07 fevereiro 2013

Berlinale 2013 (5)



Esta manhã estava descansadamente a tomar o pequeno-almoço, pensando que às dez compraria na internet The Spirit of '45 e mainada, quando dei uma olhadela para a minha agenda desta semana: "ai! Gloria! O filme chileno de que se está a falar tanto!" O dia de ficar descansadinha em casa era amanhã, hoje era para ir a toda a velocidade para a fila dos bilhetes.
Duche a correr, vestir a correr, passear o Fox devagar, correr para a bilheteira mais próxima da minha casa (há três em Berlim). Cheguei lá às oito e meia, havia quase 60 pessoas à minha frente.
Sentei-me no chão a ler um livro chamado "101 arménios famosos" (ninguém sabe, mas um dia ainda hei-de ir ao "quem quer ser milionário", e já me estou a preparar para as perguntas do milhão). Talvez tenha visto mal, ainda vou verificar de novo, mas parece-me que o livro é mais "cem arménios famosos e uma arménia famosa" - uma cantora. Em milhares de anos de história só uma mulher se conseguiu evidenciar? Muito estranho. Não sei se tire conclusões sobre o povo, se sobre o autor do livro.
Pouco antes das dez da manhã um dos responsáveis daquele núcleo da Berlinale saltou para cima de uma mesa. Às primeiras palavras com o seu vozeirão, quente e seguro, extinguiu-se a barulheira na sala. "Por favor, digam-nos o número do filme que querem ver", dizia ele, "quem o número indica, crises de nervos nos evita" - a sala toda em gargalhadas. Também explicou o mais importante: que se podia pagar com cartão, e que cada pessoa só podia comprar dois bilhetes por filme.
Calou-se, desceu da mesa. As pessoas que tinham chegado por volta das quatro da manhã e se tinham espalhado pelos sofás da sala vieram para os seus lugares em frente às caixas. Toc toc toc, sobe o pano. O rapaz ao meu lado comentou, muito aflito, que vinha para comprar dez bilhetes para Naked Opera, e que não sabia que havia esse limite. Ofereci-me para lhe comprar dois. O nome do filme não me era estranho - vi-o no programa, imaginei que seria sobre as modernas encenações de ópera, e ignorei-o. Afinal não é nada disso. O rapaz estava a comprar bilhetes para um grupo de amigos, porque a realizadora morara durante uns tempos no apartamento comunitário deles. Ontem, uma pessoa na fila era amiga da actriz, outra era amiga do operador de câmara do mesmo filme; hoje era este que tinha partilhado a casa com a realizadora: pergunto-me se os filmes deste festival são todos feitos em Berlim...
À nossa frente havia um grupo muito animado. Estavam ali desde as seis da manhã, sei lá quantos litros de café já teriam emborcado. Uma das senhoras conhecia o rapaz do Naked Opera, começou-lhe a contar que tinha tirado três dias de férias para a Berlinale, e que vinha todos os dias bem cedo para comprar bilhetes, que era cansativo mas "cult", que o grupinho das madrugadas já se conhecia... Disse ainda que entre as sete e as oito não aparece ninguém, e pôs-me a fazer contas de cabeça: no sábado e no domingo, ou vou mesmo às seis e meia da manhã, ou então também posso aparecer só às oito. Ai a tentação.
As caixas abriram. Naked Opera ficou imediatamente em amarelo, e nós a trinta minutos da caixa. Disse ao vizinho que mais valia ele ir pedir aos primeiros da fila que lhe comprassem esses bilhetes. Ele começou a recolher o dinheiro que já espalhara nas redondezas, e foi levá-lo mais à frente. A fila ia avançando, e o meu vizinho fartou-se de carregar o saco e o casaco naquelas intermináveis filas em S. Deixou-os no chão. Daí a nada começaram a chegar os da frente, "tenho aqui os seus dois bilhetes", "oh, obrigado!". Até que uma disse "Já só havia um", e ele ficou pasmado, a olhar para os sete que lhe tinham arranjado. Ao fim de uns minutos perguntei-lhe se queria comprar mais bilhetes, e ele:
- Não, só queria estes.
- Então o que é que está a fazer aqui?
- Pois é...
Guardou os bilhetes no bolso, despediu-se, foi-se embora.
- Não se esqueça do seu saco, gritou-lhe a mulher ao meu lado. Ele voltou atrás, e apanhou o saco.
- E do casaco, acrescentei eu. Ele apanhou o casaco. Por acaso agora pergunto-me se se terá lembrado de ir recolher o dinheiro do último par de bilhetes.
As pessoas começaram a falar sobre os filmes que queriam ver. "O Casablanca e o russo", dizia alguém. "Eu é mesmo só o indonésio", respondia outro. E controlavam: "ainda está verde, parece que vamos ter sorte."
Finalmente chegou a minha vez. Gloria, há muito em amarelo. Disse o número, a vendedora olhou para o computador, engoliu em seco... mas afinal ainda havia bilhetes. Caramba, se eu lhe disse o número, porque é que ela quase me ia provocando uma crise de nervos? O cuidado com o estado de ansiedade das pessoas devia ser recíproco.
- E quais são os outros números?, perguntou.
Olhei para a minha folha.
- Era só este, obrigada.
Senti-me frustrada. Correria, e duas horas na fila, para dois míseros bilhetes?
Tenho de falar com os amigos, para comprar também para eles. Duas horas para um único filme é uma produtividade muito reduzida.

Ao chegar a casa tinha uma newsletter a informar que o Dial M for Murder, do Hitchcock, vem com uma novidade: 3D. A Grace Kelly em 3D?! Lá vou eu rever a minha tabela.

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