Descansem, não vou falar da vergonha do artigo do i sobre a verdadeira identidade do Jumento, nem da minha perplexidade sobre o modo como uma certa flexibilidade, digamos assim, é premiada. Nada disso.
O meu tema é mais diferenças culturais.
Na escola onde os meus filhos andaram, nos EUA, os miúdos não faziam asneiras.
Admito que esse fenómeno tivesse a ver com regras muito claras, atenta vigilância e reacção imediata ao primeiro sinal de comportamento indesejado.
Um exemplo: as crianças não podiam bater umas nas outras. Quando a minha filha, de cinco anos muito alemães, deu o corpo ao manifesto num desentendimento com outra criança, foi repreendida; à terceira reincidência, trouxe para casa um castigo: escrever cem vezes (tinha cinco anos, ainda nem sabia escrever) "I will use my words instead of my hands". Nós ficámos estupefactos, ela fartou-se de suar e suspirar a desenhar uma coluna de cem I, uma coluna de cem w, uma coluna de cem i, etc., mas nunca mais voltou a dar um sopapo noutra criança.
E ainda bem, porque a escola não se ensaiava nada para expulsar os alunos que não aceitassem as regras.
Em todo o caso: a existência de regras de coexistência claras, garantidas por uma autoridade forte, presente e actuante poupou aos meus filhos muitos dissabores e problemas de consciência.
Regressados à Alemanha, os miúdos voltaram a ter contacto com crianças "normais". Tropelias e mais tropelias.
O que se deve fazer quando se testemunha algo que vai contra as regras da sociedade, ou que lhe é nocivo?
Num encontro de preparação para a Primeira Comunhão, o padre da nossa paróquia afirmou peremptoriamente para a roda de crianças: "vocês não sejam denunciantes! nunca se denuncia ninguém!"
E eu - em Roma sê romano - registei, embora achasse estranho.
Uns anos mais tarde, o Matthias chegou a casa furioso, contando que a professora tinha ralhado com ele perante toda a turma, porque ele não a tinha avisado sobre algo de errado que se estava a passar. O edifício da escola tinha acabado de ser modernizado, e na casa de banho dos rapazes havia urinóis, que os miúdos se entretiveram logo a entupir com papel higiénico. O Matthias viu e disse aos outros para pararem com aquilo, mas não contou à professora que os urinóis estavam entupidos. Quando esta descobriu, ficou zangada com todos. Teve de averiguar quem tinha feito a asneira, para mandar a conta do canalizador aos respectivos pais, e o nome do meu filho veio à baila.
Telefonei à professora: ó senhora romana, então em Roma como é que é?
E ela respondeu que essa do "nunca se denuncia" é treta de adultos preguiçosos que não se querem incomodar a educar as crianças e a resolver os problemas.
Moral da história: em Roma há duas maneiras antagónicas de ser romano.
Seria conveniente referir ainda que este padre viveu grande parte da sua vida na RDA, onde as Igrejas e os crentes se tinham de proteger do Estado, ou seja, onde manter segredo era absolutamente vital. No oposto desta atitude estava uma outra professora do Matthias, também com larga experiência do sistema comunista, que lhe disse à minha frente: "à professora conta-se TUDO o que acontece em casa". Até estremeci.
A professora do caso dos urinóis entupidos, por sua vez, é uma mulher jovem e moderna, que leva a sério a sua tarefa de educar para a responsabilização e a participação cívica.
Com a idade, os problemas de consciência complicam-se: que fazer quando a colega de turma, de doze anos, diz que se tenciona embebedar até cair em coma? quando a turma combina um ataque em massa para agredir num jogo internético o colega que é vítima habitual de mobbing? quando o amigo de catorze anos começa a fumar haxixe? quando se suspeita que um professor tem tendências pedófilas?
E assim vai a vida: ninguém disse que era simples.
10 comentários:
Anda Portugal preocupadíssimo com as "grandes questões" que ocupam a Comissão de Ética Parlamentar e vai um menino de 12 anos e suicida-se no rio Tua, depois de ter aguentado mais de um ano de pancadaria e gozo dos colegas...
Isto faz-se? Estragar assim o cenário idílico de um povo de brandos costumes!
Anda um país a investir na sua imagem internacional pela via do futebol, onde pululam os grandes "heróis da porrada, da fungadela e do palavrão"... e depois um grupo de miúdos, que adoram esse mundo de "competição saudável", resolve repetir o modelo e o menino-alvo não aguenta e atira-se ao rio! Ainda não encontraram o corpo, mas já toda a gente deu opiniões na televisão, na rádio e nos jornais.
