30 maio 2017

colírio para os ouvidos



Está a chegar a última temporada do Simon Rattle na Filarmonia de Berlim. Enquanto o Kirill Petrenko não vem pôr à prova a lealdade que tenho àquele meu único e grande amor (e espero sinceramente que me conquiste, porque senão estou desgraçada, que não me dá jeito nenhum passar o resto da vida com saudades do Rattle) tento não perder nenhum dos seus concertos. O problema é que ultimamente os Filarmónicos têm andado a tocar com outros maestros. Deve ser o Rattle a fazer tratamento homeopático aos berlinenses: diluição do princípio activo. 

Em finais de Abril assisti ao programa que repetiram pouco depois em Chipre (Concerto da Europa 2017, pode-se ver aqui até 31.5.17). Era com o Mariss Jansons e o Andreas Ottensamer. Clarinete é o meu instrumento favorito, e se é tocado por aquele bonitinho, então, é colírio para os...
...ouvidos, claro.

Antes do início do concerto troquei duas ou três frases com a senhora ao meu lado. Perguntei-lhe se já conhecia o Ottensamer, e ela olhou para mim com ar de quem se pergunta "mas de que planeta me saiu esta aqui?!"
Ora! Saí do planeta das que pensam que o Ottensamer nasceu só para elas. Um planeta com um único habitante.



Tocaram o concerto para clarinete nº 1 de Carl Maria von Weber. No site da ARD pode ver-se a partir do 18º minuto. No concerto que vi tocou outro encore: variações jazz sobre uma peça brasileira. Estava com uma amiga portuguesa, e apostei com ela que era a "Manhã de Carnaval" de João Gilberto. Na sessão de autógrafos com o solista, ela perguntou-lhe quem era o autor, e ele respondeu:
- Luis Bonfá.
- Ai!, exclamei eu, perplexa, e chocada por ter perdido a aposta.
- Hi!, disse ele, virando-se para mim. Mandei-lhe um grande sorriso para acompanhar o meu "Hi!" a posteriori, porque me dava demasiado trabalho explicar o mal-entendido.

Dias depois, o Simon Rattle veio dar um ar da sua graça com a oitava sinfonia de Bruckner. Não sei que aconteceu, que conseguiu tocar aquela peça de oitenta minutos em menos de dez. Por este andar, um dia destes os concertos dele ainda acabam antes de começar. 

Este fim-de-semana fui ver a Anne-Sophie Mutter, com o Riccardo Muti. Comemorava quarenta anos de colaboração com a Filarmonia de Berlim, e tocava o concerto para violino de Tchaikovsky. Preparei-me para tudo - taquicardia, dificuldades respiratórias, sei lá - mas nada. A música não funcionou. Fiquei a pensar se a culpa seria do Wolfgang Rihm - ela há tempos tocou uma peça dele, e pode bem ter ficado com o violino avariado (anda um Stradivari a criar um violino para isto: sons de camiões a travar...).
Em todo o caso: a Anne-Sophie Mutter tocava, e eu não conseguia apanhar a onda para uma nuvem qualquer. No fim, o público aplaudiu entusiasticamente em pé, o que me deixou a sensação de ter sido outra vez o único soldado que ia a marchar no passo certo.


 

 
Depois de amanhã vou atrás do Simon Rattle para o Schiller Theater. O programa promete: La Damnation de Faust, com Magdalena Kožená a dar vida a uma Marguerite que na encenação de Terry Gilliam é uma judia tentando escapar ao Holocausto. As críticas alemãs à encenação deste antigo colaborador dos Monty Python é devastadora: um cortejo cronológico e simplista com a História alemã como fundo, desde as imagens de Caspar David Friedrich até às câmaras de gás.
Mas diz que, se fecharmos os olhos para não ver todos aqueles clichés, podemos ser salvos pela arte de Rattle a conduzir a orquestra de Barenboim.

Colírio pelos ouvidos.


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