14 novembro 2011

passar a tarde num cemitério a falar da vida

Já tinha ouvido falar dos cemitérios de Berlim, mas nunca me lembrara de ir para lá passear ao fim-de-semana. Não fora a Rita, e ainda hoje não sabia o que andava a perder.
Ontem encontrámo-nos no maior cemitério de Berlim, o Südwestkirchhof em Teltow.
Era Remembrance Day, pelo que fomos em cortejo atrás de uns escoceses de pernas muito rosadas de frio, com um grupo que levava papoilas na lapela.





O discurso do velho militar alemão foi muito digno, e o modo como os representantes dos antigos inimigos se cumprimentaram, no final da cerimónia, foi quase comovente. Especialmente nestes tempos de exacerbados nacionalismos e redespertar dos ressentimentos, dou-me conta de como a Paz na Europa é um bem frágil.

Terminada a cerimónia, começou a visita guiada.
"Visita guiada a um cemitério?!", perguntarão vocês.
"Pois claro!", respondo eu. Que aquilo são muitos hectares, 206, se querem saber ao certo. Uma coisa em grande, como convém a um cemitério central de uma capital. Foi criado em princípios do séc. XX com essa função, tinha até uma linha de comboio especial para o tornar mais acessível aos visitantes da cidade. No período nazi foi objecto de curiosas movimentações, porque o Speer queria fazer um eixo norte-sul para a sua Germania, e foi preciso transladar para este os cemitérios que se lhe atravessaram no caminho - restos mortais, jazigos, placas. Mais tarde, quando a Alemanha se dividiu em duas, ele ficou relativamente esquecido, retendo do lado de lá da cortina de ferro a memória das famílias da parte ocidental.

Começámos na campa da família Gottschalk: uma história trágica. Joachim e Meta Gottschalk eram actores, ele era muito apreciado na época, e ela também, mas era judia. Para evitar ondas e problemas ao marido, afastou-se do teatro. Mas um dia convenceram-na a participar num encontro de actores, e que ia ser muito engraçado, e que não tinha mal nenhum. Ela foi, e o responsável máximo da cultura, o ministro Goebbels, também. Cavalheiro muito delicado que era, cumprimentou todas as senhoras presentes de beija-mão. Quando soube que tinha beijado a mão de uma judia, o cavalheiro espumou de raiva, e exigiu que Joachim Gottschalk se divorciasse da mulher para esta poder ser enviada num dos "transportes". O actor permaneceu firme - nem pensar em abandonar a mulher à sua terrível sorte. Pelo que representou uma última vez a sua peça mais divertida, "servo de dois senhores", e no dia seguinte suicidaram-se os três - marido, mulher, filho. Apesar da carta que deixara, pedindo aos amigos do teatro que não corressem riscos desnecessários, houve imensa gente no seu funeral. 


Um pouco à frente, a campa de um rapaz muito azarado, porque tinha poderes premonitórios. Perante estes casos penso sempre que tipo de poderes são os dessas pessoas que não conseguem prever o que lhes vai acontecer à vida. Eu sou ao contrário: não consigo prever nada para o resto do mundo em geral, mas volta e meia sonho que me vai acontecer uma coisa má. E fico sem saber se sou o Nostradamus de mim própria, ou se é a maldita matriz judaico-cristã a mandar recados ao Freud dentro de mim.
O rapaz chamava-se Erik-Jan Hanussen-Steinschneider e um dia teve a visão de um edifício muito grande a arder. No dia seguinte o Reichstag estava em chamas. Foi o seu fim. Uma placa junto à campa revela que morreu às mãos de oficiais do partido nazi. 



Volta e meia juntam-se estranhas personagens à volta da campa dele, gente com ar de poderes paranormais. A direcção do cemitério deixa acontecer. São bastante tolerantes, só não admitem sabe-se lá que movimentações de neonazis.

Continuámos o passeio pelas alamedas - alamedas sem fim, todas lindas.





Ao fundo do cemitério encontrámos os jazigos e as pedras tumulares trazidas do centro da cidade. Um lugar fantasmagórico.




