04 fevereiro 2011

bocagrande de escuteira

Eu e a minha bocagrande.
Tudo começou com o debate sobre o aborto, há alguns anos, no qual a minha bocagrande andou por aí a dizer que a única maneira de ser contra o aborto é ajudar as mulheres grávidas, para que a criança possa ser acolhida com serenidade e confiança.
Mais tarde, num encontro com a irmã Monika, que dá apoio a mulheres que querem ter partos anónimos, a minha bocagrande ofereceu-me para ajudar no que fosse preciso.
De modo que há algumas semanas a irmã Monika telefonou-me a perguntar se eu podia ajudar uma mulher que estava numa situação terrível, e eu engoli em seco e disse que sim.
Era uma estudante africana, com um filho de pouco mais de um ano, novamente grávida. O pai das crianças pôs-se ao fresco quando percebeu que ela não ia abortar. O parto estava previsto para 20 de Janeiro, e Fevereiro é mês de exames que ela não pode chumbar, por causa do seu visto de estudante. E ali estava ela, na sala da Caritas: uma mulher jovem, gravidíssima, desalentada. Sem companheiro, e com os pais lá longe, no seu país, em zanga profunda. E eu a olhar para ela e a imaginar como será possível sair da sala de partos para a de exames.
Disse-lhe que sim a tudo. Mal a criança nascesse eu arranjaria a minha vida de modo a cuidar dos dois bebés enquanto ela estivesse a estudar ou nos exames.
Ela perguntava-me estupefacta porque é que eu faço isto. Mas eu não sabia explicar-lhe em poucas palavras este meu fenómeno bocagrande. Nem em poucas palavras, nem em muitas e, para ser sincera, nem a mim própria. De modo que respondi que já recebi tanto da vida que bem posso passar aos outros um pouco da minha boa sorte.
Trocámos moradas e números de telefone, e ela ficou de me telefonar se precisasse de alguma coisa.

Se conto isto aos amigos, a primeira pergunta que me fazem é "mas ela não sabe usar preservativos?" Curiosamente, essa questão não me ocorreu. Entrei nesta história porque me ofereci para ajudar, não para julgar.

Já tentei várias vezes convidá-la para jantar connosco, mas nunca lhe dá jeito. Entretanto a menina já nasceu (tem uns pulmões portentosos, vai dar cantora lírica), e aparentemente não precisam de mim. Sei que o pai reapareceu, imagino que se terá reapaixonado pela família. Às vezes temo que ela esteja completamente esgotada, sem força sequer para pedir ajuda, e telefono.

E agora, faço o quê? De cada vez que lhe telefono a perguntar se está tudo bem, e quando quer que eu vá tomar conta dos miúdos, sinto-me como aquele escuteiro que obrigava a velhinha a atravessar a rua.

15 comentários:

maria n. disse...

Bocagrande coisa nenhuma. Coração grande é o que tu tens.

Helena Araújo disse...

Deixa-me cá negociar uma plataforma de entendimento: coração com bocagrande? ;-)

io disse...

ah cachopa ... é que nem sei que te escreva a não ser subscrever a Maria N.: coração do tamanho de um combóio de camiões Tir.
Vai lá mandar emails matinais a falar do coração das outras que eu digo-te.

Helena Araújo disse...

Olhem que eu não fiz nada! Limitei-me a dizer que sim no momento certo, e depois as coisas continuaram a acontecer sem mim.

Telefonei-lhe há bocadinho, contei-lhe esse meu dilema do escuteiro, e ela deu uma grande gargalhada. Foi a primeira vez que a vi rir-se assim, fiquei muito contente.

Lucy disse...

Que bom, Helena! Obrigada. Espero que isto seja contagioso e que nós (suas/seus Leitoras/Leitores/Admiradores/Admiradoras) fiquemos com o coração também um pouco maior...

Helena Araújo disse...

ainda maior do que já têm, Lucy?
Olhe que eu ainda não fiz nada, além de ter dito que sim, e de ter feito uns telefonemas.
Ainda não passei o exame da dura realidade.

mdsol disse...

... até fico sem palavras. Até com o modo como conta é especial.

:)))

Helena Araújo disse...

Ponham-se com isso, ponham-se, e daqui a nada começo a acreditar que sou a autêntica Madre Teresa (da boca pra fora).
;-)

Alien disse...

Estou incrivelmente bem impressionada! uau.
Obrigada pelo exemplo. Sinto-me inspirada.

Helena Araújo disse...

Ai que eu vou ter de fazer uma adenda ao post!
Não saí ainda do plano das boas intenções. Não gastei um minuto com esta família, para além daquele único encontro e um ou outro telefonema. Não dei presentes de Natal.
Limitei-me a manifestar disponibilidade.
E é só porque sou um bocado louca: primeiro atiro-me de cabeça, e depois vejo como me desenrasco.

Alien,
estive no seu blogue. Inspirador é aquele artigo sobre o "couves para todos". Obrigada!

Ant.º das Neves Castanho disse...

Helena, mas o que tu fizeste é que é "fazer alguma coisa"! O primeiro passo é mesmo o que custa dar, por isso é o que faz toda a diferença qualitativa, tudo o que se segue depois é meramente quantitativo ou tem, como também se diz, "uma diferença de grau"!

Só o facto de saber que alguém poderia ajudá-la se precisasse, que "alguém" se procupava mínimamente com a vida dela, que tinha uma "rede" por baixo, pode ter sido o suficiente para dar forças a essa rapariga e lhe aumentar o ânimo, indo buscar-lhe as suas próprias forças lá mais fundo, onde elas estavam "adormecidas"! Se, pelos vistos, até o rapaz-pai parece que "sentiu" a tua intervenção benfazeja e reconsiderou!

Olha, muitos Parabéns, pelo bom exemplo...

Helena Araújo disse...

Vá, vá, não comeces tu também!
Antes de mim houve uma enorme rede da Caritas - gente que ajudou, arranjou roupas e fraldas para o bebé, e até se lembrou de mim para certas horas. Eu sou um parafuso (inactivo e bocagrande, por sinal) de uma enorme engrenagem.
O pai nem deve saber que eu existo. Admito que o desbloqueador da situação tenha sido a dificuldade da mãe em tratar do rapazinho no final da gravidez: pôs o miúdo com o pai, e isso deve ter dado uma grande ajuda para o homem ganhar algum juízo. Às tantas, o que lhe faltava era ser chamado à responsabilidade.

Ant.º das Neves Castanho disse...

Pois... Lá diz o Prof. Nuno Crato que "a invenção do Milénio" foi o parafuso!

Helena, todos nós mais não somos do que "meros" parafusos de uma enorme engrenagem. E todos os bons parafusos se querem "inactivos" (e muito bem quietinhos, de preferência...). Mas sem eles, sem a sua extrema competência e esforço por trás da sua aparente "inactividade", lá muito apertadinhos no seu rebite, ou bem aferrados na respectiva porca, sem cada um deles, não haveria engrenagens, nem mecanismos...

maria n. disse...

Muito bem dito, A. Castanho. Quantas vezes saber que existe essa rede é mais importante que a própria rede.

Helena, não percebes que é o coração grande que te faz falar e não a boca? E eu sei de que falo :)

Helena Araújo disse...

Pronto, está bem, levem lá a bicicleta...
;-)