05 maio 2021

Colette e os sobreviventes

 


O documentário que venceu o Óscar na categoria das curtas-metragens levou-me a dois momentos de 2005, por ocasião das comemorações do 60º aniversário da libertação do campo. Tinham convidado os antigos prisioneiros que ainda estavam vivos e vieram mais de seiscentos, que ficaram alojados durante alguns dias em Weimar. 

O primeiro momento: ao fim da tarde de um desses dias fomos falar com um sobrevivente ucraniano, para o informar sobre a possibilidade de ser operado ao melanoma que tinha no nariz, gratuita e imediatamente. Mas ele recusou-se a falar connosco. Tinham acabado de regressar do Mittelbau Dora, e estavam emocionalmente exaustos. Na altura não percebi o que podia ser mais importante que a ameaça de um melanoma e a operação que lhe podia salvar a vida. Entretanto informei-me um pouco mais sobre o que era o Mittelbau Dora. A reacção de Colette, neste documentário, abriu-me os olhos do coração para o que acontecera nesse dia: voltar a esse lugar - o lugar mais infernal do inferno que era Buchenwald - desperta uma dor que se sobrepõe a tudo, inclusivamente à urgência de operar um cancro. 

O segundo momento: durante umas horas acompanhei André Weiss, psiquiatra residente em Bethesda e co-fundador do Memorial do Holocausto em Washington D.C., que tinha saído de Buchenwald com 15 anos, depois de ter estado em Auschwitz. Um homem jovial e inteligente, muito incisivo (já contei várias vezes: era aquele que adorava a música de Wagner, e conseguia perfeitamente separá-la do anti-semitismo do compositor). André Weiss criticou duramente o formato das comemorações: primeiro, os miúdos da escola de música tinham cantado o Buchenwaldlied muito afinadinhos, mas - afirmava ele, peremptório - não tinha nada a ver com aquilo que ele e os outros prisioneiros cantavam nas marchas para o trabalho. Em plena Marktplatz de Weimar (o que equivale a dizer: entre a casa de Lucas Cranach e a varanda onde Hitler se mostrava para ser aclamado pela população, paredes meias com a família Bach e a dois passos da biblioteca de Goethe), cantou bem alto para me mostrar como era - e vou guardar para sempre esse instante e a exaltação da sua voz. Depois - e foi nisso que pensei ao ver, no documentário, a reacção de Colette ao discurso do presidente da Câmara de Nordhausen - criticou também os discursos intermináveis no cimo do monte. Os velhinhos sentados todos juntos, embrulhados em cobertores e arrumados a um canto, e os políticos e intelectuais de vários países a fazer as suas longas declarações de frases óbvias, um após outro.  

Teria sido muito melhor - sugeriu André Weiss - que convidassem os sobreviventes a fazer de novo a formatura na parada do campo de concentração, repetindo o gesto que realizaram pela última vez todos juntos e voluntariamente após a libertação, antes de partirem cada um para o seu destino.
Isso sim: era um símbolo fortíssimo, e colocava aqueles sobreviventes no centro das comemorações e de novo no centro da sua própria história.


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