11 março 2011

enganem-me, que eu gosto (1)

Grande confusão se tem gerado à volta da manifestação da geração à rasca, marcada para amanhã.
Nem sou muito de teorias da conspiração, mas pergunto-me se anda alguém a criar propositadamente estas confusões, e porquê.

O manifesto está acessível a qualquer um, podem lê-lo aqui, bem como no fim deste post.
Não se cansam de repetir que esta manifestação não tem nada a ver com aquela que pretende acabar com a classe política (hihihi, boa ideia, e já agora podiam exigir também chocolates gratuitos para todos) mas, por algum motivo que não entendo, há quem continue a insistir nessa confusão.

Também me causam alguma perplexidade essas reacções que tentam desmoralizar as vítimas: são os diolindos, são uns preguiçosos mimados e mal habituados pelos papás, uns meninos todos iMac, que escolheram o curso errado e agora se queixam de não receberem um emprego do Estado. Será assim tão simples?

Alguns apontamentos avulsos:

1. Quando o Eduardo Pitta sugere que isto seja manobra do Bloco de Esquerda, ou talvez do PC, ocorre-me uma discussão frequente na casa da família do meu marido, na Alemanha Ocidental dos anos oitenta. Sempre que os filhos participavam nas manifestações pacifistas e contra o armamento alemão, o meu sogro resmungava que estavam a ser manipulados pela URSS. Eles riam-se: "pois é, é, os da KGB até descem o Reno de submarino para nos virem servir espumante da Crimeia e caviar do bom". Depois da queda do muro, descobriram envergonhados que de facto havia agentes da Stasi a preparar essas manifestações. Mas, pensando bem: qual é o problema? O pacifismo e a recusa da corrida ao armamento são valores muito aceitáveis. Não devem ser calados apenas porque podem aproveitar ao inimigo.
Voltando a Portugal, continuando na defesa dos princípios e dos valores: se é o BE que está à frente disto, porque é que o PS não se lembrou antes? É que esta situação é insustentável e inaceitável para qualquer partido de esquerda. Aliás: para qualquer partido decente.


2. Diz-se que as empresas não podem pagar mais, ou dar vínculos mais sólidos. E eu pergunto: uma empresa que só sobrevive com base em salários baixíssimos, nos estágios não ou mal remunerados e dos falsos recibos verdes sem qualquer obrigação social - não seria melhor fechá-la? Bem sei que estou a dizer uma brutalidade, mas parece-me importante deixar claro que só se permitem empresas que funcionem dentro do estrito respeito pela Lei. E a Lei obriga a que as pessoas que trabalham para uma empresa tenham determinadas garantias, como direito a férias e pagamento compartilhado das contribuições para a Segurança Social. Se uma empresa não tem meios para cumprir estes requisitos legais mínimos, simplesmente não tem condições para existir.
Se pactuamos com este tipo de argumentação, daqui a nada vamos aceitar tudo. Gente de trinta, quarenta e cinquenta anos a receber salários de fome e sem ter qualquer garantia, só para que as pobres empresas não vão à falência.

Uma outra questão que me interessaria averiguar: quanto ganham os directores e os quadros superiores dessas empresas que, tragicamente, funcionam abaixo do mínimo de sobrevivência económica e por isso não podem fazer contratos de trabalho justos e legais? Qual é a diferença de salário entre o topo e a base da hierarquia?
Claro que esta minha ousadia repousa num preconceito: não acredito que as empresas não possam oferecer contratos normais aos seus funcionários - penso que não o fazem porque a chico-espertice dos estágios e dos recibos verdes se tornou norma, e burro seria quem pagasse mais para ter aquilo que pode receber pagando menos.Responder-me-ão: nos tempos da globalização temos de aceitar compromissos, sob pena de toda a produção se deslocar para a China. Até me lembra aquela anedota do homem que ia de comboio e gemia de cada vez que chegava a uma estação, porque via que estava a ir na direcção errada. Quando lhe perguntaram porque é que não mudava de comboio, ele respondeu: "é que neste, pelo menos sei para onde vou - se sair e entrar noutro, não sei o que me espera."

3. Fala-se muito na falta de canalizadores e electricistas. Acredito, e não me admiro. Por mim, até se podia recuperar a figura da senhora que, num quartinho debaixo das escadas, apanhava foguetes nas meias. Tudo trabalhos dignos - e que deviam ser (ou já são) bem pagos. Recupere-se a ideia da escola profissional, que forme técnicos respeitados, orgulhosos da sua arte e do seu saber. Mas que não haja ilusões: se é para competir com a China, temos de investir também na excelência das ciências. E se é para criar uma sociedade moderna e europeia, temos de investir na qualidade de vida social e na cultura. Isto não é apenas uma questão de resolver o problema dos precários de hoje, mas de nos perguntarmos em que direcção queremos ir, como país.  

