmente, em acrescento. É O SISTEMA. É este. Para a minha geraçao nao há outro. E portanto nao há férias, contratos bancários, seguro de desemprego, etc, etc. Nao é de ontem e nao está em vias de mudar, muito pelo contrário.

3)Voltando ao do costume: que alternativa temos é uma pergunta que traz no bico a do "queres planos quinquenais, queres? nao gostas de bananas?". Eu gosto de bananas e nao quero planos quinquenais, mas acho que esta discussao tem de se estender a mais que isto, de ser mais séria, mais exigente. Estamos sempre a repensar as coisas e a por em causa todos os sistemas, o de educaçao, o de saúde, o de família, o da igreja. Só o económico é que tomamos como dado adquirido porque nao há outro. E no entanto ele muda, todos os dias, e nós a deixáa-lo ir onde lhe apetece, e sempre a dizer que nao há outro, mesmo se ele nunca é o mesmo...e se houvesse? E se só quiséssemos mudar este? Nao como consumidores só, o poder que temos nesse aspecto é largamente exagerado, mas como cidadaos de um mundo que é nosso e de uma civilizaçao que nos pertence. Eu nao sou só uma rapariga que compra coisas, também leio, penso, trabalho, politizo, imagino. Na verdade, nao ando a fazer a minha parte deste trabalho de imaginaçao, tal como a maior parte de nós nao anda. Mas devíamos. Por isto em causa como pomos o resto. E mandar bitates e ver no que dá a discussao. Imaginas um movimento mundial onde as pessoas se interrogassem "como podia ser?".
O que me traz de volta ao início: muitas empresas espertas já descobriram que pedir aos seus trabalhadores este exercício crítico só tem ganhos, produtividade, motivaçao, poupança de recursos, competitividade.

Helena Araújo disse...

Não te preocupes com a minha filha, Rita. Deixares de discutir a "internacional" ;-) por causa de eu andar a misturar alhos (os meus sentimentos) com bogalhos (o movimento sindical francês) é que estava mal.

Ora vamos lá...

Trabalhadores accionistas: já trabalhei numa empresa onde praticamente todos os trabalhadores tinham acções dessa empresa. Mas não é só isso: são os planos poupança-reforma assentes em acções, por exemplo. (Provavelmente o pessoal que recebe salário mínimo não tem poupanças para aplicar na bolsa, e se tiver sorte a sua empresa não tem um plano de reformas baseado em acções). Accionistas não são apenas os capitalistas, os administradores, os milionários. Há muitas famílias da classe média que "jogam" na bolsa, convencidas que é um investimento seguro.
Isto complica um bocado - acho eu - a velha dicotomia de trabalhadores de um lado e capitalistas do outro. Quando o Deutsche Bank despede 10.000 empregados apesar de ter lucros descomunais, porque só assim aumenta o valor das suas acções, não temos capitalistas de um lado e trabalhadores do outro, mas os administradores, os capitalistas e milhentas famílias da classe média que usaram as poupanças em acções desse banco, e trabalhadores do outro (que, quase de certeza, também terão acções desse banco).

Tens razão, não sei e não entendo o que está a acontecer com os jovens em Portugal. É a economia portuguesa que não tem condições para dar emprego estável aos jovens? Como é que se criou esta situação?

O sistema que temos já é o que temos vindo a imaginar. É o resultado de um processo iterativo no qual todos participamos, com mais ou menos poder. De cada vez que se faz legislação laboral, que se discute o controle do sistema financeiro, etc., está-se a agir sobre o sistema económico.

No fundo, a pergunta que mais se faz é "como podia ser?".
E parece-me que os sindicatos são os que trazem respostas menos criativas...
(isto é provocação, claro)

Rita Maria disse...

Nao, é a economia portuguesa que descobriu que pode ter mao de obra descartável, formada e barata. Em podendo, eles comem. Também nao sao muito criativos... ;)

Helena Araújo disse...

Mas há quantos anos é que o governo é PS (e isto, dando de barato que o PSD não teria as mesmas preocupações humanitárias...)? Porque é que isso ainda não foi mudado?

A sério, Rita, esta não é para provocar: o que é que está a acontecer em Portugal, e porquê?
(desconfio que não é a ti que esta pergunta devia ser dirigida)

Rita Maria disse...

Desconfias bem. Mas eu acho que a pergunta pode bem ser "quanto tempo falta para que comece também a acontecer na Alemanha?".

De resto, a última lei do PS só precisava de uns cidadaos denunciadores para a coisa mudar...