11 setembro 2009

"mães do bairro"



(foto daqui)


Neukölln é um dos bairros mais complicados de Berlim, devido ao elevado número de residentes estrangeiros que não se conseguem integrar na sociedade alemã. Há escolas onde 90% dos alunos têm outra língua materna, a percentagem de alunos que conseguem aceder ao Gymnasium (a vida de ensino que conduz à universidade) é muito baixa, a taxa de desemprego é altíssima - em suma: um bairro com altos níveis de frustração, desmotivação, indiferença e raiva surda.
Há cerca de cinco anos surgiu aqui um projecto surpreendente: mulheres imigrantes, desempregadas, recebem uma formação de seis ou sete meses, e a tarefa de visitar famílias estrangeiras para conversar com as mães, na sua língua materna, sobre temas como emigração, cursos de alemão, saúde, direito e direitos, educação, chegando mesmo a ajudar na resolução de problemas específicos como a escolha de um infantário e a respectiva inscrição das crianças.
Para 2009/2010, o governo de Berlim disponibilizou 8,4 milhões de euros para este projecto. Li um artigo de jornal onde se relativizava este montante, lembrando o custo anual de um lugar numa casa de correcção juvenil.
Por outro lado, as "mães do bairro", que recebem um salário mensal de cerca de 700 euros, são mulheres que anteriormente recebiam apoios da Segurança Social - o projecto transforma uma dependência na prestação de um serviço importantíssimo, oferecendo às mulheres autonomia, autoconfiança e um novo papel no contexto familiar.

Recentemente tive a sorte de conhecer uma destas "mães do bairro", numa visita guiada a um pequeno oásis em Neukölln, a área à volta da Richardplatz.
Começou por nos apresentar uma mesquita turca, instalada num antigo edifício industrial. Imagine-se um pavilhão de orientação norte/sul, atravessado por linhas diagonais de tapetes na direcção de Meca. A princípio, achei graça à disposição dos tapetes, mas ao fim de alguns minutos deixei-me encantar pela dignidade daquele ambiente, o rendilhado dos azulejos, as cores calmas. Esqueci os tapetes oblíquos, os tectos relativamente baixos, as janelas industriais a norte e a sul, os candeeiros rasos e baratos.
A nossa guia, turca e muçulmana, ia explicando os rituais e as regras, a distribuição dos espaços do complexo, a organização financeira. Estamos no Ramadão, mas ela não faz jejum, nem permite que a sua filha, de sete anos, faça.
- E os outros, não a criticam?, pergunta um de nós.
- Não. O Ramadão é uma oportunidade que nos é dada para nos purificarmos. Eu decido em liberdade se quero aproveitar esta oportunidade ou não.
- Porque é que não permite que a sua filha o faça, se ela quer fazer para ser igual às outras crianças da escola?
- Porque é muito violento: é preciso acordar a criança às quatro da manhã para lhe dar a primeira refeição, e deixá-la dormir de novo até às sete, hora a que se prepara para ir para a escola. E passa o dia inteiro sem comer, até ao pôr-do-sol.
- Quando visita famílias que deixam as crianças fazer jejum, diz alguma coisa?
- Sabe, quem como eu anda pela rua sem cobrir a cabeça não tem muito a dizer na casa de pessoas que dão mais valor a certas regras do Islão...

Começa a contar: sobre as famílias em busca de segurança identitária, refugiando-se em tradições ultrapassadas que nem na própria Turquia se encontram mais; sobre a mulher com quem se encontra às escondidas do marido, uma turca de casamento arranjado que está presa em casa sem a menor ideia dos direitos que tem nesta sociedade; sobre uma mãe que lhe diz "que é que você me quer ensinar sobre educação sexual? você tem dois filhos, eu tenho quatro - acha que sabe mais que eu?" (fosse comigo, respondia-lhe logo: "sei mais, sei: sei como é que se faz para ter apenas dois"); mas também sobre as dificuldade burocráticas: não quererem que ela faça este trabalho porque não recebe apoio da Segurança Social, não deixarem que as "mães do bairro" dêem apoio a jovens famílias alemãs, que afinal também precisam, mas estão sob a alçada de outro serviço público.

E mostra o bairro. O café turco onde só podem entrar homens (diz com um sorriso: "eles precisam de um lugar a salvo das mulheres"), o café onde só podem entrar mulheres (foto), ao lado de uma oficina de ferreiro histórica onde agora se fazem peças de design. No seu alemão ainda frágil, conta a história do bairro de refugiados protestantes que encontraram asilo em Berlim quando na Boémia o catolicismo voltou a ser a religião oficial. Leva-nos por pátios e parques escondidos atrás das fachadas, conta-nos sobre os projectos de espaços e actividades multiculturais - e são tantos! Mostra-nos o jardim de Comenius, um jardim criado recentemente no espaço deixado livre pela demolição de um velho bloco habitacional. Conta que é um lugar especial, onde até os adolescentes mais agressivos ficam pacíficos. "Milagre", penso eu, mas logo a seguir percebo o truque: a população definiu as regras de utilização do local, e o gestor do jardim está permanentemente presente e atento, quer oferecendo em cestos convidativos a fruta que colhe das árvores, quer exigindo o cumprimento das regras ao primeiro sinal de infracção.

De repente, damos connosco a olhar para as casas, a pensar que gostaríamos de recuperar "aquela" oficina abandonada no pátio cheio de árvores, ou talvez fazer um apartamento com terraço no cocuruto de um dos belíssimos prédios arte nova - e morar ali. Ali, no coração de Neukölln.
Duas horas com uma "mãe do bairro", e os nossos preconceitos vão parar às ruas da amargura.

O passeio terminou onde tinha começado: na Richardplatz. Jantámos num restaurante que usa o pátio de um comerciante de velharias. Entre velhas cadeiras de dentista e trenós de madeira, comemos bruschetta e pizza. Preço: 2 euros por pessoa.
Também podíamos ter ido ao Louis, um restaurante de comida austríaca, mesmo ao lado. Consta que tem a maior Schnitzel de Berlim - um prato (por 12 euros) chega bem para três adultos. Estou mortinha por voltar a Neukölln e verificar com o meu próprio estômago...

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