Mais à frente, o guia aponta para uma campa muito estranha, uma espécie de quarto de criança ao ar livre, à qual nem uma grinalda de halloween falta. Era um bebé que morreu com um mês, e os pais continuam, de algum modo, a viver com ele. Tudo aquilo me incomoda, confesso, mas também gosto muito que a direcção do cemitério permita aquele arraial - a cada um o direito de fazer o luto como puder e precisar.


A família Graf Lambsdorff instalou-se numa clareira:


Lá perto, no centro do cemitério, a capela. Construída há cem anos, inspirando-se nas igrejas de madeira medievais da Noruega. Uma construção inesperada, mas digna.



Continuámos o passeio pelo meio do parque, parando num ou noutro nome famoso.

Aqui jaz um egiptólogo - fizeram-lhe um jazigo à maneira de luxo egípcio. Já o sinólogo que falava sessenta línguas tinha apenas um sóbrio bloco de cimento (não sei, mas desconfio que os tradutores fazem alguma coisa mal...). A área do seu cérebro ligada à fala era densa como um buraco negro, disse o guia. ("como um buraco negro" disse eu, e talvez esteja a exagerar um bocadinho) 


Há alguns anos criaram uma secção nova no cemitério, para cinzas. As famílias escolhem uma árvore de folha caduca, deitam as cinzas entre as suas raízes, deixam uma pequena placa com o nome da pessoa, e a Natureza toma conta de tudo. Assim: 


Pelo meio das histórias que o guia contava, percebíamos as dificuldades do cemitério. Dinheiro, dinheiro, dinheiro. Uma cena do Ghost Writer, do Polanski, ali filmada - a fachada de uma casa em frente ao talhão histórico das vítimas da guerra e da violência, os carros de bombeiros, tudo, apenas para filmar uma cena minúscula em que um jipe avança por uma alameda e descreve uma curva em frente à casa. "Mas rendeu-nos bom dinheiro."
Um evento cultural: dia anual da visita aos cemitérios. Centenas e centenas de visitantes, "foi muito bom para nós".
Junto à campa do Breitscheid, um lamento: se o Willy Brandt estivesse aqui, isso é que era...
Junto à campo do Zille, a euforia: para o seu funeral, vieram 2.000 pessoas de Berlim, foi um dia grande para o nosso cemitério! E o político de serviço a fazer um discurso inflamado - nunca se entendera bem com Zille, mas 2.000 pessoas ali e as eleições à porta...

Ainda fomos com o grupo até ao cemitério inglês, com uma relva inacreditável. As flores junto às campas repetem-se a um ritmo que eu não conseguia entender, até que o guia explicou: junto à campa do soldado planta-se a flor típica da sua região.


O último ponto da visita era a parte dos italianos, mas nós estávamos com frio e ainda tínhamos muito que falar.

Então foi isso - e o melhor de tudo foi andar num cemitério com a Rita, a passear e a falar da vida.

Procurámos um café em Alt-Glienicke, a aldeia que era um enclave da RDA no enclave que era Berlim Ocidental. Durante a Guerra Fria era um lugar horrível (ando há três meses para contar isso, mas ainda não vai ser hoje). Agora é um bocadinho de paraíso, em frente ao canal de Teltow, com o parque de Babelsberg em frente.


Confortavelmente instaladas na sala quente, olhávamos para o terraço, onde um miúdo com pinta de inglês estudava atentamente a ementa. Um pouco mais tarde apareceu uma família com lanternas de papel iluminadas. No jardim a escurecer, criavam um momento de mágica tranquilidade.

 



E depois fomos embora. Já eram cinco da tarde, mais que horas de voltar para casa.

14 comentários:

sem-se-ver disse...

que bonito, tudo isto...



(sim, sei, ando-me a repetir, mas... que queres? a culpa é tua!!)

Carlos disse...

Passeei num cemitério uma única vez, em Salzburg, mas é coisa que não me emociona/ou. O simpático café da foto, sim, é a minha ideia de um momento bem passado!

Paulo disse...

