11 fevereiro 2010

e se...

(foto tirada daqui)
E se, em vez de serem francesas convertidas ao Islão, fossem homossexuais alemães a vestir uma farda de campo de concentração com o triângulo rosa, não para acusar o que aqui se passou há seis décadas, mas porque entendem que essa é realmente a ordem natural das coisas,
- também diríamos que as pessoas adultas têm o direito de escolher em liberdade o que vestem?

***
À procura de uma "farda para os homossexuais", tropecei nesta t-shirt:

(foto tirada daqui)

Em alemão, "KZ" é a abreviatura de "campo de concentração".

Perguntei-me que espécie de sociopata seria capaz de andar na rua a exibir uma frase destas.
Mas: também diríamos que esta t-shirt está protegida pela liberdade de expressão, e que uma pessoa adulta pode vestir-se como muito bem entender?

(Neste caso, tenho a certeza que o Estado Alemão apreendia todas as t-shirts, e mandava para tribunal o autor da gracinha. Por aqui não se brinca com a exibição de ideologias contrárias à Constituição, particularmente se tem a ver com o nazismo.)

Falta esclarecer que aquela t-shirt é americana, para o mercado gay. Admito que seja um manifesto de apoio a um líder do movimento LGTB no Kosovo, conhecido por K.Z., e que foi ameaçado de morte.

A descodificação dos símbolos, portanto.
O que nos remete para a questão inicial: qual é o significado de uma burqa numa rua europeia? Com que intenção é que uma mulher sai à rua exibindo voluntariamente um símbolo ignóbil da subjugação das mulheres no Islão? Porque é que um Estado ("a Nação politicamente organizada"), que intervém profunda e permanentemente em tantos aspectos da vida social, se deve alhear deste?

5 comentários:

D. Ester disse...

não podia estar mais de acordo consigo. não me entra na cabeça que se defenda fervorosamente o direito a usar a burqa, quando ela é tudo menos um símbolo de liberdade. Não vale apontar exemplos ímpares de taradas que usam a burqa porque viram a luz ou sabe-se lá mais o quê, isso é batota da grossa.

Com o exemplo da menina de trela ja chegava, com estes do nazismo completa bem o ramalhete. E mais há para usar, claro.

Helena Araújo disse...

D.Ester,
não tenho a certeza de estarmos de acordo
(ó pra mim a estragar tudo, e estava a correr tão bem...)

Defender a liberdade de usar um símbolo de pura alienação da liberdade é um interessante exercício filosófico, que não deve ser recusado à partida.
Mas também não tem de ser aceite como princípio indiscutível. Essa posição, tendo em conta o que está em causa, é de uma ingenuidade embaraçosa.

No caso das que "usam a burqa porque viram a luz ou sabe-se lá mais o quê", ou seja, as mulheres que usam a burqa livremente e por convicção (grande parte dos casos na França, e o pomo da discórdia nesta discussão): falar disto não é batota, mas pôr o dedo na ferida - queremos aceitar na nossa sociedade a exibição de símbolos e de formas de estar em sociedade em tudo contrárias aos nossos princípios e costumes?

A liberdade, pois claro, mas cada sociedade vai definindo um conjunto de regras e valores básicos para a convivência harmoniosa, o que acaba por coarctar a liberdade de cada um.

Um aspecto fundamental da discussão: e se a exibição destas burqas voluntárias fôr uma declaração de guerra aos valores ocidentais, por parte do fundamentalismo islâmico? Somos tão ingénuos que vamos ignorar que isto está a acontecer? Deve o nosso Estado permitir que isso aconteça?


A miúda da trela, para mim, seria um caso de "adolescência galopante, mas já lhe passa". Pode-se fazer um debate público, pode-se falar da perversão que é uma pessoa degradar-se a animal doméstico, pode-se desatar a rir à gargalhada na cara dela, e até dar-lhe uns biscoititos de cão, mas seria exagerado o Estado entrar a proibir aquilo - o Estado feito educadora de infância...
(A quem me diga que eu devia saber viver e deixar viver, respondo que alguém que se manifesta assim no espaço público tem de estar preparado para as reacções. A liberdade de expressão não é uma via de sentido único, e uma sociedade da indiferença deve ser um lugar muito triste.)

D. Ester disse...

Pois, de facto estava a correr lindamente... e ainda acabamos a discordar, que maçada.

Eu acho que os tais exemplos a dedo são batota sim.

O uso da burqa em público tem várias implicações: às uma, é um simbolo da submissão feminina, e nisso a trela é um símbolo identico. Não sei quem nasceu primeiro, se a burqa ou as perversoes intimas ligadas a relações de dominio-sado-masoquismo, mas aposto o meu dedo mindinho do pé que foram estas ultimas. E se não fosse um certo pudor havia quem viesse à rua pelo direito de usar mascaras de cabedal ou vestir-se a rigor de caniche, ou a andar com os genitasi de fora porque sim. Pela liberdade de expressão. Pela liberdade de se mostrar ao mundo submisso ou dominador, com todo o orgulho. Who cares? A diferença é que nestes ultimos há de facto uma escolha; nas da burqa apenas algumas. De alguma forma faz-me lembrar as negociações de Deus, "se apenas 10 homens bons", "se apenas 5", "ok, 1 chega"

O que me leva à porta nº2, a da identidade. Presumo que a Helena tenha lido os mesmos tintins que eu (manias), e se bem se lembra ele e o Haddock safaram-se de boa à conta de umas burqas bem metidas. Se calhar sou só eu, que desde miuda fico nervosa com palhaços ou outros artistas que escondem a cara, mas não me sinto nada confortável se não puder saber com quem me cruzo. Manias.

