23 julho 2018

campeonato mundial de futebol: quem ganhou, afinal?



Provavelmente já todos sabem a história (e até já estarão dois ou três escândalos mais à frente) mas faço um resumo para a meia dúzia de leitores deste blogue que não têm facebook: Trevor Noah, o actual apresentador do programa The Daily Show, fez uma piadinha a propósito da vitória da França, dizendo que o campeonato mundial de futebol foi ganho por África. E acrescentou: "I get it, they have to say it’s the French team. But look at those guys. You don’t get that tan by hanging out in the South of France, my friends". O embaixador da França enviou-lhe uma carta de protesto, e Trevor respondeu-lhe no seu programa. A resposta foi muito aplaudida nas redes sociais, especialmente nos meios de esquerda e anti-racismo. O que me surpreendeu, porque várias coisas me desagradam nesta resposta, e muitas outras me deixam intrigada. Seguindo a ordem da resposta de Trevor Noah:

0. A piadinha inicial não era muito boa - especialmente a parte em que explica porque é que eles não podem ser franceses. A Marine Le Pen não teria conseguido sintetizar melhor. Sai uma colher de sopa para Trevor Noah, "esta por dar argumentos ao inimigo". Além disso, aqueles jogadores não ganharam sozinhos. Há toda uma máquina envolvente: o treinador, os médicos e fisioterapeutas e os meios financeiros, por exemplo. Se entramos numa lógica de dividir segundo a cor da pele, acabaremos a perguntar se estes jogadores teriam o mesmo sucesso numa equipa e máquina exclusivamente de africanos. E logo aí se nota o efeito perverso desta conversa: ainda agora começámos, e já estamos a dividir entre "eles" e "nós". Obrigadinha, Trevor.

1. Admito que Trevor Noah tenha feito uma piada para o público dos EUA sem pensar no modo como seria entendida em França, onde as questões e tensões da identidade e da nacionalidade são tratadas de modo diferente. O embaixador reagiu como era seu dever de representante do Estado francês: afirmou que a nacionalidade francesa não é uma questão de melanina e recusou o racismo subjacente ao discurso de Trevor. Este podia ter dito "ó excelência, era só uma piadinha para o meu pessoal, cá na minha terra a gente ri-se muito" ou "tem razão, excelência, de facto a gracinha é um golo na minha própria baliza, porque estou a repetir os argumentos dos franceses racistas que infernizam a vida dos negros em França". Mas não. Resolveu dar uma lição ao embaixador, omitindo propositadamente a parte mais grave do seu próprio discurso e hostilizando quem, no cumprimento do seu dever, estava a lutar pelos direitos dos negros franceses.

2. Ler a carta do embaixador com sotaque francês é uma artimanha de ridicularização do oponente. Não é a melhor atitude para estar num debate sério.

3. Diz o embaixador: "The rich and background of these players is a reflection of France's diversity" - e Trevor corrige: "não é diversidade, é colonialismo". Não entendeu que o embaixador estava a lutar contra os vícios da herança colonial defendendo uma ideia de sociedade onde há lugar para todos em situação de absoluta igualdade, e optou por atacar jogando a carta da culpabilização. Um luta pela condição de iguais, o outro prefere sublinhar a condição de vítimas - não porque ela seja importante naquele contexto, mas porque lhe permite vexar aquele que escolheu ver como opositor. Qual dos dois serve melhor os interesses dos cidadãos franceses negros?

4. E chegamos a uma questão muito importante: segundo o embaixador, "France is indeed a cosmopolitan country, but every citizen is part of the French identity and together they belong to the nation of France. Unlike in the United States of America, France does not refer to its citizens based on their race, religion, or origin. To us, there is no hyphenated identity, roots are an individual reality". Trevor Noah pergunta: "porque é que não podem ter as duas identidades?"
A pergunta é muito boa, e a resposta dá e dará muito trabalho à Europa. Mas Trevor já tinha dado a resposta errada na piada inicial: não foi a França que ganhou, foi a África, tanto mais que aqueles jogadores não podem ser franceses, porque nem no Sul da França se apanha tal bronzeado. Se esses jogadores fossem simultaneamente franceses e africanos, a piadinha adequada seria semelhante à que fez um jornal espanhol quando Saramago ganhou o Nobel ("Nobel da Literatura - primeiro para Portugal e quinto para a Espanha"). Algo como: "França campeã pela segunda vez, África pela primeira!"
Voltando à questão essencial do hífen: talvez eu esteja condicionada pelo contexto europeu, mas aquele hífen causa-me confusão. Sinto-o não como enriquecimento, mas como estigma. É verdade que os descendentes de africanos não precisam de abrir a boca para se ter uma ideia da origem geográfica dos seus antepassados, mas - em minha opinião - uma sociedade igualitária deve dar a todos o mesmo nome de pertença, e a cada um a possibilidade de aderir aos contextos culturais que entender. Chamar a alguém "African-American" apenas devido à cor da sua pele é roubar-lhe de antemão a liberdade de ser quem quer, porque se parte do princípio que a cor da pele traz automaticamente consigo uma determinada cultura.   