Estará a Comissão de Ética Parlamentar interessada neste assunto de vida e morte?
Nããã...
A vida não é simples mas é muito colorida em Portugal, no séc. XIX, moderno e precoce até na porrada!
Por falar em moderno... Nada de denunciar a violência. OK?
Vamos lá ver! Onde é que iríamos parar? Ai, ai, ai! Juízinho.
Céu,
que tragédia!
E o pior é que há imensos casos de crianças que fazem a vida negra a outras crianças, e ninguém faz nada.
Estou a ver que ias gostar da professora do caso dos urinóis entupidos. Aliás, tu conhece-la: é aquela que apresentou o projecto Jenaplan em Portugal.
Gosto muito de que as tuas crianças tenham tido essas influências todas, assim ssabem desde pequenas que nao têm hipótese nenhuma que nao o livre arbítrio e que nestas coisas nao há regras fixas.
No mundo em que nao há regras fixas, acho começar por "nao denunciar" mais seguro do que começar por denunciar, porque acho que é mais importante começar pela ideia da solidariedade do que pela da ordem. Na dúvida nao denunciava o meu irmao, os meus colegas de escola, ainda nao denuncio os meus colegas de trabalho (já o contrário, por falar em diferenças culturais, nao é bem verdade). Mas o mais importante aqui é dotar as crianças desde o princípio da auto-estima e dos valores para decidir de outra forma e a abertura para perguntar a um adulto em que confiem.
Por exemplo: o valor da nao violência e da injustiça é mais importante, denunciar qualquer plano de ataque em grupo a outro aluno se evitá-lo for impossível; no caso da suspeita de pedofilia a defesa dos mais fracos tem prioridade, falar com alguém; no caso da colega, se for nossa amiga, tentar impedi-la, nao é demasiado difícil; no caso dos urinóis, tentar convencer os colegas de que aquilo é um grande disparate e depois ficar calado, ou denunciar que os urinóis estao entupidos, mas nao quem o fez (grande Matthias, ele tem um clube de fas no Facebook?).
Eu que tenho imenso a mania que percebo muito de educar crianças e adolescente acho que é isto: dar-lhes os valores, em exemplo e em conversas, dar-lhes a auto-estima, com muito amor e regras claras. Depois é esperar que sejam fantásticos e ponham isso tudo a uso.
PS: Que tragédia horrível, só li agora!
Lá no 1º comentário escrevi "... Portugal no séc. XIX", mas queria ter dito no século vinte e um. Confio que me entenderam.
Helena
Quando encontrares a Mestra do Projecto Jenaplan, dá-lhe um abraço.
Rita
De acordo. Não podemos começar pelo "denunciar" e vale mais acordar nas crianças e nos jovens a solidariedade com quem é vítima de violência. Contudo, o esforço tem de ser levado a sério por todos os adultos cujos modelos, muitas vezes, deixam os mais novos confusos.
Enfim, é importante clarificar bem a diferença entre solidariedade com as vítimas e a cumplicidade com os agressores.
Também seria bom associar a tudo isto o valor da coragem que implica atitudes consequentes e coerentes.
Tenho pena de não vos acompanhar no resto deste debate, mas vou ter de sair e estarei sem pc, sem Net, nadika de nada! :(
Muito para reflectir e escrever, Helena.
Irei fazer a reflexão com os meus botões e até lá não posso escrever.
Há no entanto uma questão prévia que se prende com a diferença entre adultos e crianças e que na essência diferencia a auto-suficiência da dependência.
Percebo que o Matthias tivesse chegado a casa zangado. Tinham-lhe ensinado a não denunciar e foi isso que ele fez. No entanto, alguém o deveria ter ensinado que, sem denunciar, seria importante que ele comunicasse que os urinóis tinham sido entupidos.
A tal conversa que agora não vou escrever, por estar em reflexão, prende-se com coisas mais mesquinhas e, como tal, de adultos, porque uma coisa é detectar-se um crime e comunicá-lo, outra é participar nele e depois, por não se conseguir obter vantagens desse crime, denunciar os cúmplices.
Isto falando em termos gerais e sem a tal reflexão, sem visar alguém mas só desenhando os contornos da matéria em reflexão.
Luís,
eu estava mesmo a falar de outras coisas. O caso dos urinóis é relativamente simples, mas que fazer quando a nossa filha nos conta que a filha de amigos nossos anda a fumar haxixe aos catorze anos? Ou quando desconfiamos que um professor tem tendências pedófilas, mas não temos nada na mão? Ou quando temos a sensação que a criança dos vizinhos apanha "demais" (o que é "apanhar demais"?)?