Gosto desses cemitérios que são parques com cores de Outono.

Helena Araújo disse...

sem-se-ver,
desculpa! Vou tentar não voltar a fazer...
;-)

Carlos,
Antes de ter andado neste, nunca pensei que me podia sentir tão bem num sítio destes. Na semana passada estive no parque dos palácios de Potsdam, que é bem mais cuidado e bonito. Mas este tem um valor acrescentado: a morte está presente de uma maneira muito tranquila.


Paulo,
iremos lá ver como é quando tem as cores de inverno?

sem-se-ver disse...

na minha 1ª vez em paris, fui, naturalmente, ao Père Lachaise.

em Zagreb, acabadinha de chegar, os amigos que me haviam convidado a uma estada meteram-me quase acto contínuo no respectivo cemitério: 'do you mind? you have to go'. era 1º de novembro, e eles levam muito a sério, mas mesmo muito, o culto dos mortos. foi das experiencias mais alucinantes e fortes da minha vida - chegámos por volta das 5 e tal da tarde, o dia a pôr-se, e os milhares e milhares de pessoas em silenciosa romaria, e os milhares de velas colocadas em recipientes de vidro colorido, e um cemitério num bosque, em colina, e a noite a cair, e as tumbas e as lápides, e nós por ali às escuras - é por aqui? viramos à direita ou à esquerda? em frente ou para trás? -, as duas meninas filhas sem se ouvir, as vozes sussurradas, e eu, num país que nao conhecia, no meio de uma língua incompreensível, de um cemitério como nunca tinha visto igual, de alamedas que não dominava, de mortos que não eram os meus, esmagada por tudo aquilo, irmanada de tudo aquilo.

foi avassalador.

adoro cemitérios, btw. este que visitaste é lindíssimo. amei a zona reservada às cinzas, por entre as árvores. que bela ideia, que bela ideia. quero ser cremada - agora já sei onde quero que espalhem as minhas cinzas.


(não esquecerei de o mencionar no meu testamento. deve é ficar carote...)

Helena Araújo disse...

Que bonito isso que descreveste! Tu devias ter um blogue, para publicar essas coisas...
;-)

Carote? Acho que não.

(posso fazer humor negro?) (posso?) (posso?) (posso?) (posso?)

Quanto custa enviar uma latinha de cinzas pelo correio?...

Fui ver o preços do cemitério. Uma campa custa cerca de 1000 euros em vinte anos. Para este espaço de cinzas no meio das árvores não indicam preço. Mas não será mais do que isso, com certeza.

cjs disse...

o local é lindo, pela sua beleza cénica e não pelo culto dos mortos, que me custa mais a compreender.

Paulo disse...

Iremos, sim. Devem estar lindos em cores brancas.

(Que bela série que tu e a Rita Maria aí têm!)

Helena Araújo disse...

:-)

Anónimo disse...

A Helena seria a mediadora que a europa não teve. Se tivesse havido algum interesse recíproco dos povos, talvez desde 1992 tivesse sido possível cultivar uma comunidade de culturas. Talvez agora isso permitisse pensar em qualquer coisa diferente.
Muitos dos seus post dão a conhecer e aproximam.


Pedro

Helena Araújo disse...

Obrigada, Pedro.
É um elogio exageradíssimo, mas obrigada. :-)

Eu limito-me a contar o que vivo aqui. Não me sinto propriamente mediadora na Europa.

Rosário disse...

acabei de mudar radicalmente a opinião que tinha sobre cemitérios. que diferença para os "grandes" cemitérios da capital... e que diferença para as famílias...

sem-se-ver disse...

eh pá, é barato!!

achas que posso fazer logo negocio? :| quer-se dizer, nao tenciono morrer tao cedo, mas eu sei lá como vai ser a inflaçao! e se a alemanha tb entra em crise? daqui a uns anos custará 10.000!!!

Helena Araújo disse...

Se a Alemanha entra em crise, e daqui a uns anos custa uns 10.000, não te preocupes: os chineses abrem um ao lado, por 100 euros...

(hihihi)