10 fevereiro 2010

véu integral: respeito pela liberdade ou indiferença e comodismo?

Na semana passada, enquanto nos blogues e jornais se andava a discutir a burqa, por coincidência estava eu a ler "O Menino de Cabul" (Kite Runner) e "O Livreiro de Cabul", e a folhear um livro chamado "Vendidas, Escravizadas, Forçadas ao Sexo - o Grande Negócio com a Mercadoria Mulher".
Não são leituras recomendáveis para os momentos antes de adormecer - vão por mim, que passei três noites seguidas com pesadelos.

De modo que, se me falam em respeitar a liberdade das mulheres que usam burqa, a única coisa que me ocorre é um riso muito amargo.

Falei antes sobre a burqa como protecção.
Resta: a burqa como imposição, como escolha livre ou como manifesto.

(1) A burqa como imposição é uma questão simples de equacionar. Sem sombra de complexos: imposição do uso de burqa ou niqab é intolerável na nossa sociedade. Também o é nas outras, mas não precisamos de ir mundo fora a missionar outras culturas, ou melhor, outras equações de poder - eles chegarão lá e, graças ao papel globalizante da internet, talvez bem mais cedo do que se pensa.
Quem impõe a uma mulher o uso de véu integral deve ser punido. Estas mulheres precisam do apoio de um Estado atento e consciente das suas responsabilidades, que as proíba de esconder o rosto, e as obrigue a frequentar aulas de informação e debate sobre princípios fundamentais da sociedade em que vivem, direitos das mulheres, apoios existentes. Se são estrangeiras, têm também de frequentar aulas obrigatórias de língua, até passarem um exame de nível médio.
E para os que acham que a proibição da burqa no espaço público é contraproducente, porque sem ela a mulher não será autorizada a sair de casa, afirme-se com toda a clareza: um homem - ou uma mulher, ou uma família, ou um clã - que proíba outra pessoa de sair à rua está a incorrer no crime de (deixa-me ir ver os nomes ao processo do Fritzl) cárcere privado, prática de escravidão e coerção.


(2) A burqa como escolha livre, fundada numa determinada noção de recato ou pudor:
Ninguém nasce com a necessidade de tapar integralmente o seu corpo no espaço público. Esta noção de recato é um dado cultural, e como tal pode ser analisado e posto em causa. Até que ponto podemos/devemos assistir indiferentes a esta espécie de automutilação? Uma mulher que anda camuflada no nosso espaço público coloca-se numa situação de profunda dependência. Como é possível estudar, fazer desporto, fazer a síntese da vitamina D e arranjar um trabalho independente sob uma burqa? Como é possível que uma sociedade que investe imenso na igualdade de oportunidades permita que determinados factores culturais soneguem às mulheres as condições básicas para essa igualdade?
Antes de se equacionar a questão como uma liberdade de escolha baseada num contexto cultural, há que questionar, por um lado, o modo como esse elemento cultural é passado à mulher e, por outro, a sua legitimidade no contexto social europeu - ou até no contexto da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Do meu ponto de vista, o uso da burqa não chega a ser tão grave como a excisão do clítoris, mas pertence à mesma família ideológica: a mutilação feminina como forma de manter a mulher pura e recatada.

Por outro lado, se queremos equacionar a questão em termos da liberdade da mulher, temos de assegurar que essa liberdade existe realmente. Não vamos nós incorrer no erro de mascarar uma mistura cínica de comodismo, indiferença e até xenofobia sob o nome de respeito por outras culturas e pela liberdade.
Há um livro, de cujo nome infelizmente não me consigo lembrar, que conta a história de uma turca que cresceu na Alemanha, apanhada entre as tradições arcaicas da família, sem a rede de uma família alargada e de um meio social que interponham um pouco de bom senso naquele exercício de poder absoluto patriarcal e, por outro lado, os professores das escolas alemãs que preferem não se meter nesses assuntos de famílias turcas, e optam por ignorar os apelos da rapariga. As passagens que me chocaram mais nesse livro são as que descrevem a demissão dos alemães testemunhas do sofrimento da jovem.
Continuando a usar o exemplo dos imigrantes turcos na Alemanha, situação que conheço melhor: muitos deles têm tradições mais retrógradas que a sua própria sociedade. Sinal disso é a edição alemã do jornal „Hürriyet“, muito mais conservadora que a edição turca, lançada numa ignóbil caça às mulheres turcas que se tentam emancipar e dão visibilidade às condições de vida que lhes são impostas pelo seu contexto cultural. Por falta de contacto com a sociedade de origem e com a sociedade alemã onde (não) se integram, por falta de comunicação e de interpelação por parte de outras perspectivas e sensibilidades, muitos turcos na Alemanha correm o risco de se tornarem fundamentalistas de uma tradição cultural cada vez mais privada, transformando as mulheres nas principais vítimas desta situação de enquistamento e autismo.
Até que ponto é que a sociedade alemã é obrigada a respeitar esta deriva cultural que resulta do afastamento de uma cultura e da recusa da integração na outra?
Mais ou menos a propósito: o Bruno Sena Martins às vezes escreve sobre este tema umas coisas muito inteligentes. Por exemplo, este post.

