17 julho 2008

uma pequena provocação

Traduzido (e abreviado, e rapidinho, como de costume) do Spiegel, em alemão aqui.



Maravihosa jibóia


Dirk Kurbjuweit


Não há dúvida que este é o maior ajuntamento de espertalhões que existe no mundo inteiro. São 27 - não, são mais. Não apenas os chefes de estado, mas também os ministros dos negócios estrangeiros. Parecem tão inofensivos, assim sentados àquela mesa descomunal, a conversar uns com os outros, mas estão outra vez a preparar alguma. Estão outra vez a preparar secretamente algo Grande nas costas do povo. Há muito que trabalham nisso, tal como os seus antecessores o fizeram já. À revelia do povo de cada país estão a construir a União Europeia, e cada vez mais.
Há 50 anos que é assim: a política faz política contra o povo, e as pessoas só se dão conta disso quando se pergunta a um povo a sua opinião. Aconteceu recentemente na Irlanda, e os irlandeses deram um rotundo não à política dos espertalhões. Recusaram o tratado de Lisboa, assim lançando a União Europeia numa das suas numerosas crises.
Esse foi o grande tema do Conselho Europeu em 19 e 20 de Junho, quando os chefes de estado e do governo debateram sobre o modo de continuarem a fazer política contra o povo sem que este se dê verdadeiramente conta disso.
Na realidade, falaram sobre truques, questões levantadas aos juristas para conseguir fazer avançar o tratado apesar dos irlandeses.
Isto nunca seria dito assim, porque tem um som horrível e não parece Democracia. Mas: e se a razão estivesse do lado dos políticos, com as suas estratégias manhosas, e não do lado do povo, com a sua pretensa sabedoria?
(...)
O que é estranho é que o tratado de Lisboa pretendia tornar as estruturas mais eficientes e democráticas. Por dois anos e meio haveria um Presidente de Conselho, ou seja, um chefe na confusão, a Comissão Europeia ficaria mais pequena, e os representantes dos países e o Parlamento Europeu ganhariam mais poder. Os irlandeses recusaram um tratado que tornaria a Europa um pouco melhor. E porque todos os membros têm de o aceitar, esta decisão põe em causa o todo.
Até agora, a União lembra uma jibóia que está a digerir um vitelo: disforme, inerte - e, no entanto, ameaçadora. Tudo demora imenso tempo. Há 7 anos que se trabalha na estrutura, há 20 anos que os turcos esperam para poderem entrar. Até nas cimeiras em Bruxelas a atividade principal dos observadores é esperar. Demora sempre mais tempo que o planeado. (...) A Europa é demasiado complexa para qualquer calendarização. Em nenhum outro lugar se sente tão claramente como em Bruxelas esse difícil escoar do tempo. Uma pessoa quase se sente no ventre de uma pesada jibóia em digestão.
Muitas vezes a espera não compensa. A Europa não cria momentos de beleza e entusiasmo. Nos países, é diferente. É verdade que raramente a política oferece motivos para nos alegrarmos, mas nos países acontecem de vez em quando aqueles momentos em que parece haver uma reconciliação geral, em que se formam "comunidades agitadas" (Erregungsgemeinschaften), como o filósofo Peter Slterdijk lhes chamou.
O dia 19 de Junho ofereceu à Alemanha um desses momentos de agitação, durante o jogo de quartos de final contra Portugal. (...)
Estes momentos, no quais a maior parte dos alemães se sente feliz por ser alemão, não acontecem com a Europa. Não existem fora do âmbito da política. Mesmo que houvesse volta e meia um jogo entre uma equipa nacional europeia com Ronaldo, Ballack e Sneijder, que batesse por exemplo os chineses por 5:0, a reacção europeia seria outra. Esses momentos não podem existir na Europa porque falta a emoção geral. As emoções são resultado de uma história comum, e a história da Europa só desde há 60 anos deixou de ser uma história de opostos que se resolviam em grandes guerras.
A tentativa do "uns com os outros" nunca é tão espectacular como o "uns contra os outros" - seja nas guerras do passado, seja no futebol dos nossos dias. Na sala de conferências de Bruxelas vemos homens e mulheres que se cumprimentam amigavelmente, e é o primeiro-ministro irlandês, aquele que não fez os trabalhos de casa, quem recebe os cumprimentos mais afectuosos. Mas na Europa, isso não faz de um político um pária - quando muito, a vítima de excessiva indulgência.
É esta a imagem que a Europa dá para o exterior: amigável, pacífica. O que é motivo para desprezo - o continente feminino, Vénus entre os actores da política mundial. E contudo, esse é um motivo para que os adeptos da Paz sintam muito orgulho nesta União Europeia.
É natural que os debates que decorrem à porta fechada de Bruxelas não sejam espectaculares. Mas uma pessoa sente-se bem ao pensar que os representantes de 27 países, com quase 500 milhões de habitantes, se querem entender. Porque o que está em causa é o aumento do preço da energia e das matérias primas, a globalização explosiva, como Angela Merkel lhe chamou. E será que a Alemanha, a Lituânia ou a Irlanda querem ganhar esse desafio sozinhas, contra a China, a Rússia e os EUA?
Há motivos para confiar nestes políticos. Embora na maioria das vezes a sua apresentação em Bruxelas nos faça desanimar do gosto na Europa.
Momentos europeus costumam ser assim: ainda durante o debate, Hans-Gert Pöterring, o presidente do Parlamento Europeu, é enviado para publicitar a causa comum. Pöterring tem o dom de, em menos de 10 minutos, mergulhar a assistência em coma vegetativo. Quem, recorrendo às últimas forças, consegue colocar uma questão, é desviado com virtuosa simpatia para a indefinição. Como não se recebem novidades, não há nada para escrever. Pöterring consegue fazer desaparecer a Europa.
Isto parece ser parte de uma estratégia. (...)
Mas às vezes acontece algo diferente. Às vezes, nestes dias de Bruxelas, acontece um momento de emoção. É rigorosamente proibido escrever sobre isso, porque aconteceu num encontro oficioso de Angela Merkel com jornalistas, à uma da manhã, quando ela regressava de um jantar com os colegas. Um raro momento, em que Angela Merkel se abriu e defendeu entusiasticamente o tratado de Lisboa, a União Europeia, a Democracia representativa. Dir-se-ia paixão.
Os jornalistas não aplaudem, nem sequer no estádio quando a Alemanha marca um golo, mas a seguir a este discurso bateram algumas palmas, por uns momentos, só o tempo de os jornalistas se darem conta que esse é um gesto absolutamente despropositado.
Mas, pssst, ninguém pode ter conhecimento deste belo arrebatamento. Para que não comece a pensar que a chanceler trabalha de todo o coração no aprofundamento da Europa, talvez até sabendo que o faz contra a vontade dos cidadãos.
Até à conferência de encerramento teve tempo de se acalmar. Ali está ela sentada, com aspecto cansado, a dizer "esta cimeira chegou a conclusões que, em minha opinião, nos permitem avançar". Imediatamente se instala o já familiar tédio de Bruxelas, tanto mais que Merkel não tem resultados concretos para anunciar. Os chefes de estado e governo divergiram numa ou noutra questão, conseguiram soluções de compromisso que permitem a todos não perder a cara, e oferecem aquilo que têm em abundância: tempo.
Dão tempo aos irlandeses para decidirem como continuar o processo. Dão tempo ao futuro presidente do Conselho, aos franceses e à Comissão Europeia para prepararem um programa contra os crescentes aumentos de preços da energia e dos produtos alimentares. A única coisa que se ouvirá da Europa, nos próximos meses, será o tiquetaquear de um relógio. Mas isto é, provavelmente, propositado.
"Tédio estratégico" poderia ser o conceito secreto da União Europeia. Sobretudo não atrair as atenções, e muito menos a agitação. Em vez disso, continuar, em silêncio e teimosamente, a despeito de se estar rodeado de desconfianças murmuradas.
Foi assim que os espertalhões criaram nas costas dos povos um mercado comum, o Euro, a extinção de muitos controles de fronteiras e, recentemente, uma política climática exemplar para todo o mundo. Tudo isto estava certo, e faz da Europa um continente onde é muito agradável viver. Oferece momentos monótonos e, no máximo, emoções negativas, mas - apesar da burocracia e outros déficits - é um balanço formidável.
Em referendos, a maior parte disto teria sido travado, ou até rejeitado. Democracia não significa confiança absoluta nos cidadãos. Às vezes o que é verdadeiramente Grande está melhor na mão dos políticos, e precisa de tempo.
Como com a jibóia. Após o longo processo de digestão, é sempre um ser muito mais animado, forte e belo.


