(texto descaradamente roubado do site do secretariado nacional da pastoral da cultura, que até me lembra - mal comparado! - um casino em Las Vegas: entra-se facilmente, e depois vai-se ficando por lá, preso de uma e outra coisa, sem se encontrar o caminho para a saída) (eh, pá, ainda só são nove da manhã de segunda-feira e já estou a fazer comparações patetas? Toca a fazer uma segunda tentativa. Descaradamente roubado do site do snpc, que lembra o parque de Muir Woods: entra-se facilmente, e depois vai-se ficando por lá, preso de uma beleza que fala cada vez mais fundo ao silêncio que fala em nós.)
E o outono vai-se instalando. A princípio nem parece
uma estação. É quase um estado de alma, este tempo assim um pouco vago,
em declive delicado, com a chuva ainda rala (mesmo se em alguns dias
chega por aí aos tropeções) e o vento que parece um miúdo a aprender a
assobiar. Olhamos com íntima estranheza para a brevidade destes
primeiros dias, dos quais já não nos lembrávamos. Nas árvores, as
folhas tremeluzem, indecisas e iluminadas, transmutadas em incríveis
tonalidades. Os frutos têm perfume e sabores densos, tão diferentes
daqueles que se saboreiam no verão.
Lembro-me de um poema de Miguel Torga, que gosto de pôr a tocar como uma pequena sonata de outono:
O que é bonito neste mundo e anima,
é ver que na vindima
de cada sonho
fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura que se não prova
se transfigura
numa doçura
muito mais pura
e muito mais nova
O que é bonito neste mundo e anima,
é ver que na vindima
de cada sonho
fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura que se não prova
se transfigura
numa doçura
muito mais pura
e muito mais nova
Neste arranque de outono, deixo-me demorar nas
palavras: "a doçura que se não prova". Tendo o privilégio de acompanhar
a vida de muitas pessoas, sei que esta não é uma questão que se possa
iludir. Há um momento na nossa vida, ou há momentos nela, em que
fazendo um balanço, sentimos que ficámos aquém dos nossos próprios
sonhos. Há dias e estações da nossa vida em que nos sentimos mendigos
de nós mesmos. Esperávamos isto e aquilo que não aconteceu.
Desejávamos uma plenitude, uma fulgurância, um clarão e
o que temos é uma estreita e baça normalidade. Sentimo-nos, sem saber
bem como, a viver sob tetos baixos. Há uma espécie de doçura prometida
que nos escapa, que fica adiada, que começamos talvez a julgar que já
não será para nós, tão inacessível nos assoma. Por vezes, este
sentimento vem aos 70 ou aos 40 anos. Mas também surge aos 20 ou aos
30. Recordo aquela frase terrivelmente verdadeira de um romance
autobiográfico de Marguerite Duras: «Muito cedo na minha vida foi tarde
de mais». Esta difusa melancolia, este sentir que a luz que
interiormente nos alumia se tornou fosca e sem alcance são experiências
muito alargadas. Por isso se diz que não dependem propriamente da
idade os outonos interiores que atravessamos.
Existem é modos diferentes de encarar essa experiência,
que, no fundo, nos é tão intrínseca e comum. Podemos desistir
simplesmente de esperar, e largamos a vida no parque de estacionamento
do pragmatismo mais raso. Podemos trocar a doçura que não conseguimos,
por um tipo de acidez quotidiana, uma desconfiança sistemática a que
nada nem ninguém escapam, e que se vai espalhando, entre a ironia e o
desalento, contaminando tudo. Ou podemos, e esse é o olhar mais
necessário, perceber que «a doçura que se não prova/se transfigura numa
doçura/muito mais pura/e muito mais nova».
O outono não é, portanto, o fim da história. Se o
soubermos agarrar, é sim um ponto de partida avançado, que nos permite
essa coisa urgente que é a "transfiguração" da vida, através de um
paciente e esperançoso trabalho interior.José Tolentino Mendonça
In Diário de Notícias - Madeira
Atualizado em 24.09.12
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