Além do mais se uma senhora de burqa me levar a carteira, como faço eu queixa à polícia?

Sabe que nas bombas de gasolina nem servem os das motas se não tirarem o capacete, mas não os vejo a manifestarem-se pelo seu direito à liberdade. E ninguem se importou com eles quando a regra foi instituida.

Não sei se fiz algum sentido, um par de neuronios ficaram a dormir no berço do meu filho...

Helena Araújo disse...

D. Ester,
isto vai mal: eu estou quase quase a discordar de mim própria!
;-)

Mas discordemos alegremente, pois, que isso é sinal de saúde mental, além de que as regras de coexistência social não são uma matemática.
A propósito de discordar, não resito a contar uma montagem que vi numa exposição sobre o fim da RDA: sobre uma foto de uma votação no Parlamento, onde todos os deputados tinham a mão no ar, puseram um cartaz das manifestações de Leipzig que dizia "onde todos pensam o mesmo, pensa-se pouco".

Comecemos pela questão da identidade e da segurança (é que não é só o Tintim, também é o Lagardère - aposto que não é do seu tempo - a entrar disfarçado de pedinte dentro do castelo; e o cavalo de Tróia, que nem sequer do meu tempo é). A segurança foi a primeira ideia que eu tive, no blogue Contemplamento, mas a Abrunho mandou-me passear. Disse-me ela assim:

"O que me incomoda na proibição do uso do véu integral por razões de segurança é a mentira. Neste momento, o que é preciso é discussões honestas. Se os medos reais das pessoas não são abordados de frente pelos seus representantes políticos, continuaremos com os votos nos partidos de extrema-direita ou proibições de minaretes por supostas razões arquitectónico-históricas.

Também me chateia, que se proibam coisas destas, construir minaretes, usar véus integrais, mas que se encolham os tomates quando há algo realmente válido a lutar, como a nossa liberdade de ofender ideias, ou zelar para que as criancinhas não tenham os cérebros lavados. Isto é como os homens que são porreiros com todos e chegam em casa e vingam-se a dar porrada à mulher."

Aqui: http://contemplamento.blogspot.com/2010/01/cara-feia-aos-cara-tapada.html

Helena Araújo disse...

(cont.)
Penso que a segurança é um dos aspectos da questão. Um aspecto importante, mas apenas um entre outros.

E se o Estado Alemão ainda não lembrou às senhoras de burqa que aqui há uma lei
(a "Vermummungsgesetz", sobre a proibição de embuçados, criada na altura em que a RAF aterrorizou este país - e por falar em embuçado, como era mesmo aquele fado?...)
que as proíbe de andar assim disfarçadas na rua, é justamente porque está a pesar o interesse da segurança pública e o interesse de não violentar a liberdade de manter certas tradições culturais.

Para além da questão da segurança, há que discutir que símbolos se podem exibir na via pública (e isto não é uma matemática, é claramente um caso de debate e negociação, 10 justos, 5 justos, etc. e já agora: o que é um justo?, excepto os limites com os quais quase todos concordam. Na Alemanha, por exemplo, não há qualquer dúvida sobre a proibição de exibir símbolos da ideologia nazi.)

Uma outra questão, cada vez mais urgente, é o medo que os políticos ocidentais têm de arranjar sarilhos com o Islão, ou melhor, com o fundamentalismo islâmico (uma das bases do problema é justamente a confusão). E que acaba por resultar nas explosões de pressão social como as manifestações furiosas anti-muçulmanos na Holanda, a proibição de minaretes na Suíça, e a outra estupidez descomunal que foi o caso das caricaturas dinamarquesas.

Quanto à miúda da trela: ela exibe um símbolo de submissão, mas não de uma ideologia de opressão das mulheres. A trela tem uma componente desagradável de animalização e de exibicionismo de certas práticas sexuais, mas é ainda uma questão meramente pessoal e não um estandarte de uma ideologia. Excepto, talvez, a do "a minha liberdade permite-me tudo".
Como já disse no post em que pus a fotografia, uma jornalista alemã, com curso superior e tudo, traduziu para palavras a atitude de submissão voluntária que essa miúda exibe - e ninguém protestou muito. Sumariamente: o lugar da mulher é em casa, o do marido é a ganhar dinheiro para sustentar a família; até o sexo fica melhor se os papéis estão assim bem definidos: o homem domina, a mulher submete-se.

Agora, o que me está a preocupar, e me faz discordar de mim própria, é que me imaginava a oferecer biscoitinhos de cão à miúda (estava a pedir, não estava?), mas achei bem que os homens de Weimar não tivessem assediado a outra que saiu à rua com as nádegas de fora.
Nem eu me entendo...