Aconteceu num blogue português (mas vai sem links, porque o que interessa é o que aconteceu e não quem o fez), e parecia aqueles e-mails que andam pela internet com o título "Portugal no seu melhor".
A história conta-se depressa:
Um rapazinho de três anos começou a achar graça à palavra "puta". Os pais explicaram porque é que ele não podia usar essa palavra, mas ele gostou de a usar. O pais tentaram tudo: ignorar, castigos, ameaças, quarto escuro "e, claro, porrada" (admito que alguns destes recursos possam ser mera figura de estilo, para tornar o texto mais "engraçado"). O miúdo insistia, e a mãe, em desespero de causa, deitou-lhe na língua um molho industrial à base de malagueta. Depois, foi para a internet contar este incidente de uma forma muito divertida. Choveram comentários tipo "o que eu me ri!" e "educação é assim mesmo".
A cena passa-se não no Portugal profundo mas, aparentemente, numa família de classe média de Lisboa.
***
Repito: não interessa quem fez.
Muito mais interessante é reparar na reacção dos comentadores.
Confesso que fico perplexa perante adultos que conseguem rir com a descrição de uma criança chorando desesperada ao sentir a boca em fogo, como resultado de uma acção premeditada da mãe.
Menos surpreendentes são os comentários "a minha mãe também usava pimenta, e é o que tenciono fazer com os meus filhos": é sabido que as vítimas de violência infantil tendem a repetir os maus-tratos a que foram sujeitos.
A questão é: como quebrar este ciclo de violência que se vai passando de pais para filhos, tolerado pela sociedade?
Parece-me fundamental falar abertamente sobre isto, e dar-lhes o nome exacto: actos de violência quotidiana exercida sobre as crianças, com a cumplicidade dos adultos que os testemunham.
Bater ou provocar de algum modo dores físicas ou psíquicas a uma criança, é sempre uma vitória da força bruta contra a inteligência. Um adulto que precisa de recorrer à pancada, à humilhação da criança, a chantagens e a prepotências várias, já perdeu.
Perdeu a cabeça, perdeu a razão e perdeu a noção das suas responsabilidades de educador e dos limites do seu poder.
Perguntarão: "então, agora, dar um tabefe é crime?"
Não será um crime, mas é um desvio - nunca um método normal de educação (aliás: nem para educar cães serve). Não há motivo nenhum para os pais se gabarem disso.
Chegados aqui, algumas ideias recolhidas de livros que escolhi à pressa da estante (muitos mais há sobre o assunto, e com certeza melhores):
"(...) a educação não consiste em impor à criança uma série de comportamentos. Trata-se de a ajudar a construir-se ensinando-lhe, em primeiro lugar, o respeito por si própria. Respeito que ela apenas poderá adquirir se os adultos que a rodeiam a respeitarem. A criança é um indivíduo de pleno direito, tão distinta dos seus pais que estes a devem sempre "adoptar", isto é, travar conhecimento com ela e aceitá-la tal como ela é."
"(...) "Quero ter poder sobre ti, não permito que vivas sem a minha vigilância."
Se estudarmos os nossos comportamentos educativos, metade de entre eles, certamente, são perversos, tal é a nossa vontade de ter um poder ilimitado sobre os nossos filhos. Mas os nossos poderes são limitados. Como pais, é sobretudo o poder do exemplo que devemos desenvolver, não para impedir a criança de fazer as suas experiências, mas para a armar para estas e dar-lhe os meios de as realizar, em vez de as interdizer."
(Do livro "Profissão: Pais", com textos de Françoise Dolto, publicado pela Editora Pergaminho em 1999)
"Harsh discipline - by which we mean both physical punishment in the form of hitting or spanking and verbal intimidation, which includes belittling, denigrating, scapegoating, and threatening - is not the answer for any child. Not ever."
"Physical punishment is only the half of the picture. Harsh or threatening words leave a mark on a child, too, and boys get an earful. Even parents who wouldn't think of striking a child acknowledge that in anger or frustration they say things or impose penalties that are meant to sting in the same way. And all of it does sting in much the same way: the spanking, hitting, smacking, yanking ways that some adults use to show a boy who's boss, as well as the shaming criticism, sarcasm, belittling, and other verbal intimidation or harsh penalties that so many parents use to discipline or direct a boy."
(Do livro "Raising Cain: Protecting the Emotional Life of Boys")
http://www.amazon.com/Raising-Cain-Protecting-Emotional-Life/dp/0345434854
***
Finalmente, aqui vai uma resposta de Françoise Dolto quando questionada sobre um caso de um miúdo que dizia palavrões:
"Gostaria ainda de lhe fazer uma pergunta. Há uma fase em que as crianças gostam de dizer palavrões. (...)
Usar palavrões significa para a criança ser tão grande como os adultos. É formidável, uma pessoa sente-se mesmo como um adulto. E provoca ainda mais prazer - caso já se seja capaz de fazer isso - escrever os palavrões na parede. Podemos dizer às crianças, por exemplo: "E agora? Que mais palavrões conheces?", e essa fase passa rapidamente. Afinal de contas, não conhecem mais de quatro ou cinco... O pai, por exemplo, poderia dizer: "O quê, só conheces quatro ou cinco?! Olha lá, precisas de aprender mais alguns, para teres sempre algum de reserva para usar no infantário ou na escola". O pai pode então inventar palavrões, mesmo que sejam um disparate qualquer, se não lhe ocorre nenhum outro. Deve dizer: "Isso tudo é para o infantário ou a escola. Aqui em casa, deves viver como os teus pais. Mas é importante que os conheças todos. E se não os sabes escrever, eu ajudo-te". A criança fica feliz. Pode usar os palavrões com os seus amigos, sentindo-se como um adulto; em casa, respeita o estilo que ali domina.
Se as crianças estão no seu quarto e têm a porta fechada, a mãe não devia escutar à porta. Afinal de contas, é o mundo privado da criança. E se, por acaso - o que acontece volta e meia -, as crianças dizem palavrões em frente a adultos, devia-se dizer-lhes: "estamos aqui com pessoas crescidas. Tens de te portar como se fosses uma pessoa crescida..., senão vais parecer um bébé."
Se se tratar de uma criança que, de facto, experimenta a necessidade real de dizer palavrões, a mãe pode dizer-lhe: "Podes fazer isso na casa de banho. A sanita é o lugar certo para o que é sujo. Por isso, vai para lá. Por favor, usa aquele lugar para te aliviares". A mãe ficará admirada de ver que a criança vai para a casa de banho gritar todos os palavrões que conhece, e que depois fica apaziguada. Porque, de facto, tinha uma necessidade de se exprimir.
Tradução minha de um excerto do livro "Alltagsprobleme mit Kindern und Jugendlichen", Françoise Dolto, Quadriga Verlag.
Que é, por sua vez, uma tradução dos três volumes de "Lorsque l'enfant paraît", de 1977, 1978 e 1979.
Sem comentários:
Enviar um comentário