Posso dar outros exemplos:
- Em Portugal há condutores completamente irresponsáveis, que fazem manobras que põem em causa a vida de outras pessoas, mas ninguém os denuncia à Polícia. Porquê?
- Na Alemanha tem havido casos de crianças que morrem por maus tratos, sem que os vizinhos do mesmo andar tenham alguma vez feito alguma coisa. A sociedade pergunta-se depois como é que esta indiferença é possível.
Não é fácil, dizia eu. Nem para adultos.
Quanto à sua matéria para reflexão: fico pacientemente à espera dos resultados dessa reflexão. Sei que fará um bom trabalho.
é mesmo matéria de reflexão e matéria difícil. Penso que não é na delação que está a solução, mas sim no bom senso. Quando falo de adultos e de menores falo da protecção a que os menores têm especial direito. Não é admissível que se não denuncie a pedofilia, ou os outros casos que a Helena refere. É impossível ter conhecimento que um miúdo de 12 anos decida suicidar-se por ser perseguido e não se faça nada. Mas isto não é delação, pelo menos como eu a considero. Denunciar o que está mal e prejudica menores (ou adultos) é um dever, principalmente se a intenção for a da correcção do que está mal.
Mas delação (e fui agora ao dicionário para confirmar se tem o sentido que eu lhe dou - e tem) é: "Revelação de crime, delito ou falta alheia, com o fim de tirar proveito dessa revelação". (http://www.priberam.pt/DLPO/default.aspx?pal=delação)
O "tirar proveito dessa revelação" é a grande diferença e até a vingança pode ser uma forma de proveito.
De onde eu concluo que devia consultar o dicionário antes de escrever! Além de ter no título um erro ortográfico, estava a tomar apenas o sentido de denúncia, e a esquecer o elemento mais importante do termo "delação".
Devia mudar o título, mas fica assim para que o seu comentário não perca o sentido.
Quando o T. atingiu os cinco anos, achei que me cabia, como mãe, facultar-lhe algumas competências sociais e uma delas foi, precisamente, as chamadas «queixinhas». Se não é fácil aceitar que o nosso filho seja «um queixinhas», também não é dizer-lhe para nunca contar seja o que seja a ninguém.
Sou jurista - no que isso tenha de bom ou de mau. E, portanto acabou por ser relativamente fácil transmitir-lhe a minha concepção (certa ou errada) do que se conta ou não e a quem.
Ajudaram-me dois conceitos de direito penal: o de «legítima defesa» e o de «estado de necessidade» e um princípio geral do Estado de direito, de que as denúncias (não delações, como já se viu) são feitas a quem tem autoridade para resolver os problemas.
Daqui:
Regra geral: não se fazem queixinhas (leia-se não se anda a dizer à prof. que o Manelinho deitou a língua de fora ou chamou um nome feio a mim ou ao Zézinho; se a escola tem a política de reprimir esses comportamentos infantis - não discuto - que trate de arranjar quem os fiscalize).
Excepções - 1. Legítima defesa, do próprio ou de terceiros. Se alguém me bate regularmente ou está a bater/gozar/achincalhar, agora ou com frequência, outro alguém que não logra defender-se, fora de uma zaragata isolada e inconsequente, há que denunciar, para que o «sofrimento» do próprio ou de terceiro termine.
2. Estado de necessidade: os colegas do Mathias brincavam a entupir sanitas; podia haver ou não o perigo de uma inundação. O Mathias (a quem tiro o chapéu por perceber que não era uma questão de legítima defesa e que se aplicaria a regra do «não à queixinha»), dir-lhes-ia para pararem e se não o fizesse, deveria formar a sua convicção sobre se haveria ou não perigo de inundação; se não houvesse, não contaria, se houvesse, diria a quem pudesse resolver o assunto com mais eficácia. Se, desta denúncia de um facto perigoso resultasse o castigo dos colegas (porque eram apanhados em flagrante, não porque dissesse os seus nomes) problema deles...estava em estado de necessidade desculpante, pelo que poderia quebrar a regra geral.