E depois, há o caso trágico da Hatun Sürücü (aqui, em alemão): filha de turcos, nascida na Alemanha, casada à força com um primo aos 16 anos, fugiu e encontrou refúgio num lar para jovens mães, arranjou um emprego. Foi assassinada pelos próprios irmãos, em pleno dia, numa paragem de autocarro em Berlim. Durante um debate numa escola berlinense, um aluno do oitavo ano de escolaridade comentou: "A culpa é dela. A puta andava por aí como as alemãs". Esta frase é uma síntese perfeita do problema, e da urgência de o encarar e resolver. E este comentário do Presidente da República é uma peça fundamental para a solução: "Não podemos deixar que um falso entendimento de tolerância e procura de harmonia, ou a falta de coragem, conduzam à anulação das regras básicas para a coexistência na nossa sociedade".


(3) A burqa como manifesto.
Algumas questões para um debate:
Manifesto de quê? Reacção a uma sociedade na qual não se sente bem-vinda? Manifesto de recusa dos valores de igualdade entre os géneros e de igualdade de oportunidades, de recusa global desta sociedade, de recusa de regras básicas de comunicação na nossa cultura, de recusa da atitude imoral, decadente e vergonhosa das mulheres ocidentais?
Não há limites para os manifestos?
Por exemplo, o último caso que referi: considera-se liberdade de expressão, ou é já discurso de ódio (a burqa para se demarcar das "putas europeias")?
Quanto à primeira hipótese, a da reacção, só me lembra os miúdos que desatam a bater com a cabeça na parede por se terem zangado com os pais: "é bem feito para eles se eu ficar cheio de dores". A solução é criar um espaço onde todos possam coexistir, em vez de aceitarmos que alguns se fechem sobre si próprios numa atitude que só provoca ainda mais rejeição e afastamento.

Um último apontamento, sobre uma proposta da Comissão francesa que estudou este assunto: dado que onde há um véu integral pode haver uma célula de fundamentalismo e sectarismo, a mulher "escondida" pode ser uma pista gritante para um grupo que deve posto sob observação. Belo paradoxo.
Já não se fazem sociedades secretas como antigamente...

5 comentários:

Gi disse...

Helena, acabei de ler ontem o segundo livro do Khaled Hosseini, a seguir ao Kite Runner, que também li, e recomendo-lho. Chama-se A Thousand splendid suns e é sobre a condição das mulheres no Afeganistão, desde o tempo da monarquia até à invasão americana/aliada. É duma violência enorme, e no entanto, infelizmente, não está tão longe de nós como parece.

Helena Araújo disse...

Gi,
obrigada pela sugestão!
Depois, quando me tiverem passado os pesadelos por causa dos livros que li na semana passada, leio esse...

Sabe uma coisa que me surpreendeu no Kite Runner? A espécie de esquizofrenia em que vive a comunidade afegã nos EUA. Aquele rapaz, por exemplo, frequentava a universidade onde podia falar livremente com qualquer rapariga, mas foi casar com uma (escolhida por ele) com a qual praticamente nunca pôde falar em privado.

Catarina disse...

Li esses dois livros e acheio-os fascinantes. Outro que sugiro, se me permite, é:
“Nine Parts of Desire: The Hidden World of Islamic Women” de Geraldine Brooks.
Não é a primeira vez que visito o seu blogue. Acho-o bastante interessante, informativo e vou, assim, conhecendo a Alemanha, país que nunca visitei.
:)

Helena Araújo disse...

Olá Catarina,
bem-vinda a este cantinho!
Obrigada pela sugestão. Como já disse à Gi: quando se me acabarem os pesadelos...
;-)

A Alemanha é um país fascinante. Só é pena falarem tanto alemão: não ajuda muito os turistas.

Catarina disse...

Pois é… esse alemão é um impedimento! : ) Língua mais difícil!!!!
Estudei Alemão durante uns anos. Evidentemente que como não o pratiquei fui esquecendo gradualmente até que ficou resumido a um “Ich liebe dich” e a “Danke schön”... Ora, assim, não me governo! :)