5. Trevor diz que uma das coisas de que mais gosta nos EUA é a possibilidade de as pessoas poderem manter as várias identidades, e dá o exemplo de os irlandeses americanos celebrarem o seu St. Patrick's Day. Confesso que não conheço a sociedade francesa assim tão bem, mas já estive num bar irlandês em Paris a celebrar o St. Pactrick's Day. E não tenho ideia que os franceses filhos de emigrantes portugueses sejam obrigados a abdicar do bacalhau com batatas, e a celebrar o 25 de Abril ou o 10 de Junho na clandestinidade. Parece-me que Trevor está a exagerar diferenças entre os dois países para poder acusar a França de promover assimilação dos outros povos.
Independentemente disso, a questão de fundo é importante: a igualdade da cidadania obriga ao apagamento total de outras identidades? Dizemos que não, mas de facto continuamos - consciente ou inconscientemente - a exigir dos descendentes de estrangeiros um comportamento exemplar a 200%. Na frase seguinte Trevor menciona esta questão, mas de forma bastante infeliz.

6. Trevor explica o que o irrita mais: "quando os emigrantes africanos cometem um crime, são africanos. Mas quando ganham o campeonato mundial, são franceses. O refugiado africano que subiu pela fachada de um prédio para salvar a criança tornou-se francês ao chegar lá acima. Se tivesse deixado cair a criança, era outra vez africano".
Bom, se isso o irrita tanto, porque é que fez o mesmo, só que no extremo oposto? "Ganharam o campeonato mundial? Ah, então não são franceses, são africanos."
Primeiro erro: confunde o discurso nacionalista racista com o Estado francês (calma, a Le Pen ainda não ganhou as eleições). E mais uma vez não percebeu que o embaixador estava do lado dele, e a lutar contra a mentalidade que discrimina e exige mais dos cidadãos descendentes dos estrangeiros que dos outros.
Segundo erro: em nenhum país do mundo se tem automaticamente direito à nacionalidade apenas por se ter entrado nesse território. Enquanto estava no passeio, aquele africano estava sujeito às regras gerais de asilo ou emigração. Mas o gesto de pôr a sua própria vida em risco para salvar uma criança justificou que se aplicassem regras de excepção ao seu caso. E sim, se tivesse deixado cair a criança propositadamente em vez de a salvar de forma tão altruísta, nunca teria conseguido a nacionalidade francesa. Por outro lado, há maneiras menos perigosas de conseguir a nacionalidade francesa - a esmagadora maioria dos negros franceses conseguiu a nacionalidade sem precisar de ser um extraordinário desportista ou de salvar crianças penduradas de uma varanda.
Nem sei porque é que é preciso explicar algo tão simples. 

7. Trevor continua: "I believe context is everything. There are certain things that you can say — like, when I say to my friends, “What’s going on, my ni**a?” And if a white person came and said the same thing, yeah, there’s a big difference."
OK, OK. Entendi quase tudo. Excepto duas coisas:
- O contexto inclui o emissor da mensagem e o seu receptor. Se ele estivesse a fazer uma gracinha para um grupo de amigos, à porta fechada, tudo bem. Mas ele fez a gracinha para o mundo inteiro. Há públicos que vivem em contextos diferentes do dele e podem apropriar-se da sua piada para reforçar um discurso racista. O mínimo que tinha a fazer era aceitar a crítica que o alertava para o problema de outros contextos para além do dele, em vez de fazer a triste figura da outra que achava que, por ter uma avó judia, já podia dar ao seu livro sobre dietas o título "A Dieta de Auschwitz".
- Têm-me ensinado que há um racismo subliminar na simplificação "África" (a África não é um país, é um continente com milhentos povos e culturas) e na associação "pele escura => a terra dele/a é África". Também me impedem de dizer "a palavra que começa com N" por respeito aos negros profundamente traumatizados por este insulto. Trevor afirma que ele pode falar assim, mas eu não posso. Percebo que ele possa falar assim à porta fechada, para uma audiência escolhida a dedo e que ele conheça bem. Mas quando fala nesses termos para uma audiência mais alargada, está a minar o esforço geral - e louvável - para erradicar do espaço público simplificações e palavras que reavivam o trauma das vítimas do racismo.
Mais grave ainda: haverá com certeza coisas que uma pessoa negra pode dizer, e uma branca não pode. Mas a frase que recusa aos jogadores o estatuto de franceses devido à cor da sua pele é racista - independentemente da cor da pele de quem a diz.

8. "When I’m saying they’re African, I’m not trying to exclude them from their Frenchness but include them in my Africanness." - Esta frase é muito boa. Muito boa mesmo. Só é pena aquela maldita frase sobre o bronzeado que não se apanha nas praias francesas.