Difícil? Pois, se calhar...mas para mim, é claro. Vamos ver o que daquilo eu aplicaria aos teus casos, Helena, ou acrescentaria ainda.
a) «quando a nossa filha nos conta que a filha de amigos nossos anda a fumar haxixe aos catorze anos?» Resposta: conta-se! Estado de necessidade: a protecção da saúde da miúda legitima a denúncia (o problema é que nos arriscamos a ter a nossa própria filha aos gritos dizendo «a X... nunca mais me fala» - mas não podemos confundir «o que se deve fazer» com os códigos juvenis e até com o risco de o nosso filho não mais nos contar nada).
b)«quando desconfiamos que um professor tem tendências pedófilas, mas não temos nada na mão?» Resposta: antes de mais, o problema aqui não é o de denunciar ou não um pedófilo, que estamos certamente de acordo que tem de ser denunciado (legítima defesa). É antes o facto de «não termos nada na mão». Quanto a isto, é preciso não esquecer que à polícia cabe colher provas; o cidadão, as mais das vezes, não consegue ter mais do que suspeitas baseadas em indícios. Assim, terá sempre de pesar as suas suspeitas e escolher se prefere pecar por defeito ou por excesso (espero nunca me confrontar com uma situação dessas).
c) «Ou quando temos a sensação que a criança dos vizinhos apanha "demais" (o que é "apanhar demais"?)» - Resposta da alínea b) ipsis verbis.
d) «Em Portugal há condutores completamente irresponsáveis, que fazem manobras que põem em causa a vida de outras pessoas, mas ninguém os denuncia à Polícia» - Resposta: Helena, se não o fazem é por inércia que, no caso, os torna cúmplices, porque não há razão moral que justifique a omissão de denúncia (é como ver um incêndio a iniciar e não avisar o 112)
Ai, querida Helena... por favor, achas que vais conseguir arranjar outros dilemas ainda maiores? É que o teu espírito criativo é prodigioso, não sei se conseguirei respostas para todos. Já estas são a minha maneira de ver as coisas e nunca verdades absolutas, quanto mais... ;))
Antuérpia,
obrigadíssima!
Nunca mais decido nada sem te perguntar antes, porque resolves as coisas com muita mais clareza que eu!
:-)
Quanto aos casos práticos (e isto não é criatividade, isto é mesmo a minha vida, que dava um filme...):
a) O nosso problema é que a Christina furou a confiança da amiga, e está numa fase em que as amizades lhe são extremamente importantes. Se nós fizermos alguma coisa, ela vai ficar muito mal não apenas perante essa, mas perante todo o grupo.
Chegámos a pensar em enviar uma carta anónima aos pais - imaginas-me aqui a colar letrinhas cortadas do jornal? ;-)
Fizemos duas coisas: acertámos com ela que, se a amiga passar para drogas mais fortes, temos mesmo obrigação de avisar os pais; e eu vou dando as minhas pistas aos pais, tipo "elas fazem muitas asneiras quando saem para os concertos ou as festas..."
Mas os pais parecem preferir acreditar que a filha deles não faz nada disso.
Para nós, o caso não está totalmente encerrado. É que alguns amigos nossos dizem-nos que haxixe não é tão grave, mas no entretanto sabemos que, consumido nestas idades, pode ter consequências graves de epilepsia. Felizmente, parece que a miúda ganhou juízo.
"Parece", vês? Bom dia, avestruz.
E que dizer da outra, de quinze anos, que mente à mãe para ir para a noite berlinense?
b) O nosso problema (real, eu bem te digo que a minha vida...) é não saber se estamos a sonhar coisas, ou se há um risco real. O nosso filho está protegido: quando nos pareceu que o professor estava a chegar demasiado perto, mandamos-lhe um e-mail muito delicado mas firme a dar um "chegue para lá". E ele afastou-se (e deixou de me cumprimentar nos corredores da escola). Mas será que é? Será que, não sendo, a entrada da Polícia na escola vai provocar desconfianças que dão cabo do seu bom nome?
Mas deste-me uma boa pista. Vou pegar nos e-mails trocados e levar a alguma associação de apoio a crianças vítimas de pedofilia, para ver se eles detectam alguma tendência.
c) Esta é mesmo uma questão cultural: a gente até sabe o que devia fazer, mas quem é que chama a Polícia para se meter entre pais e filhos, entre marido e mulher?
Há anos falou-se muito num caso desses que destruiu uma família e a confiança entre os seus membros. A menina de dois ou três anos contou no infantário umas histórias mirabolantes (sonhos estranhos com fogo, coisas assim) e a educadora pressentiu nisso abuso sexual, chamou a Polícia, que foi investigar, e acabou por criar imensas desconfianças no casal e dentro da cabecinha da miúda. O casal acabou divorciado, e a menina começou a ter medo dos gestos de ternura do pai. "Tu podes fazer isso?", perguntava ela.
d) Uma vez o Joachim denunciou à Polícia um condutor que repetiu à nossa frente duas manobras perigosas. O homem perdeu a carta de condução durante seis meses. Quando eu contava isto em Portugal, o pessoal ficava com um ar muito embaraçado. Como se o maior erro tivesse sido cometido pelo Joachim.
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