A propósito desta notícia e de algumas reacções nos blogues, aqui fica um aviso à navegação: antes de escreverem mais asneiras sobre a Alemanha em geral e a Merkel em particular, vão-se informar melhor. Tentem ler todo o discurso da Angela Merkel, e de caminho informem-se sobre o que é que um alemão quer dizer quando diz “multikulti”.
Claro que o tradutor (como de costume) e o jornalista (como quase sempre) têm uma boa parte da culpa neste não-escândalo, mas as pessoas inteligentes deviam fazer como os pobres, que desconfiam quando a esmola é grande. Só que, quando a ignorância e o preconceito se encontram, o resultado é sempre muito mau. É passear hoje pelos blogues para ver tristes exemplos disso.
Em síntese: obviamente que a Angela Merkel não fez afirmações xenófobas. E quem admite que um chanceler alemão se pode permitir esse deslize não percebe nada da Alemanha.
De modo que voltemos ao princípio: a jornalista Dulce Furtado, que fez aquela bela peça, há-de fazer o favor de ler o discurso todo, e contar as outras partes relevantes. Por exemplo, quando Angela Merkel cita o presidente da república, que nas comemorações dos vinte anos da reunificação afirmou que o cristianismo e o judaísmo são parte da Alemanha, mas o islamismo também o é. Sim, podem crer: no discurso citado nesta notícia também havia frases desse género. Ah, quem diria.
A jornalista podia também fazer algum trabalho de casa, e contar o que é aquilo a que os alemães chamam "multikulti": sociedades paralelas, de costas viradas umas para as outras. Um erro que vem dos anos setenta, quando se pensou que os turcos vinham por meia dúzia de anos e depois regressavam ao seu país, e ninguém se preocupou em cuidar da sua integração. O que, três décadas mais tarde, tem consequências gravíssimas. Por exemplo: uma mulher turca assassinada numa rua de Berlim pelos seus próprios irmãos por desonrar a família - porque fazia a mesma vida que "essas putas alemãs". Escolas frequentadas quase a 100% por alunos que mal falam alemão, que por falta de integração não vêem para si qualquer perspectiva de futuro, e crescem sem lei nem referências - e cujos professores suspiram de alívio quando alguns alunos chegam aos 14 anos, porque já podem ser presos. Alunos que são vítimas de violência grave no caminho para a escola, ou no próprio recreio, só porque são alemães. Ou uma juíza que entende aplicar a um divórcio entre turcos regras que não aplicaria a um casal alemão. Tudo isto são exemplos do "multikulti" ao qual a Angela Merkel se refere e com o qual pretende acabar.
Finalmente: é um absurdo dizer que foi o Sarrazin quem pôs o dedo na ferida - a ferida já anda a ser tratada por inúmeros especialistas há mais de uma década, e com bons resultados.
O que o Sarrazin fez foi verbalizar o problema de uma forma que apela aos instintos básicos das pessoas e que acentua o mal-estar entre os grupos.
O mais curioso é que hoje li blogues portugueses onde se falava sobre a Alemanha e os alemães no mesmo tom em que o Sarrazin fala contra os turcos e os árabes...
4 comentários:
Mas basta ler o artigo todo com atenção, não acha, Helena? para se perceber que a srª Merkel não disse nada de xenófobo, pelo contrário, ela aponta falhas a um sistema que na opinião dela podia ser melhor e às pessoas que, igualmente na opinião dela, deviam fazer um maior esforço de integração.
A verdade é que, como a Helena diz, tem de se ler o que aparece nos jornais com algum cuidado. Não é só mau jornalismo, às vezes é mau editing. Tem de se ler nas entrelinhas e, se se tiver dúvidas, ir à(s) fonte(s) da notícia.
A síntese inicial está fraquinha, Gi, e pode levar a uma leitura torta do restante. Aquilo não foi lançar nova acha para a fogueira, aquilo foi reconduzir o debate aos seus pontos essenciais. Se o artigo fosse tão claro na escolha das palavras não teria havido tal reacção de uma pessoa informada e inteligente como a Ana Paulo Fita, aqui: http://anapaulafitas.blogspot.com/2010/10/angela-merkel-o-paradigma-da.html
(e prefiro nem comentar aqui o post do Carlos Fonseca no Aventar)
No caso, não basta ir às fontes. Implica também conhecer profundamente os usos da língua. Há cerca de dez anos deixou-se de usar o "multikulti", no entretanto transformado em sinónimo de sociedades paralelas, para se usar o "interkulti" - esse é que é o espaço de diálogo e respeito entre as culturas.
Teria sido gravíssimo se a Angela Merkel tivesse dito que o interkulti falhou. Mas isso ela nunca diria, porque não é verdade.
Neste país acontecem coisas lindas: como o chefe da CSU a deslizar para a sarrazinada contra os imigrantes muçulmanos, vários ministros da CDU fazerem declarações a criticar e a rebater essas afirmações com base em factos, e representantes do Conselho dos Judeus virem a público perguntar "então como é que é, já é assim que agora na Alemanha se fala sobre as minorias?"
Obrigada, Helena. Serviu para isto.
Eu é que agradeço, Joana.
Gostei muito do artigo francês que linkou no mesmo post.
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