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Marcaram para hoje o funeral da pequenina de dois anos que morreu na semana passada numa cena de perseguição a um veículo cheio de refugiados. Chamava-se Mawda, era curda, e a sua família estava a tentar passar de um centro de refugiados perto de Dunquerque para a Grã-Bretanha.
Ao fim de vários dias, finalmente deram a palavra ao pai da menina, que conta assim a sua versão dos factos: a carrinha estava a ser perseguida por quatro carros de polícia, dois atrás e um de cada lado. A família da menina estava sentada no banco da frente. As pessoas que iam na parte de trás da carrinha partiram os vidros da porta para mostrar à polícia que havia crianças entre elas. A bala que matou a menina foi disparada de um carro à sua esquerda, e era destinada ao condutor.
A polícia confirma que a matrícula do veículo foi motivo de suspeita, e que o condutor não respeitou a ordem para parar. Seguiu-se uma perseguição com vários carros de polícia por mais de 60 km. No momento em que o agente disparou, os carros iam a 90 km/h.
Depois de ler o dossier do caso, o advogado dos pais afirma que a versão destes é largamente confirmada, que os refugiados não tinham armas, e que a arma do polícia - ao contrário do que fora noticiado - não tinha sido disparada em autodefesa num momento em que o veículo estaria a carregar sobre os agentes de uma operação stop.
É este o ponto da situação hoje.
Nas primeiras notícias sobre esta tragédia, há seis dias, antes da autópsia, punham-se as hipóteses de a criança já estar doente ou até morta quando entrou na carrinha, de ter sido vítima da condução brutal durante a fuga, ou atingida por uma arma dos refugiados. Um porta-voz da procuradoria chegou a afirmar que a bala fatal não fora disparada pela polícia. Uma voluntária de um centro de refugiados disse que "é prática corrente deles usar crianças como escudo, para dissuadir os polícias da perseguição". E louvou-se a polícia, que tem a difícil missão de interceptar os traficantes. Disse-se ainda que os ocupantes da carrinha tinham sido detidos e estavam a ser interrogados, podendo vir a ser acusados de entraves de má-fé à circulação, de homicídio e de tráfico de humanos. Ou seja: perante uma tragédia destas, o primeiro impulso das instituições, dos políticos e dos jornalistas foi defender a polícia e tratar as vítimas como se fossem os criminosos.
Essa reacção impulsiva tem lugar apesar de esta perseguição mostrar o absoluto desprezo dos agentes pela vida humana: mesmo sabendo que há muitas pessoas dentro da carrinha, fazem-lhe uma perseguição à maneira dos filmes americanos e disparam sobre o condutor de um veículo que vai a 90 km/h.
Por sua vez, as primeiras notícias põem a nu uma imagem dos refugiados que não nos custa aceitar: mentirosos e manhosos que levam uma criança morta e tentam disfarçar, violentos armados capazes de tudo, bárbaros que usam os próprios filhos para se protegerem da polícia. Façamos um pequeno exercício de imaginação: se tivesse sido uma carrinha cheia de europeus brancos perseguida por um gang, como reagiríamos se alguma autoridade do Estado ou um jornalista pusesse a hipótese de a criança já estar morta quando as pessoas entraram na carrinha, ou de ter sido usada pelos pais como escudo humano, ou de ter sido morta por algum dos outros passageiros?
É isto que mais me choca e envergonha nesta história, nestas histórias: pessoas que fogem para longe do seu país para viver em segurança (*) e dar uma vida em segurança aos filhos, e acabam por ser vítimas da polícia e da política numa União Europeia que se diz muito respeitadora dos Direitos Humanos mas nem repara nos preconceitos que fazem o enorme muro entre "nós" e "eles".
(*) E não tenho problema nenhum em incluir aqui a segurança económica porque, como já disse várias vezes, também nós, portugueses, andamos há séculos a emigrar para ter uma vida melhor. Não há como aceitar que somos um país de diáspora e negar aos outros a mesma oportunidade.
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