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Uma pessoa pergunta-se logo, como é lógico, porque é que a Angela Merkel não fala assim para todos. Eu também queria ouvir algum político a falar empolgadamente sobre a Europa!

Mas o artigo levanta algumas questões pertinentes.

Por exemplo, faz sentido deixar que as coisas da Europa sejam decididas a partir de uma lógica nacional/nacionalista/populista?
Estou em crer que, se os alargamentos fossem objecto de referendo nos países que já estão dentro, Portugal ainda agora estava à espera que os outros povos o deixassem entrar...

A expressão "coisas grandes" também dá que pensar.
Por um lado, parece que se está a passar um atestado de menoridade ao povo. Por outro lado, a gente vê o modo como os referendos são manipulados para todo o tipo de interesses alheios à própria questão do referendo, ouve o modo como o "zé povinho" (isto pode ser dito em qualquer outra língua) se pronuncia, e desconfia que os referendos seriam negativos, se estivesse em discussão, por exemplo:
- a Constituição alemã (sobretudo as partes relativas à tortura, à dignidade do ser humano inclusivamente a do estrangeiro inclusivamente a do muçulmano...)
- a reunificação alemã (por exemplo devido aos avisos do Lafontaine: olhem que vos vai custar muito dinheiro!)
- a integração na UE dos países de Leste ("deixamos de ter fronteiras que nos protejam daqueles ladrões?")

O meu avião sai daqui a duas horas, por isso fico-me por estes três exemplos.

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Até Setembro - um bom Verão para todos!

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