20 setembro 2006

e de novo a liberdade de expressão

Ia responder à Gabriela e à Céu na caixa de comentários do post anterior, mas acabou por ficar demasiado grande, e cá vai post.

1. "Muito menos, sem ler o que esta' em causa."
Nem eu nem o pessoal que anda por aí a queimar bonecos do Papa leu o que está em causa. Eles foram pelo que lhes disseram, e eu fui pela lógica, baseada em dois argumentos: (1) a que propósito é que um Bento XVI ia fazer assim uma provocação gratuita aos muçulmanos? (2) o público dessa sessão ficou muito surpreendido com as reacções de repúdio, porque ninguém tinha entendido o discurso nos termos em que foi posteriormente interpretado.

Não quis defender o discurso em si, mas - ignorando por uns momentos que o discurso foi proferido por um Papa - o direito de os universitários poderem trabalhar sem censura.
Estarei a ser elitista se afirmo que o mob não tem de meter o nariz nas coisas universitárias que não percebe?
Simultaneamente, tenho compreensão pelos muçulmanos que repudiam certas liberdades de expressão ocidentais. Embora não aceite que o façam com violência, ça va sans dire.

Também não quis dizer que Fulano, professor catedrático, tem mais direitos de se expressar e vale mais que Sicrano, arrumador de carros - antes quis deixar bem claro que um investigador deve poder pesquisar e publicar sem recear represálias de arruaceiros ofendidos. Por inerência do cargo e pelas responsabilidades da instituição, estudar e expor com liberdade é dever e direito de um investigador sério no exercício das suas funções.
Obviamente, também aqui se busca o equilíbrio: saberemos sempre distinguir entre um investigador sério e um mercenário disfarçado de cientista? A comunidade científica saberá fazer a distinção e a triagem?
Até que ponto é que um investigador universitário consegue libertar-se dos seus próprios preconceitos e ideologias?
...E eis como começo a meter os pés pelas mãos. Tenho de ir rever o que disse há meia dúzia de meses a propósito do julgamento de um revisionista do Holocausto e dos autores do relatório sobre a infiltração do lobby israelita nos EUA.

Gabriela, não me peças coerência: faço caminho ao andar.


2. Insisto na importância das intenções. Mantenho que o Papa não quis ofender, ao contrário do jornal dinamarquês que, ao encomendar os cartoons, fez um péssimo uso da liberdade de expressão. Neste caso, houve um comportamento infantil, arrogante e violento ("quem és tu para me dar ordens? já vais ver que faço o que quero e não tenho medo de ti!"), e por isso não tive a menor vontade de aderir ao "somos todos dinamarqueses".
Entre os manifestantes muçulmanos enraivecidos e um jornal prepotente que se esconde atrás do chavão liberdade de expressão, procuro uma alternativa: se o diálogo entre as culturas está extremamente difícil, temos de procurar palavras de inteligência e respeito.
Quanto ao episódio de Regensburg, parece-me que estamos outra vez a ferver em pouca água e que o Papa foi duplamente inocente: sem culpa do que o acusam, e ingénuo.


3. O comentário da Céu responde à minha pergunta sobre o Papa no papel de teólogo ou de político: um Papa não se pode dar ao luxo de brincar aos professores universitários. E tem de estar permanentemente atento ao que diz, e ao que jornalistas mal intencionados possam fazer a partir de frases descontextuadas. Aceito, mas incomoda-me muito. Preferia que os jornalistas não tivessem o direito de torcer a realidade para o lado que mais vende, para que as pessoas com mais exposição não tivessem de andar sempre de sobreaviso sobre as manipulações possíveis.
Insisto na responsabilidade da al-Jazeera e de todos os que participaram nesta manipulação.


4. Sobre a liberdade de expressão, a igualdade e a responsabilidade:

Por um lado, não somos iguais.
A diferença radica no poder do emissor (representante de um grupo, franco atirador, fazedor de opinião, etc.) e no modo - altamente subjectivo - como os receptores se relacionam com esse poder. É por aqui que equaciono a responsabilidade: que as pessoas tenham uma noção do seu poder e das ondas que as suas palavras podem levantar, e que estejam seguras das suas intenções, para melhor poderem argumentar. Para melhor poderem pedir desculpa...
A mesma citação ("Mostra-me então o que Maomé trouxe de novo, e ali só encontrarás coisas más e desumanas, como esta, de que ele determinou, que se propague através da espada a fé que ele prega") tem interpretações e reacções muito diferentes conforme apareça num trabalho de um historiador sobre o ambiente na Europa durante as invasões medievais, neste mesmo discurso proferido por um teólogo menos visível que o Papa, numa entrevista a um político ocidental assustado com as dificuldades de integração dos imigrantes muçulmanos, ou numa "conversa de táxi", passe o preconceito ("e até lhe digo mais: como bem dizia o nosso rei D.Manuel II, a única coisa que Maomé trouxe de novo...").

