10 janeiro 2016

a "rape culture" não foi levada para a Alemanha - sempre esteve lá

Mais uma tradução - apressadíssima - de um texto publicado há 3 dias na Alemanha (não concordo inteiramente com tudo, mas achei muito informativo):


A "rape culture" não foi levada para a Alemanha - sempre esteve lá

Stefanie Lohaus e Anne Wizorek
6.01.2016

Por estes dias, qualquer pessoa minimamente sensibilizada para a questão da violência sexualizada fica surpreendida - quando não enfurecida. Olhar para a violência na Estação Central de Colónia como se fosse um caso particular, uma excepção que caiu do exterior sobre a "boa Alemanha", é pelo menos tão prejudicial às vítimas desta violência como a utilização do termo "abordagem dançante" para os ataques: uma palavra que menoriza, banaliza e dá um cunho exótico à violência sexualizada e ao roubo.

[avisei que a tradução era apressada - quem souber, proponha outra tradução para "antanzen": um homem aproxima-se de uma mulher fazendo de conta que quer dançar com ela, para a distrair do roubo perpetrado por um cúmplice, ou para chegar suficientemente perto para poder ele próprio roubar os pertences dessa mulher]

Repentinamente, todos os media começaram a falar de Rape Culture - referindo-se à Rape Culture noutros países, como a Tunísia ou a Índia, uma vez que os suspeitos conhecidos pela polícia têm um aspecto de árabe, ou do norte de África, ou seja: não eram homens brancos. O sindicato da polícia anuncia que será difícil atribuir crimes concretos a agressores concretos. Não há a certeza de se conseguir, no caso dos ataques de Colónia, um único julgamento.
Não surpreende que a sociedade e as suas instituições não estejam em condições de proteger as vítimas de violência, e de chamar os atacantes à responsabilidade. E não se pode dizer que esta incapacidade resulta do facto de até agora não se conhecer na Alemanha violência sexualizada. A Rape Culture está há muito instalada neste país. Esta expressão descreve sociedades nas quais a violência sexualizada e as violações existem e são em grande parte toleradas.
Nos eventos com grandes multidões, como a Oktoberfest e o carnaval, repetem-se os ataques contra mulheres e até as violações: "O curto trajecto em direcção à casa de banho torna-se um corredor de assalto. Em trinta metros: três abraços de desconhecidos embriagados, duas palmadas no rabo, a saia levantada e cerveja propositadamente atirada para o decote." escreveram Karoline Beisel e Beate Wild em 2011 no " Süddeutschen ZeitungContinuando: "Se as mulheres reagem, chamam-lhes "puta", ou pior." Em média, contam-se cerca de 10 queixas por violações em cada Oktoberfest. Mas suspeita-se que o número real chegue aos 200.

Cenas como estas, insultos como "puta", os apalpões no metro apinhado, as perseguições até à porta de casa, as violações por parte de amigos e familiares, ou uma polícia que não quer acreditar em nada do que é descrito: tudo isso são experiências que foram partilhadas na acção #Aufschrei [grito]. E qual foi a reacção da direita conservadora? "Oh, é apenas meia dúzia de homens cujas tentativas de flirt foram mal entendidas; as mulheres, em vez de fazer estas fitas, deviam aceitar isso como galanteio. Ao fim e ao cabo, elas é que têm a culpa, se andam na rua vestidas daquela maneira."
No entanto, #Aufschrei não foi uma reacção ao artigo "Piadas Masculinas" da revista Stern . E não foi de modo algum um shit storm contra o ministro Rainer Brüderle.

[Contexto: na véspera de um encontro muito importante do seu partido, uma jornalista abordou-o no bar, para falar de política. Ele estava mais interessado na pessoa dela. Ao saber que era de Munique, comentou que ela tinha bem com que encher um Dirndl, e olhou-lhe descaradamente para o peito. A história tem mais alguns detalhes, mas já dá para ter uma ideia.]

 #Aufschrei foi uma campanha ad hoc na qual as vítimas revelaram as suas experiências ligadas a sexismo quotidiano e violência sexualizada. Um levantamento, para finalmente podermos falar sobre todas estas questões que habitualmente são tratadas como em tabu e até consideradas normais. Os testemunhos na primeira pessoa estão desde há muito disponíveis na internet. Quem hoje em dia continua a afirmar que #Aufschrei foi um mero ataque a Brüderle está pelo menos mal informado, e quer simplesmente reduzir o activismo feminista à narrativa de emancipadas excitadas e histéricas que se irritam muito com "bocas parvas no bar" mas ignoram ataques em massa. Na realidade, as críticas contínuas dos feministas são sobre não se falar de sexismo tanto quanto é necessário, sobre a violência sexualizada continuar a ser um fenómeno quotidiano, e sobre um problema como este, que afecta toda a sociedade, não ser discutido - e muito menos ter soluções identificadas.

