No ano passado, na escola da Christina, alguém do 7º ano (alunos de 12 e 13 anos) esfregou com fezes o saco e o casaco de uma das alunas.
Grande comoção.
Os alunos chocados, as directoras de turma recusando-se a acreditar que algum daqueles miúdos fosse capaz de fazer isso, a mãe da vítima decidindo não fazer queixa na Polícia, para evitar ainda mais embaraços à filha.
Sugeri que as turmas juntassem algum dinheiro para comprar um saco e um casaco novo, e que quem quisesse podia escrever-lhe uma pequena missiva, dando à vítima um sinal de que não está só.
A maior parte dos pais achou a ideia péssima:
- que o facto de ainda se continuar a falar do que aconteceu vai dar muita satisfação ao autor,
- que o saco e o casaco podem ser lavados na máquina, não é preciso andar com esquisitices e comprar coisas novas;
- que isto não passa de uma brincadeira de crianças - de mau gosto, sim, mas uma mera criancice;
- e que se começamos a pagar o que outros estragam, não faremos outra coisa senão dar esmolas.
(Comecei a desconfiar que tinha ido parar ao filme errado)
Mesmo assim, alguns dos alunos deram dinheiro. Contudo, nenhum soube o que escrever.
A escola quis reagir: a directora queria falar com as turmas envolvidas, queriam chamar um psicólogo que faça com essas turmas uma reflexão sobre dinâmicas de grupo, queriam tentar encontrar o/a aluno/a, para lhe facultar a ajuda de que, obviamente, necessita. Mas tudo ficou esquecido, algures entre a confusão moral e o fim do ano.
Pergunto-me: que tipo de valores propomos aos nossos filhos para a vivência em comunidade? Qual é o lugar da solidariedade, da entreajuda, da compaixão, do esforço consciente para um bom ambiente na escola?
Como se equaciona a diferença entre culpa e responsabilidade, de que modo nos empenhamos em acções positivas de integração de uma aluna menos querida?
No que diz respeito à educação cívica, a escola não tem o dever de assumir com clareza o seu papel?
Também me surpreende a reacção dos alunos. Passado o escândalo do primeiro momento, voltaram ao expediente habitual e esqueceram o assunto.
Será que a nossa vida é um constante representar para não ficar mal nos Apanhados? Já perdemos a capacidade de nos escandalizarmos e revoltarmos? Uma das mães com quem falei dizia: "enfim, todos os dias vemos notícias horríveis na televisão, mas não perdemos o sono..."
Será que a overdose de tragédias diárias servidas à hora do jantar nos está a embotar a capacidade de sentir e reagir ao que acontece ao nosso lado, na nossa vida concreta?
Estamos a tornar-nos numa sociedade de zombies individualistas com ar cool?
E é possível piorar: posteriormente, numa reunião de pais, falou-se de algumas maldades que essa aluna fez a outra, uma mãe perguntou "ela não consegue aprender com o que lhe acontece?", e outra continuou "há alunos que dizem que a história das fezes foi merecida!"
Pobre directora de turma, que atura os filhos de manhã e os pais à noite.
***
Pensei muito nesta história quando procurava escola em Berlim, sobretudo porque me tinham recomendado vivamente as escolas católicas, dizendo que é um ambiente protegido e com firmes referências morais.
Das firmes referências morais sei eu: da educadora que trabalhava num infantário católico e foi despedida porque engravidou mas não casou; da directora que, para não correr o risco de perder o cargo, teve de manter em segredo que o marido a trocara por uma muito mais nova. No século XXI, no mundo católico alemão.
Por um lado, compreendo que muitos pais inscrevam os filhos nessas escolas, justamente para que eles convivam com exemplos de opções de vida baseadas nos valores cristãos, e que por isso mesmo se exija do corpo docente muito mais do que boas capacidades pedagógicas. Eu própria, perante o marasmo de valores revelado naquele triste incidente na escola da Christina, me perguntei com que tipo de pessoas e valores os meus filhos são confrontados diariamente, e quis para eles uma escola onde haja referências e fronteiras claras respeitantes ao comportamento social.
Por outro lado, não consigo aceitar a falta de compaixão perante situações de vida concretas, como no caso da educadora que era mãe solteira.
Não será isto fundamentalismo religioso?
O problema é a dificuldade da distinção entre "valores tradicionais" e "valores cristãos".
Mas, convenhamos, se fosse fácil, não era um desafio que já vai em dois mil anos...
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