20 dezembro 2006

dantes é que era bom

A propósito nem sei de quê, o simpático técnico que veio fazer a montagem da lareira começou a contar das férias que tem feito: Albufeira (gostou muito), Ilhas Maurícias, Maiorca, e por aí.
Daí passou para a queda do muro, e de como em tão pouco tempo tanta coisa mudou.
Palavra puxa palavra, contou que fez serviço militar numa zona terrível da fronteira. Andava com os cães para trás e para a frente, sempre com medo de levar um tiro ou de ter de dar um tiro. Por sorte, nunca aconteceu nada.
Depois, contou da polícia e dos medos que todos tinham, e depois...

"Sim, era um Estado fortemente policiado, isso era, mas - pensando bem - estávamos melhor. O sistema de ensino e o sistema de saúde eram muito melhores, nada que se compare com esta miséria actual. Todos tinham trabalho, e ninguém se preocupava com o futuro, com o preço do tratamento médico, com a reforma. Ainda ontem recebi uma carta do meu seguro de saúde, aumentaram-me o preço em 66 euros por mês. O dinheiro não vai chegar para nada! Que será de mim quando chegar à reforma?!"

Se ele não tivesse falado das Ilhas Maurícias, a economista que dorme em mim não tinha um sobressalto.
Mas falou, e deu-me para fazer contas: "dantes", havia todo um povo que trabalhava arduamente e recebia em troca, do Estado, uma porcaria de um Trabant ao fim de 10 ou 15 anos, um quarto com casa de banho comum no corredor ou o apartamento possível em Plattenbau de péssima qualidade, ou talvez em casas antigas com sistemas de aquecimento pré-arcaicos. "Dantes", era um povo habituado a fazer bicha para comprar produtos essenciais (caso não se tivessem esquecido de os prever nos planos de produção), que aproveitava as raras viagens ao Ocidente para comprar aquecedores eléctricos, que se alegrava com os pacotes que amigos ou familiares da Alemanha Ocidental enviavam: café, chocolate, laranjas. Mas o sistema de saúde era gratuito e todos tinham reforma assegurada.
Quem não estivesse inscrito no partido, ou não estivesse disposto a fazer jeitinhos à Stasi, tinha a sua carreira profissional muito mal parada, recebia as piores casas, esperava ainda mais anos pelo carrinho.
E é claro que ninguém - excepto talvez os bonzos do partido - podia sonhar com férias nas Ilhas Maurícias.

Hoje, as pessoas (mesmo os que vivem inteiramente dependentes da Segurança Social) recusam-se a viver nas semi-ruínas em que viviam há 17 anos (e pelas quais estariam dispostas a entregar vizinhos e colegas, para não dizer a própria avó, à Stasi), trocaram os Trabants por carros dignos desse nome, e uma boa parte delas tem dinheiro suficiente para fazer férias no estrangeiro.

Se os alemães da antiga RDA mantivessem o tipo de consumo e o nível de qualidade de vida que tinham antes da queda do muro, e poupassem o resto do salário para saúde e reforma, não precisavam de ter saudades do tempo em que passeavam cães ao longo da fronteira, cheios de medo de levar um tiro ou de ter de atirar.

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Também vale para o Ocidente: se queremos que o Estado cuide de nós adequadamente na doença e na velhice, temos de estar dispostos a entregar uma parte muito maior do nosso salário.
Podemos, obviamente, exigir mais controle e eficiência dos serviços, bem como a responsabilização dos gestores do erário público. Mas isso não ilude esta lapalissade: se queremos receber mais do Estado, temos de dar mais ao Estado.

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Este é o momento da deixa para os neoliberais - e porque não deixar que cada um trate de si, e reduzir o peso do Estado?
Não, não sou neoliberal. No limite, é mais barato e agradável viver num país com impostos altos mas sem condomínios fechados, nem motoristas para conduzir as criancinhas pelos 300 m de perigosa rua entre a casa e a escola, nem guarda-costas, nem grades nas janelas dos prédios, nem gente a cair de fome pelas esquinas.

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