Agora, pessoas como Jens-"as-mulheres-tomam-a-pílula-do-dia-seguinte-como-se-fossem-Smarties"-Spahn, Rainer Wendt (chefe do sindicato da polícia) e Birgit-"então-fechem-a-blusa"-Kelle vêm perguntar porque é que os acontecimentos em Colónia não provocaram um "grito" (Aufschrei). A pergunta devia ser: para onde é que estas pessoas estão a olhar com essa sua visão tão limitada do mundo? Estes acontecimentos estão na ordem do dia do debate público, inúmeras pessoas exprimem a sua solidariedade para com as vítimas e fazem votos de que os culpados tenham a pena devida.
Que muitas dessas pessoas só tenham tomado conhecimento da dimensão da tragédia no princípio da semana resulta do atraso na passagem para os media nacionais, e também de um certo abrandamento na propagação das notícias nos social media durante o período de férias - facto não desprezável. Usar isto para acusar de indiferença justamente as pessoas que se empenham desde há anos na luta contra o sexismo e a violência sexualizada é uma insinuação pérfida - mas isso não é novidade para os próprios protagonistas.


As realidades na Alemanha

Os testemunhos recolhidos em #Aufschrei coincidem com as estatísticas sobre a situação na Alemanha. O estudo „Lebenssituation, Sicherheit und Gesundheit von Frauen in Deutschland", com resultados das entrevistas realizadas em 2004 a 10.000 mulheres, mostra que 13% das mulheres residentes na Alemanha foram vítimas de violência sexualizada relevante do ponto de vista do Direito Penal. O escândalo: apenas 8% dos casos foram levados à polícia. Se se retirarem as mulheres que fazem várias queixas, esse número reduz-se para 5%. O que resulta no inacreditável número de 95% de mulheres que silenciaram o facto de terem sido vítimas de violência sexualizada, na Alemanha. Os ataques não são revelados - e portanto não se tornam visíveis.
Isto não acontece por acaso. As vítimas de ataques à autodeterminação sexual correm um grande risco pessoal ao apresentar queixa: podem ser acusadas de estar a mentir. Em 87% dos processos não há condenação do acusado. No entanto, os media descrevem longamente e com todos os detalhes as queixas que se revelam ser falsas, embora estas tenham um peso marginal no conjunto das queixas - variam entre 1% e 9%, segundo as estatísticas e o país; na Alemanha estima-se um valor entre 3% e 5%.
Um motivo para a baixa percentagem de condenações por crimes deste género é o § 177 do Código de Direito Penal, que faz depender a condenação conforme o comportamento da vítima. Para que o atacante seja condenado, a vítima tem de provar que resistiu à violência. Uma regra absurda, baseada em inúmeros mitos sobre a violência sexualizada. Como consequência, o bloqueio devido ao estado de choque, que é uma reacção muito natural à violência, conduz à não condenação do atacante. Imagine-se que a condenação de um larápio seria analisado em função de a pessoa assaltada se ter defendido convenientemente: "lamento, não apertaste a tua carteira com força, a culpa é tua". A sugestão da presidente da Câmara de Colónia, sobre as mulheres se manterem a um braço de distância dos homens durante os festejos de Carnaval, também vai na mesma direcção.

Esta regra, e sobretudo o seu surgimento, faz parte de uma Rape Culture, de uma determinada ideia sobre como ocorre a violência e a violação, sobre o que é o sexo, sobre o comportamento "correcto" da vítima. E são regras como estas que dão segurança aos atacantes. Nestes casos é absolutamente indiferente qual a cor da sua pele ou a sua religião. No que diz respeito ao que aconteceu em Colónia, veremos se as agressões sexuais poderão ser seguidas do mesmo modo que o roubo de objectos: até ao momento 90 mulheres apresentaram queixa, segundo o Zeit Online em 75% dos casos trata-se de delitos sexuais. Em dois casos trata-se concretamente de uma violação.


O que é preciso fazer

É preciso notar isto: a violência sexualizada é uma questão que atinge todas as classes sociais, que acontece a qualquer hora do dia, em qualquer lugar, e pode atingir todos os sexos. Mas na maior parte do caso atinge mulheres. Não se trata de relativizar os horrores que aconteceram em Colónia e noutras cidades na noite de passagem de ano. Antes de mais espera-se que as vítimas recebam a ajuda necessária para conseguirem ultrapassar o trauma do que aconteceu naquela noite.

