13 maio 2021

ecce mulier

 

Partilho um texto da Isabel Castro Silva, que está no seu mural do facebook. O testemunho mais pungente e certeiro que li nos últimos tempos.

Isto tem de acabar: o assédio na escola, o assédio na rua, o assédio no trabalho, o assédio na família.



#metoo

"Tinha treze anos quando comecei a ser assediada e nada me preparou para o choque. Aconteceu vezes incontáveis tanto na escola como na rua. Na escola todos os rapazes apalpavam as maminhas e os rabos e os genitais de todas as raparigas e levantavam-lhes a saia. Na altura surpreendeu-me e humilhou-me muito que não só as bestas mas também os rapazes que eram simpáticos e que gostavam de mim de um momento para o outro me apalpassem. Os professores e auxiliares que viam isto - e isto acontecia mais ou menos em todos os intervalos - nunca fizeram nada. Hoje em dia surpreende-me a rapidez com que todos, raparigas e rapazes, aceitámos que este assédio era “normal”.
É costume desvalorizar este tipo de assédio. Na verdade creio que nunca ouvi chamar-lhe assédio sexual, mas é disso que se trata. E penso que é na escola que os rapazes aprendem desta forma a pôr as raparigas no lugar subordinado, impotente e ao serviço dos homens que a sociedade lhes reserva. E que as raparigas aprendem que não podem contar com a ajuda de ninguém para combater este assédio e que por isso só lhes resta aprender a sobreviver-lhe o melhor possível. Por esta razão, é urgente acabar com a ideia de que esta forma de assédio é apenas uma brincadeira de rapazes com as hormonas aos saltos ou com o cérebro frito em testosterona.
Na rua comecei a ter homens de meia-idade ou mais velhos a perseguirem-me, muitas vezes à luz do dia e com gente por perto, tal não é o sentimento de impunidade, enquanto me descreviam detalhadamente o que para eles era uma fantasia pornográfica e para mim um potencial cenário de violação. Também aconteceu em autocarros cheios, onde aproveitavam para se roçarem contra mim ou para se sentarem ao meu lado e me porem a mão nas pernas e onde todos os passageiros que se apercebiam da situação, ao ver-me aflita a mudar de um sítio para o outro, fingiam que não viam nada. Passar por homens das obras também passou a ser um suplício. Foi assim a partir dos treze anos que passei a viver com o medo de ser violada. Não que esse medo surja de cada vez que saio à rua, longe disso. Mas basta estar sozinha à noite e ouvir passos atrás de mim a aproximar-se e ele está lá. Basta perceber que um homem de ar estranho e dúbio me está a seguir com o olhar e ele está lá. Basta estar na cama com um homem que ainda conheço mal e que tem uma reacção brusca ou inesperada e ele está lá. Não conheço nenhum medo dos homens que seja equivalente a este, e no entanto é um medo que todas as mulheres têm. E já só esta diferença, já só que os homens não tenham de viver com um medo crónico que condiciona tantas coisas, desde a roupa que se veste às horas a que se sai de casa e aos sítios que se frequenta, já só isso mostra que estamos longe de viver em igualdade.
Tinha dezasseis anos quando certo dia fui ler para as arcadas dos prédios da Av. Estados Unidos da América, enquanto fazia horas para ir para a escola de música que então frequentava. Apareceram 3 rapazes, mais velhos do que eu mas não muito mais, talvez entre os 17 e os 19. Assaltaram-me e eu dei o dinheiro sem oferecer resistência (600 escudos). Mas depois disso não se foram embora. Fizeram-me perguntas como se estivessem a fazer conversa mas sempre com um tom agressivo. A certa altura, quando já tinham começado a tocar-me, pedi ao mais velho (ou pelo menos mais alto), que parecia estar ali com relutância, se já me podia ir embora. O rapaz mais baixo e com uma cara daninha ficou talvez despeitado, disse que o outro não era o chefe e, talvez para me mostrar que quem mandava era ele, agarrou-me por trás, prendendo os meus braços com os dele, que fechou à volta da minha cintura, deixando-me imobilizada. Depois começou a fazer movimentos sexuais. O terceiro rapaz, à minha frente, a rir-se, levantou-me a camisola e fez menção de desabotoar o botão das minhas calças de ganga. Foi só nesse momento, com o zumbido agudo do perigo nos ouvidos, que consegui reagir. Dei um pontapé no peito do que estava à minha frente, o que estava por trás desequilibrou-se, abriu os braços soltando-me e eu larguei a fugir. Se tivesse sido violada nesse dia, teria perdido assim a virgindade.
