Escuso de me armar em especialista: até ontem à noite não sabia nada sobre esta mulher, nem sequer sabia que na Roménia há uma minoria, os "suábios do Danúbio", que fala alemão.Mas entre o noticiário de ontem e o Spiegel online de hoje (está muito bom!) desvenda-se-me um novo mundo.
Alguns apontamentos:
"Sabes que o Nobel da Literatura veio para Berlim?" é uma frase que encerra o essencial. O Nobel não vem para a Alemanha, mas para a cidade onde mora uma escritora cuja única pátria é a língua alemã (onde é que já ouvi algo semelhante?) - para mais um alemão algo diferente, um enclave da língua.
A escritora nasceu na Roménia, no seio de uma minoria perseguida. Essa experiência atravessa a sua obra e confere-lhe uma relevância especial no nosso tempo - algo que talvez tenha pesado bastante na decisão de lhe atribuir este prémio.
Resumidamente (esta parte vem da Wikipedia alemã): no princípio do séc. XVIII, e após a retirada turca, a região do Banato, bastante despovoada, foi objecto de um enorme esforço de colonização por parte dos austro-húngaros, para o que foram atraídas pessoas provenientes sobretudo do sul da Alemanha. Em 1920, o Tratado do Trianon desloca a região da Transilvânia, da qual o Banato faz parte (claro que não podia omitir esta importantíssima informação!), da Hungria para a Roménia. Esta mudança teve, de início, repercussões muito positivas para a reanimação da cultura alemã daquele grupo, já que pôs fim ao esforço húngaro de assimilação de todas as minorias étnicas. O despertar de um certo nacionalismo evoluiu naturalmente para uma posição de simpatia em relação aos projectos de Hitler - tal como, aliás, aconteceu com outras minorias alemãs do Leste da Europa. Quando, em Agosto de 1944, a Roménia trocou o Terceiro Reich pelos Aliados, os alemães do Banato passaram a ser vistos, de um dia para o outro, como inimigos. E a situação piorou com a chegada do Exército Vermelho. Em Janeiro de 1945, grande parte da população foi enviada para trabalhos forçados na União Soviética, de que resultaram vários milhares de mortos. Os que puderam ficar no Banato foram expropriados, e muitos foram transferidos à força para outras regiões da Roménia. A partir de 1955 a situação deste grupo melhorou sensivelmente (regresso à região e recuperação dos direitos que lhes tinham sido retirados no fim da guerra), para se degradar de novo na época de Ceausescu, devido à sua política de combate às minorias étnicas.
É neste mundo que Herta Müller nasce a 17 de Agosto de 1953, e é dele que foge quando, em 1987, vai morar para Berlim.
O Spiegel, e particularmente este comentário de Ulrich Baron, descreve uma quase-apátrida, emocional e crítica, profundamente marcada pelo seu passado. Uma mulher que luta contra o esquecimento e a condescendência em relação aos crimes do comunismo. Uma escritora que inventa expressões novas quando a realidade excede as palavras disponíveis: "época de pele e osso", "envenenamento de luz", "anjo da fome", "baloiço da respiração" e "pá do coração". Uma figura frágil, tímida perante as câmaras fotográficas, dizendo com um sorriso: "não sou eu - são os livros!". E remata: este prémio refoca o olhar sobre uma Europa de identidades baseadas não na nacionalidade, mas nas ligações culturais.
Não conheço os livros, mas gosto de alguns nomes que escolheu. Especialmente este: "Hoje preferia não me ter cruzado comigo". Outro, "Hunger und Seide", dará um belo trocadilho em português: "Fome e seda".
E não me sai da cabeça esta imagem: em cima da sua mesa de trabalho há uma caixa cheia de palavras.
Uma caixa cheia de palavras.
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