Ao falar sobre o que aconteceu ali, temos de o fazer no contexto global da Rape Culture. O que implica, entre outros, a crítica à inacreditável redacção das notícias, onde se fala de "bandos sexuais", "ataques sexuais" ou "mob sexual". A violência sexualizada nunca tem a ver com sexo. Aquelas designações escondem o aspecto do poder que está sempre ligado a ataques de cariz sexual. Do mesmo modo, estamos perante jornalismo irresponsável quando se publicam números que não correspondem aos factos, e que alimentam a Pegida e Cª.

Em todo o caso, o debate da acção #Aufschrei nunca chegou ao fim. Agora temos a oportunidade de o retomar, para finalmente falar do modo como sexismo e violência sexualizada estão ligados - e o que a sociedade pode fazer contra isso. Importante é que olhemos para isto como um problema global da sociedade, em vez de fazermos de conta que se trata de um problema ligado a grupos específicos, nomeadamente o de homens muçulmanos.

Ninguém nega que os homens descendentes de imigrantes ou os de religião muçulmana também cometem este tipo de crimes. Mas fazer de conta que eles são os únicos a cometê-los e que até estarão "programados" para isso devido ao seu contexto cultural, enquanto para os mesmos crimes se encontra todo o tipo de desculpas e desvalorizações se forem cometidos por alemães biológicos brancos, é um comportamento de ódio racista - e não resolve o nosso problema. Melhor seria que neste debate se desse finalmente espaço para ouvir a voz de homens muçulmanos que se empenham na luta pela igualdade. Instrumentalizar os direitos das mulheres e o feminismo ao serviço do racismo não pode nunca ter o consenso do debate de género na Alemanha - venha essa instrumentalização da nova Direita, ou de círculos internos do feminismo (looking at you, Alice Schwarzer).

Mas quais podem ser agora as soluções? Mais do que nunca precisamos do "gender mainstreaming" que por exemplo o AfD ["Alternativa para a Alemanha"] e consortes difamam como desperdício de dinheiro. Nomeadamente a introdução de uma pedagogia atenta às questões de género. Quando hoje em dia assistimos num infantário a cenas em que uma menina não se pode queixar por um menino lhe ter batido, recebendo como resposta "ele gosta de ti e não o sabe mostrar de outro modo", fica evidente que os estereótipos de género muito prejudiciais começam a ser formados desde tenra idade.

Também é urgente reforçar as estruturas daqueles que se ocupam da violência sexualizada em centros de apoio, serviços telefónicos de emergência e casas refúgio para mulheres. Muitas destas pessoas trabalham com poucos meios financeiros, frequentemente em regime de voluntariado, sempre pressionadas para justificar o seu trabalho e confrontadas com a acusação estereotipada de serem histéricas que odeiam homens. Se alguma coisa positiva pode resultar desta história, que seja uma maior reconhecimento deste trabalho, e mais apoio financeiro, que é necessário com urgência. Do mesmo modo que são necessários mais lugares de terapia, e mais facilmente acessíveis.    

Uma outra questão é a necessidade de sensibilizar mais a polícia para o problema da violência sexualizada, por exemplo e em particular para os ataques durante grandes eventos como o carnaval ou a Oktoberfest. Também é preciso reformar o §177, sobre agressão sexual e violação. A convenção do Conselho da Europa para a prevenção e o combate à violência contra as mulheres e a violência doméstica („Verhütung und Bekämpfung von Gewalt gegen Frauen und häusliche Gewalt") entrou em vigor a 1.08.2014. A Alemanha não a pôde ratificar porque ainda tem défices no procedimento penal, bem como na protecção e na indemnização à vítima. Por exemplo: ter dito "não" não é suficiente para reconhecer que houve violação. Uma situação inaceitável.

O que o debate suscitado pelos acontecimentos de Colónia tem evidenciado mais: a Alemanha tem um problema claro de sexismo e de racismo. Ambos estão profundamente implantados, e não foram de modo algum "importados". Está nas nossas mãos, como sociedade. não alimentar a discriminação e a violência. Temos de nos afastar de uma cultura do "Tu também queres!" para uma cultura do "Também queres?"
Sair de uma Rape Culture para chegar a uma cultura que celebra a cooperação consensual em situação de igualdade e com respeito pelos limites. E isto é válido para todas as pessoas, porque qualquer ataque sexual é um ataque a mais - independentemente de quem o comete.


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