O religionline abriu um debate, partindo de uma crítica ao discurso de Bento XVI em Auschwitz.
Embora o post seja antigo, parece-me que vale a pena retomar o assunto, para reflectirmos o nosso tempo.
Um dos pontos da crítica citada, de Daniel Jonah Goldhagen, diz o seguinte:
Benedicto exoneró injustamente a los alemanes de su responsabilidad en el Holocausto y atribuyó la culpa exclusivamente a "una banda de criminales" que "usaron y abusaron" del pueblo alemán, engañado y presionado, como "instrumento" de destrucción. Lo cierto es que los alemanes, en general, apoyaron la persecución de los judíos, y muchos de los cientos de miles que la llevaron a cabo eran ciudadanos corrientes que actuaban de buen grado. No se puede atribuir la culpa del Holocausto, por completo o incluso principalmente, a una "banda criminal". Ningún especialista alemán, ningún político alemán, se atrevería hoy a proponer el relato mitológico que hace Benedicto XVI del pasado.
Confesso que não me preocupa decidir se Bento XVI faz uma leitura correcta do que aconteceu há 60 anos.
Interessa-me muito mais realçar que, neste momento em que a História se está a repetir - com variações de dimensão e horror, mas igual nos princípios que são postos em causa -, o que dissermos sobre a responsabilidade dos alemães no Holocausto pode ser usado contra nós.
Concretamente:
- Há mais de quatro anos que conhecemos fotos de pessoas enfiadas em fatos laranja, guardadas em jaulas sob o sol de Cuba. Sabemos que Guantanamo é um lugar fora do tempo, sem perspectivas e sem lei. Contudo, a nossa vida continua pacatamente. E então: Guantanamo é da nossa responsabilidade, ou da de um grupo de criminosos que se apoderou do poder e usa e abusa do povo?
- Sabemos que os EUA enviam pessoas para interrogatório em países onde se pratica tortura - tortura a sério. Por outro lado, a definição de tortura foi alterada, para que certas práticas de interrogatório e amolecimento dos suspeitos possam ser aceitáveis em território nacional, ou praticadas por soldados americanos - no Iraque, por exemplo. Depois, achamos estranho que eles morram tanto de ataques cardíacos...
Os EUA continuam a ser um país amigo, um aliado. É culpa dos nossos governantes, ou responsabilidade nossa?
- Alguém tem dúvidas que a guerra do Iraque se inseriu numa estratégia de alargamento do espaço económico vital dos EUA? Após a tomada de Bagdad, e antes de o Iraque se ter tornado um inferno, vários países começaram a agitar-se para participarem no saque - mesmo os que tinham rejeitado a guerra. Qual é a nossa parte de responsabilidade nessa guerra? Ou a culpa é de um bando de criminosos que nos enganou?
Deveríamos cortar os laços com os EUA? Mas como, se estamos em plena guerra ao terrorismo, com o Bin Laden à solta, a al-Qaeda em regime de franchising?! Pois...
Se quisermos ser indulgentes com o nosso tempo, teremos de aceitar que o povo alemão do período nazi, assustado com o perigo comunista mesmo ao lado e o perigosíssimo cancro judeu infiltrado no país (propaganda dixit) não tinha condições para discernir e opor-se a um governante tão sedutor e carismático.
E já agora: quem de nós teria a coragem de esconder um estudante árabe, sabendo que ele andava a fugir à CIA, para não ir parar a Guantanamo?
"Ah, a CIA terá as suas razões para o prender..." - mesmo sabendo que muitos dos que estão em Guantanamo não têm culpas?
A SS também tinha razões para prender os judeus - e eram razões tão boas, que extravasaram as fronteiras do país: a taxa de extinção de judeus na Holanda foi superior à da Alemanha, os franceses também se apressaram a colaborar nas deportações, Salazar castigou duramente o diplomata que salvou milhares de judeus, e os Aliados não se apressaram nada a libertar Auschwitz ou, ao menos, a bombardear a linha de comboio que lhe dava acesso.
Estarei a comparar os judeus de Auschwitz com terroristas árabes?
Importa notar que ninguém sabe se os prisioneiros de Guantanamo são terroristas. Se fosse fácil provar isso, não haveria necessidade de lhes criar um estatuto especial. Até que seja provada a sua culpa, não passam de suspeitos de um regime - e que regime! (será que lhes podemos chamar "bando de criminosos"?)
Em Guantanamo, como outrora em Auschwitz, estão presos seres indesejáveis, alegadamente perigosos, bodes espiatórios sujeitos a um sistema que não os respeita como seres humanos.
Não é um campo de exterminação de massas, como foi Auschwitz. Guantanamo, mais em estilo morte lenta, é um campo de extermínio dos princípios de respeito absoluto pela pessoa humana - fundamentais para que Auschwitz nunca mais se repita.
***
Responsabilidade? Nós temos conhecimento dos horrores do nosso tempo, mas continuamos a tratar da vidinha.
Os alemães daquela época não tinham acesso à informação e estavam sujeitos a uma máquina totalitária de propaganda e perseguição. E mais: o horror foi premeditadamente dividido em pequenas tarefas, quase inócuas, para que ninguém se sentisse responsável.
É certo que nenhum especialista ou político alemão se atreveria a fazer este relato do passado. E não é por inverosimilhança, mas por pudor: os alemães habituaram-se a não discutir a questão da responsabilidade, arcando mudos com o peso do Holocausto. Talvez comece a ser tempo de mudarem as bases do discurso.
E é com certeza tempo de deixarmos de falar das responsabilidades dos outros, para assumirmos a nossa.
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