É a segunda vez que acontece: o Matthias chega a casa e conta que um carro fez assim, e ele fez assado, e o carro bateu na bicicleta dele. Das duas vezes foi a bicicleta dele que bateu no carro, mas isso interessa pouco para o caso: se o acidente envolve uma criança, a culpa é sempre do condutor.
Desta vez foi num bifurcamento perigoso, em que uma rua segue a direito e a via principal vira para a direita. O Matthias queria continuar na rua que segue em frente, e o condutor do automóvel, que queria ficar na via principal, ultrapassou-o e deu-lhe um empurrão tal na roda da frente que o mandou para fora da via. Felizmente não aconteceu mais nada além do susto.
O Matthias ainda teve a presença de espírito de anotar a matrícula do carro, e por sorte um adulto que ia a passar e viu tudo ofereceu-se para ser testemunha.
Telefonei à Polícia. O agente estava com pouca vontade de tomar nota do caso, e mandou-nos ir à esquadra no dia seguinte.
Fomos. Esperámos. Esperámos. Esperámos. O chefe veio explicar que tinha pouco pessoal disponível e que teríamos de esperar mais um bocado. Esperámos. Esperámos.
Finalmente vieram buscar-nos. O agente estava com pouca vontade de tomar nota da ocorrência. Perguntou porque é que não tínhamos ido no dia anterior. Respondi que o colega dele nos mandara ir no dia seguinte. Resmungou algo sobre a preguiça do colega dele. Insinuou que o Matthias não tinha agido de forma correcta. Obriguei-o a reconhecer que a questão não era a culpa da criança, mas a responsabilidade do condutor, e insisti que alguém tinha de ir dizer àquele adulto que deve estar mais atento quando há crianças na rua. Ele acabou por concordar, eu agradeci imenso a sua compreensão e cooperação, e aproveitei para pedir que nos explicasse como é que o Matthias devia ter agido. Não teve outro remédio senão refazer a cena do crime ali mesmo: eu fazia de carro, ele fazia de bicicleta, o Matthias fazia de quem era: um miúdo de 10 anos a aprender para a vida.
Depois começou a escrever todos os dados. Exasperante: usava apenas os dois indicadores.
Quinze minutos para escrever os nossos nomes, a morada, uma breve descrição do incidente. Rezei intimamente para que Deus lhe conserve aqueles dois dedos, porque se lhes acontece alguma coisa o homem tem de se reformar antecipadamente por incapacidade de 100% para exercer a sua profissão.
Chegou um colega, começaram a falar do caso, aproveitaram para criticar o chefe, que "bem podia trabalhar um pouco" (cito) e ter tratado da ocorrência, que no entretanto tinham transformado no terrível "acidente e fuga".
Depois de registar os nossos nomes, comentou em tom de brincadeira que ainda não tínhamos cadastro.
Dei uma cotovelada ao Matthias, "vês como eu tinha razão com aquela insistência em usar disfarces quando assaltamos os supermercados?"
Ele riu-se. O polícia não achou graça, mas não tinha hipótese: foi ele quem deu o exemplo de desrespeito à autoridade.
***
Odeio deixar os miúdos andar de bicicleta na cidade. O meu marido insiste que eles precisam de movimento, e que não crescem bem se nós insistirmos no uso da redoma.
Está certo. Não me dá jeito nenhum, mas está certo.
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