Por outro lado, na prática não somos livres.
Acabámos de ver o caso do sujeito Joseph Ratzinger, obrigado a uma auto-censura permanente devido ao seu papel de Papa; idem para os políticos; idem para os professores, sujeitos às directivas do empregador; e até nós próprios no quotidiano: a "mentira branca" é um sintoma de que o direito de nos exprimirmos livremente não é o critério único das nossas escolhas.

O actual conflito entre culturas também ameaça essa liberdade.
Do lado muçulmano, temos grupos facilmente manipuláveis dispostos a criticar com violência o que se diz no ocidente.
Do lado europeu, por sua vez, começa a apertar-se o cerco: está a surgir a tendência de repatriar imigrantes que se expressem em tom de desrespeito para com a cultura ocidental, ou que mostrem não ter apreendido os valores ocidentais mais importantes. Dizes "andas vestida como as putas alemãs", ou "as europeias são umas porcas que não se depilam debaixo dos braços e tresandam a suor", e arriscas-te a receber um bilhete de avião só de ida. E veremos o que acontece ao mentor de um rapaz de Berlim que ontem foi entrevistado pela televisão: "Nós não podemos aceitar uma humilhação destas", dizia o miúdo, "o Papa andou à vontade em Munique, mas ele que venha cá a Berlim e já vai ver o que lhe fazemos". "Sabes o que ele disse?", perguntou o jornalista. "Não, mas disseram-me que era intolerável".

Chegamos a um impasse: como podemos defender perante agitadores muçulmanos a liberdade para todos dizerem o que pensam, se expulsamos do nosso território quem diz o que não nos agrada?

Não defendo a liberdade de expressão para todos, sem premissas de sujeito ou intenção, como dizia a Gabriela.
Não se trata de um princípio absoluto, mas de uma busca de equilíbrio, e exige a ponderação do papel e da intenção da pessoa que emite a opinião.

Eu trocaria o conceito "liberdade de expressão" por "liberdade de argumentação".
O que merece ser defendido não é o direito de cada um dizer o que lhe apetece, mas o direito de cada um se poder explicar. Mais ainda: a exigência de se explicar, em vez de se esconder atrás do direito de se exprimir livremente.


5. Voltando ao discurso do Papa: li o texto integral (em espanhol, via Religionline) e penso que o bloco em que cita a disputa entre Manuel II Paleólogo e um persa, sobre Cristianismo e Islão, se insere perfeitamente na estrutura lógica do discurso, e que está claro que se tratava de uma imagem datada - não uma crítica aos muçulmanos de hoje. Se tivesse retirado da citação a frase que chocou o mundo muçulmano, parece-me que o resto da argumentação perderia o seu contexto: «Dios no goza con la sangre; no actuar según la razón es contrario a la naturaleza de Dios. La fe es fruto del alma, no del cuerpo. Por lo tanto, quien quiere llevar a otra persona a la fe necesita la capacidad de hablar bien y de razonar correctamente, y no recurrir a la violencia ni a las amenazas… Para convencer a un alma razonable no hay que recurrir a los músculos ni a instrumentos para golpear ni de ningún otro medio con el que se pueda amenazar a una persona de muerte…»).
À medida que o discurso avança, retrata outras épocas e outros entendimentos da teologia cristã. Infelizmente, como refere o Manuel Pinto, esquece-se de mencionar os momentos em que o Cristianismo também usou a espada.
No fim do texto, regressa a Manuel II:
El Occidente ha estado en peligro durante mucho tiempo a causa de esta aversión, en la que se basa su racionalidad, y por lo tanto sólo puede sufrir grandemente. Hace falta valentía para comprometer toda la amplitud de la razón y no la negación de su grandeza: este es el programa con el que la teología anclada en la fe bíblica ingresa en el debate de nuestro tiempo. «No actuar razonablemente (con «logos») es contrario a la naturaleza de Dios» dijo Manuel II, de acuerdo al entendimiento cristianos de Dios, en respuesta a su interlocutor persa. En el diálogo de las culturas invitamos a nuestros interlocutores a encontrar este gran «logos», esta amplitud de la razón. Es la gran tarea de la universidad redescubrirlo constantemente.»

Parece-me que o Papa não incluiu essa citação para gratuitamente agredir os muçulmanos, mas por ser uma peça importante de um estudo sobre o papel da razão no entendimento de Deus e no diálogo das culturas. Como diz o Cardeal Bertone (já na fase das desculpas):
"Quanto à apreciação sobre o imperador bizantino, Manuel II Paleólogo, por ele citada no discurso na Universidade de Regensburg o Santo Padre não tinha nem tem, absolutamente, intenção de fazê-la sua, mas somente a utilizou como ocasião para fazer, num contexto acadêmico e segundo o que resulta de uma completa e atenta leitura do texto, algumas reflexões sobre o tema da relação entre religião e violência em geral, e concluir com uma clara e radical rejeição da motivação religiosa da violência, de onde quer que venha."

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