Um dia que me dê uma coisa muito má, mesmo muito má, queria ter a sorte de ser ajudada por este homem.
E que me dê a cortisona embrulhada em palavrões, se for preciso. Não importa.
Quero ser ajudada por uma pessoa inteira, mais que um correctíssimo técnico da saúde.
Ontem, um amigo comentava que o nosso mundo tem cada vez mais agitações sentimentais, mas falta-lhe coração.
Ora aí está algo que não falta a este homem.
Ecce homo:
Um boi
Temos de conversar mas é difícil porque só eu desejo essa conversa.
Tu não.
Tu, que o amas - ou não queres, apenas, que ele morra, mas acho que o amas e não queres que ele morra (amor cego e iterativo, na presente conjuntura) - não queres falar. Melhor dizendo, não queres que eu fale. Eu quero, tu não.
Fácil é chamar-te burra. Não és. Não queres, simplesmente, ouvir-me.
Fácil é chamar-te tonta. Não és. Não queres dizer o que eu penso que já sabes mas, repara, parece-me que sabes: o que se passa é que, se concordares comigo, assim chorando, é como estarmos os dois a assinar um pacto de "sabença" dele quando ele está de costas. E mais: ele nem chora. Ele anda ali.
Falamos aqui, ela, eu e os senhores, dum homem que tem um feitio difícil, uma mentação teimosa e uma ignorância granítica. Um discurso rude de duriense amável. Não sabeis o que é? Não vos explico.
Perante um cancro espalhado, um Ganges lento dentro dele - lento até ver -, nem ela (que o ama, que se ama e que, sentindo-os bem, se lhe recusa em parte), nem ele (que tem da doença uma noção complexa e difusa, como só os teimosos e os amblíopes do pensamento conseguem ter de tudo), nem eu (que acabo por nem saber como lhes dizer, nem o que lhes dizer, aliás, que sei eu também desta merda senão o que me parece?), nenhum de nós parece estar aqui muito seguro de estar a navegar em águas calmas, embora o rio siga ainda quase liso.
Sei isto: ele vai morrer e não sei quando, mas sinto que se abrevia; sei do quê: sei do que vai morrer, se antes não se acidentar. Quando é que não sei. Sinto que não demorará. Sentir é vão. Vão então para o caralho.
Sei isto: nem ele nem ela vão ser-me fáceis no declive dele, independentemente da demora.
Sei ainda isto: pagam-me para esta merda mas isto é fodido vezes demais e peço desculpa por vos deixar na dúvida sobre o facto de "se te pagassem dez vezes mais que o que te pagam era menos fodido, era, ó besugo de merda?", mas a verdade é que não, não era, era igual, era fodido na mesma.
"Era fodido - e é - mas é para ele e para ela, ó boi!" - poderão atirar-me esta pedra, aos guinchos.
Levo com ela. Em cheio no focinho, onde quiserem acertar-me.
Já não sei responder muito bem a muitas das perguntas que me fazem, quanto mais às que me faço eu, um boi destinado à lapidação.
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