4. Sobre as estatísticas, essas abusadinhas de bikini, que mostram quase tudo mas escondem o essencial, vou fazer um post à parte, porque este já vai muito longo.


***

Manifesto

Nós, desempregados, “quinhentoseuristas” e outros mal remunerados, escravos disfarçados, subcontratados, contratados a prazo, falsos trabalhadores independentes, trabalhadores intermitentes, estagiários, bolseiros, trabalhadores-estudantes, estudantes, mães, pais e filhos de Portugal.
Nós, que até agora compactuámos com esta condição, estamos aqui, hoje, para dar o nosso contributo no sentido de desencadear uma mudança qualitativa do país. Estamos aqui, hoje, porque não podemos continuar a aceitar a situação precária para a qual fomos arrastados. Estamos aqui, hoje, porque nos esforçamos diariamente para merecer um futuro digno, com estabilidade e segurança em todas as áreas da nossa vida.
Protestamos para que todos os responsáveis pela nossa actual situação de incerteza – políticos, empregadores e nós mesmos – actuem em conjunto para uma alteração rápida desta realidade, que se tornou insustentável.
Caso contrário:
a) Defrauda-se o presente, por não termos a oportunidade de concretizar o nosso potencial, bloqueando a melhoria das condições económicas e sociais do país. Desperdiçam-se as aspirações de toda uma geração, que não pode prosperar.
b) Insulta-se o passado, porque as gerações anteriores trabalharam pelo nosso acesso à educação, pela nossa segurança, pelos nossos direitos laborais e pela nossa liberdade. Desperdiçam-se décadas de esforço, investimento e dedicação.
c) Hipoteca-se o futuro, que se vislumbra sem educação de qualidade para todos e sem reformas justas para aqueles que trabalham toda a vida. Desperdiçam-se os recursos e competências que poderiam levar o país ao sucesso económico.
Somos a geração com o maior nível de formação na história do país. Por isso, não nos deixamos abater pelo cansaço, nem pela frustração, nem pela falta de perspectivas. Acreditamos que temos os recursos e as ferramentas para dar um futuro melhor a nós mesmos e a Portugal.
Não protestamos contra as outras gerações. Apenas não estamos, nem queremos estar à espera que os problemas se resolvam. Protestamos por uma solução e queremos ser parte dela.

5 comentários:

António P. disse...

Boa tarde Helena,
Vivemos em democracia. Ainda bem que há manifestações e quem as convoca...mas ainda bem que também há os que não querem ir. Espero que não seja proibido :).
Quanto a esta em concreto não me interessa teorias da conspiração de quem está ou não está por trás da mesma mas não deixa de ser curioso o carácter unânime dos apoios , hoje a JSD juntou-se ao PC e ao BE. Não deixa de ser curioso.
Eu não vou não é porque esteja para gastar 300km de Lisboa e não me apeteça gastar gasolina ( quando vou a manif's vou pelos meus meios não em autocarros sindicais ou de autarquias ) mas porque um manifesto que tem o 1º parágrafo deste ( só falatm os avós de Portugal ) é fraquinho.
Bom fim de semana

Helena Araújo disse...

António, os avós não constam porque já são reformados. Daqui a uns anos já constarão, porque não vai haver com que lhes pagar as reformas.Em compensação não haverá filhos, porque ninguém se atreverá a tamanha loucura...
(estou a exagerar, já percebeu)

Cada um é livre de ir ou não. Eu espero que vão todos os que sentem que este é um gravíssimo problema, para nós vermos quantos são. E que seja pacífico.

António P. disse...

Pois eu sou avô ( o /a 3ª neta vem a caminho ) e ainda trabalho.
E o problema do manifesto é esse mesmo é que tenta ser inclusivo ( as mamãs, os filhos de Portugal...onde é que eu já ouvi isto ? ) mas na prática exclui os que estão verdadeiramente à rasca.
Bom fim de semana

Eduarda disse...

Helena, como diz o António: "exclui os que estão verdadeiramente à rasca".
Eu não vou porque para mim não faz sentido. E olha que eu não sou nem do partido nem "girl" do partido, quem me conhece sabe que não me calo, mas exactamente por estarmos como estamos é que esta manifestaçao não tem sentido real.

Helena Araújo disse...

Os que estão verdadeiramente à rasca não ficam melhor se os licenciados continuarem a andar a recibos verdes. E até pode ser que fiquem pior - pode ser que a moda pegue, e os recibos verdes se estendam a outras profissões e a outras faixas etárias.
E por acaso até acho que uma manifestação como a de ontem pode ser o princípio de alguma mudança que melhore a vida de todos.