9. Duas questões finais, ligadas à identidade africana:
- Sabendo que os descendentes de escravos terão mais dificuldade em localizar a sua origem regional mas os filhos dos emigrantes africanos em França não têm dúvidas sobre o país e a herança cultural dos seus pais, parece-me estranho olhar para um negro francês e dizer que é africano - ele provavelmente dir-se-á francês, e talvez também senegalês (ou do Congo, ou do Mali, ou de Madagáscar, ou de qualquer outro país concreto) muito antes de se identificar como africano. Ou estou completamente errada?
- Essa "identidade africana" dos negros que vivem em países de maioria branca: quanto dela é realmente herança cultural da qual naturalmente se orgulham, e quanto dela é reacção a um ambiente hostil que ofende, humilha e rejeita com base na cor da pele?
Esta segunda hipótese põe a nu um sofrimento de séculos, que nos deve envergonhar e impor respeito mesmo - e especialmente - perante aquilo que nos parece uma atitude errada por parte de algum negro. Resta-nos trabalhar para que o mundo encontre um novo equilíbrio, e no futuro nenhum Trevor Noah precise de brincar a propósito de um troféu para se desforrar de um antiquíssimo e continuado sofrimento. 

Ou seja: esteve mal, o nosso Trevor Noah. Mas o mundo está muito pior que ele. E é esse mundo que temos de criticar e melhorar.
Obama, o visionário, aponta a direcção:





5 comentários:

Lucy disse...

Obrigada de uma facebookless

Filipa disse...

A verdade é que Noah adaptou a forma como os EUA encaram a questão da "raça". E a regra é cada vez mais ir pela via identitária, que tão bem serve a extrema-direita.

A frase dele sobre uma identidade não excluir a outra veio tarde, já o mal estava feito. Agora, o que ficou é que os jogadores negros, são, em primeiro lugar, africanos.

Portanto sim, a situação é péssima, mas todos nós temos responsabilidade. Noah afirmou, indirectamente, o que afirmam os neo-fascistas: só brancos (e nem todos os "brancos") poderão ser verdadeiramente considerados europeus. Não há muito por onde fugir.

jj.amarante disse...

Sempre embirrei com o conceito de African-American, sobretudo porque aos que deviam pelo mesmo critério ser chamados Euro-Americans chamam simplesmente "Americans" ou então "Caucasians". Se estão tão certos da importância da Caucásia porque não usar o termo "Caucasian-American"? E aos descendentes dos povos que viviam no México, parte do continente americano, chamam "Latinos", porque foram colonizados pelos Espanhóis que, conjuntamente com os Portugueses são também considerados "Latinos". Já os da Itália não gozam da honra de terem inventado o Latim, presumo que os chamem Italians. E os que foram invadidos são "Native-Americans" todas estas designações são absurdas e preconceituosas. E parece-me que já disse isto mas foi há tanto tempo que talvez valha a pena relembrar

E gostei da referência do Obama, no tempo da Gália não existiam nessa zona do globo Gauleses com pele escura, (embora talvez existissem uns escravos da Núbia e outros do Norte da Europa). Mas actualmente é diferente, existem em França franceses com pele muito escura.

Alter Ego disse...

As vezes penso que se por pensar/ dizer algumas coisas sou racista... às vezes é a piada fácil, outras o estereotipo cultural. Mas nunca em situação nenhuma pensei ou me ocorreu pensar na cor da outra pessoa atrás do monitor. Nunca! Acho que chega de culpabilizar o passado, seja a expansão da europa pelo mundo, a escravatura, todas as coisas horriveis que foram feitas pelo mundo no passado, onde ainda não sabiamos o que sabemos hoje. Chama-se evolução, e nenhum de nós hoje, aqui ao computador, espero eu, iria escravizar como aconteceu no passado, ou ter as mesmas atitudes em variadissimos. Sim, demorou muito, e sim é uma herança pesada para muita gente. Mas somos todos iguais, acho isto tudo errado. Somos melhores que isto. Ouvi comentários em relação à equipa de futebol de frança, pelas mesmas pessoas que coroam o Eusébio como o melhor jogador de Portugal, o Rei, como é tão referido e adorado pelos benfiquistas. É parvo, aceito a piada facil que não magoa ninguém... mas acho inaceitável toda esta situação da equipa francesa e mesmo da alemã... parece que alguem tirou uma foto com o Erdogan e criou logo um problema. ( Não vou falar aqui do quando acho horrivel a historia mais recente da Turquia) Mas acho que temos o direito à nossa liberdade, mas e devemos respeito aos outros.

Helena Araújo disse...

Filipa, se fosse pela via identitária... mas nem isso. Parece que quando perguntaram a opinião aos jogadores em questão, eles disseram que se sentem franceses.

jj amarante, essa história do "latino" tem outra origem. Já ma contaram, e esqueci-me. "Latinos", tanto quanto sei, são os habitantes das Américas do Centro e do Sul. Eu - se bem percebi - não sou latina, sou caucasiana.
A verdade é que tudo isso é de uma estupidez descomunal.

Alter Ego, penso que não se trata de culpabilizar o passado, mas de olhar para o mundo, ver como está e perceber como chegámos aqui. Há ainda muito sofrimento que é resultado directo da acção dos nossos antepassados. O facto de sermos herdeiros da riqueza e das vantagens internacionais que as acções deles criaram obriga-nos também a ser responsáveis perante o sofrimento que essas mesmas acções ainda hoje provocam.