05 novembro 2009

os olhos do faraó

Há tempos, jj.amarante fez um post sobre os padrões fixos na pintura egípcia. Como habitualmente, o texto levantava questões que nos faziam pensar, nomeadamente o modo de pintar os olhos.
Escrevia ele: "na pintura ocidental este tipo de representação, em que duas vistas de perspectivas diferentes são apresentadas numa mesma imagem, só voltou a aparecer nas figuras cubistas de Picasso."

No esforço hercúleo (melhor seria: sísifico) que iniciei recentemente de reduzir o tamanho da estante "livros que ainda vou ler", peguei num livro de B. Rachewiltz e V. Gómez, "Os Olhos do Faraó". Não é uma leitura, digamos, excessivamente agradável (tanto mais que parece ter faltado revisão da tradução - confesso que da D. Quixote não esperava um texto assim), mas tem uma parte que parece ter sido escrita propositadamente para o jj.amarante. Aqui vai a transcrição:

- Antes de falar da arte, falemos dos artistas. Quem é o escultor? O próprio nome no-lo diz: - sankh, aquele que "faz viver", que "anima". Nós animamos a matéria inerte. Repetimos portanto a mesma acção criadora divina. Se observardes o traçado nas quadrículas notareis as proporções entre as partes, seja na figura humana como na relação que esta tem com toda a composição.
- Mas isto limita a liberdade do artista - disse Beba - porque os gestos e as posições estão subordinadas a regras e não derivam de uma liberdade escolhida pelo próprio artista. O artista não pode reproduzir a realidade como ele próprio a vê.
- Aquilo de que falais, jovem dama, é uma arte pessoal, individual, a que pertencem os esboços que também nós fazemos com prazer. Outra coisa é a arte que deriva das regras divinas da deusa Maat, onde tudo está subordinado ao cálculo, às regras matemáticas das proporções, as mesmas empregadas pelos deuses criadores como Ptah e Khnum, por exemplo. Olhai esta figura - e Pepiseneb mostrou aquela que apenas esboçara. Os seus outros colaboradores estavam a esculpir a parede seguindo os traçados análogos feitos anteriormente pelo Escultor-chefe. Este aproximou-se de um deles e indicou-lhe algumas correções a fazer. - Tendo por base as regras da magia - prosseguiu Pepiseneb - tudo o que é essencial deve ser reproduzido, de outro modo, se por acaso algum elemento faltasse, uma vez animada a representação, e recordo-vos mais uma vez que s-ankh quere dizer "animador", esta no plano do ka resultaria com falta dos elementos que não tinham sido indicados. Uma criatura monstruosa que poderia causar graves danos.
Toth interveio, pois se tratava de um argumento muito seu conhecido.
- As mesmas regras - disse o Escriba-mor - estão na base do martelamento dos sinais hieroglíficos que representam animais nocivos ou perigosos, uma vez também eles serem animados pelo kheri-heb, o sacerdote leitor.
- Sim - interrompeu o rei - lembro-me ainda de quando nos ensinavas essas coisas há muitos anos. O teu exemplo, parece-me, foi o da letra "F", a víbora cornuda.
O Escultor-chefe continuou as suas explicações:
- Por todos estes motivos a figura humana representada nos baixos relevos ou em pintura tem de conter todos os elementos essenciais: cabeça representada de perfil, os ombros e a metade superior do torso vistos de frente com ambos os braços representados, enquanto a parte inferior do torso e os membros inferiores são representados de perfil. Deste modo abraçamos no mesmo momento e e muitos lados a imagem total do homem. Observai o olho. Ainda que a cabeça seja representada de perfil, o olho é visto de frente, ou seja na sua totalidade, pois que o olho é um orgão essencial de natureza, por si mesma, mágica.

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