Quando comecei a sair regularmente à noite, acho que nunca me senti tão insistentemente tocada, agarrada, ignorada quando dizia que não, que não queria conversar, que não queria dançar, que não queria um copo, etc. Era como se os homens, muitos homens, achassem que tinham o direito de dispor do meu tempo, do meu corpo, de mim. E na mesma medida em que achavam que tinham esse direito, achavam que eu não tinha o direito de lhes dizer não.
Já teria 26 ou 27 anos quando um dia, a caminho do metro, sou seguida durante dez minutos por um homem de ar nojento a dizer-me as coisas mais ordinárias, que ora se aproximava muito de mim até quase roçar a boca na minha nuca ora deixava que eu ganhasse distância quando estugava o passo, como um gato a brincar com um rato. Era de dia, umas quantas pessoas caminhavam no mesmo passeio. Quando entrei no metro ele não me seguiu. No dia seguinte, mal saio de casa, ele estava junto à porta e começou a seguir-me e a dizer o que faria comigo. De início fiquei em pânico, porque agora ele sabia onde eu morava, mas passados talvez cinquenta metros o que eu sentia era uma enorme raiva. E num pequeno largo cheio de gente desatei aos berros com ele, chamei-lhe de monte de esterco para baixo; com o indicador da mão direita quase colado ao nariz dele disse-lhe que lhe partia a cara se ele não se pusesse a andar. Ele continuou a balbuciar qualquer coisa, que eu pensei ser nova ordinarice, e já estava a levar a mão atrás para lhe assentar um soco quando percebi que o que ele estava a dizer era: Desculpe, desculpe. E foi-se embora. E nunca mais me perseguiu, ainda que tenhamos voltado a cruzar-nos porque vivíamos no mesmo bairro.
Foi então que percebi que o principal móbil destes homens é muito simplesmente a impunidade. A mais perfeita impunidade. Daí atacarem à luz do dia, com pessoas a passar e até em transportes sobrelotados. E percebi também que, quando uma mulher os ataca de volta, ficam tão siderados que nem têm capacidade de reacção. Desde então, e muitos anos depois de ter começado a ser assediada, comecei a gritar-lhes e a ameaçá-los sistematicamente, por uma questão de princípio, não apenas por mim - pois quando comecei a responder também deixei de ter tanto medo e de me sentir tão impotente - mas por todas as adolescentes e jovens mulheres que são o alvo mais frequente e que são menos capazes de se defenderem do que uma mulher adulta.
Tenho agora 43 anos e continuo a ser assediada. No ano passado, estava eu grávida e um dos meus cães tinha fugido, por isso eu ia muitas vezes à janela ver se o via passar. Numa dessas vezes reparo que do outro lado da rua, frente à porta do prédio, estava um homem a observar-me e a masturbar-se. Gritei-lhe, insultei-o, ameacei-o e ele foi-se embora e nunca mais o voltei a ver.
A última vez que fui assediada estava a dar de mamar num banco público perto da MAC e um homem de 20 e poucos anos ficou a olhar para o meu peito embasbacado. Perguntei-lhe qual era o problema dele. Disse que estava maldisposto e foi deitar-se de barriga para baixo no banco ao lado do meu e não despegou os olhos de mim. Desta vez não gritei nem o enxotei porque não queria assustar a bebé. Quando o meu namorado chegou, a “indisposição” passou-lhe como por magia e ele foi-se imediatamente embora.
Agora a minha bebé tem 5 meses, e quando penso que daqui a 11, 12 anos também a minha bebé, a minha luminosa bebé, será carne para canhão, mais uma menina, jovem, mulher a viver com o medo perene de ser violada, sinto uma revolta maior do que consigo dizer.
BASTA.
É já tempo de as mulheres todas se juntarem e lutarem contra isto. É já tempo de os homens que nunca se aperceberam desta enorme cultura de assédio e impunidade saírem finalmente da bolha onde têm vivido. É já tempo de os homens pararem de ser coniventes com situações de assédio a que assistem ou de que ouvem os amigos a gabar-se.
E é já tempo de os homens que assediam terem medo.
Na foto sou eu aos 13 anos, a idade com que comecei a ser assediada."


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